É comum ver os simpatizantes de um candidato
político derrotado nas eleições levantarem teorias conspiratórias sobre fraudes
nas urnas. Quem afirma que houve fraude eleitoral está, na prática,
dizendo que não acredita que a maioria dos eleitores tenha optado por votar de
outra maneira que não aquela única que ele considerava a correta.
Mas não é necessário recorrer a teorias
conspiratórias para explicar um eventual resultado adverso em uma
eleição. E o motivo é simples: a maioria votante nem sempre tem razão.
A falibilidade democrática
A democracia é um
método de agregação de preferências
individuais acerca de diversas questões que afetam o conjunto do coletivo.
Mais ainda: tais preferências individuais são
ponderadas de maneira igualitária -- motivo pelo qual tendem a prevalecer
regras de decisão majoritárias, isto é, a maioria simples vence.
Quatro aspectos são relevantes -- e potencialmente
problemáticos -- nessa definição de democracia: a) método de agregação, b)
preferências individuais, c) questões que afetam o coletivo, e d) ponderação
igualitária.
Primeiro,
o insumo de toda democracia é simplesmente a "preferência eleitoral de
cada indivíduo" (ou seja, os votos): assim como não é nada controverso
reconhecer que um indivíduo pode se equivocar em várias ocasiões da sua vida
privada, tampouco deveria ser controverso reconhecer que um indivíduo pode se
equivocar ao votar.
Com efeito, há razões de sobra para crer que uma
pessoa se equivoca com muito mais facilidade ao votar do que
ao tomar decisões sobre sua vida privada: dado que a influência de um único
voto sobre o resultado final de eleições gerais é praticamente nula (salvo em
localidade muito pequenas), as pessoas carecerão de incentivos para se informar
suficientemente antes de dar o seu voto e terão ainda menos incentivos para
analisar as reais consequências econômicas de seu voto (custos altos e ganhos
nulos).
Já no âmbito privado a situação é muito distinta: as
preferências de um indivíduo são absolutamente determinantes nas decisões que
ele toma -- o custo de se informar pode ser igualmente alto, mas os ganhos de
agir de forma correta também serão.
No âmbito da democracia, isso que foi descrito é
conhecido como o fenômeno da ignorância racional dos
eleitores, fenômeno esse que tende a ser intensificado à medida que o voto de
um especialista no assunto sendo votado tem absolutamente o mesmo peso que o
voto de um não-especialista -- por exemplo, o meu voto em relação a uma matéria
de desenho urbanístico vale o mesmo que o de um arquiteto.
Segundo,
por ser um método de agregação de preferências individuais, pode-se argumentar
que os erros aleatórios de alguns indivíduos seriam cancelados pelos erros
aleatórios de outros indivíduos, gerando como resultado um acerto agregado. Por
exemplo, minha ignorância em relação a desenho urbanístico poderia ser
contrabalançada pelos meus conhecimentos de economia; por sua vez, o
conhecimento de arquitetura do arquiteto poderia ser contrabalançado por sua
ignorância em economia. Minhas deficiências se complementam com a
sabedoria de terceiros e vice-versa.
No entanto, não há nenhuma razão para pressupor que
todas as deficiências que afetam os eleitores sejam não-sistemáticas. Ao
contrário: sabemos que certas deficiências são sim de caráter sistemático: por
exemplo -- e ficando apenas no campo da economia --, dispomos de fortes
evidências de que os eleitores padecem de um viés anti-mercado (a tendência de
subestimar os benefícios trazidos pelo livre mercado), de um viés pró-emprego
(a tendência de superestimar os benefícios de se criar qualquer tipo de
emprego, mesmo o emprego público), e de um viés assistencialista (a tendência
de sobrevalorizar qualquer política que proclame aumentar a presença
paternalista do estado na vida do cidadão).
Por tudo isso, a agregação de preferências
individuais sistematicamente enviesadas gerará decisões coletivas também
enviesadas. Tal é o fenômeno da irracionalidade do eleitor.
Terceiro,
mesmo que as preferências individuais não se manifestem sistematicamente
enviesadas e caiba supor que os erros aleatórios de alguns indivíduos serão
contrabalançados pelos de outros, ainda assim seria necessário que o método
concreto de agregação de preferências individuais fosse neutro para que a
"vontade coletiva" da democracia não fosse arbitrariamente
irracional: ou seja, necessitaríamos de que, dadas algumas preferências
individuais, a decisão coletiva fosse sempre a mesma, independentemente do
método de agregação utilizado.
Não obstante, distintas regras eleitorais geram
distintos resultados eleitorais. Distritão, distrital misto, distrital puro,
voto majoritário, voto proporcional, colégio eleitoral, proporcional com lista
aberta etc. Qual dentre esses métodos agrega com maior fidelidade as
preferências individuais dos eleitores? Impossível saber.
Nenhum deles exibe as características típicas da
racionalidade individual para que possamos categorizá-los como melhor ou
pior. Essa é uma das implicações mais conhecidas do chamado Teorema
da Impossibilidade de Arrow.
E quarto,
mesmo que não houvesse erros sistemáticos nas preferências individuais, e mesmo
que o método de agregação dessas preferências fosse neutro, vale recordar que a
democracia agrega preferências individuais acerca de questões que
afetam o coletivo.
A questão passa a ser, então, a de quais assuntos
são de competência individual e quais são de competência coletiva.
Ou, dito de outra forma, antes de votar é necessário
termos uma teoria ética que delimite quais assuntos podem ser votados, por se
tratarem de assuntos coletivos. E, neste sentido, podemos nos mover desde um
extremo político (o totalitarismo: no qual tudo é suscetível de ser votado
porque todo aspecto da vida pessoal tem implicações coletivas) até o outro
extremo político (o anarquismo individualista: no qual nada é suscetível de ser
votado porque existe apenas o indivíduo, e não um grupo), passando por questões
mais intermediárias (uma remissão cega à Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a qual define quais assuntos devem ficar de fora das urnas por serem
direitos já previamente estabelecidos para o indivíduo).
Assim, ao menos que caiamos em um relativismo
extremo segundo o qual qualquer filosofia política é igualmente válida, uma
democracia perfeitamente racional poderia se equivocar ao votar sobre matérias
que não deveriam ser de âmbito coletivo, mas sim de competência (liberdade)
individual.
Por exemplo, ainda que todos soubessem que Marx está
profundamente equivocado e que a leitura de suas obras pode contaminar a mente
dos cidadãos, seria legítimo votarmos a favor de proibir a leitura de
Marx? Não parece.
Em suma, as decisões democráticas podem se equivocar
por falta de informação dos eleitores, pelo viés sistemático deles, pela
arbitrariedade do método de agregação de preferências individuais, e por uma
inadequada teoria ética subjacente.
As implicações da falibilidade
democrática
Tão logo admitimos que o resultado de uma eleição
democrática não é inexoravelmente correto, o simpatizante do partido ou do político
que perdeu, ou mesmo aquele que odeia o partido ou o político vencedor, tem
agora um argumento baseado na razão e na lógica: ele não tem de aceitar que a
eleição de um partido ou político que ele considera corrupto, mendaz e
criminoso tenha sido um processo correto.
Pode ser que seus eleitores não estavam conscientes
da corrupção e das mentiras; pode ser que eles não se atentaram suficientemente
a outras questões; ou pode ser que eles foram cúmplices e quiseram se
beneficiar a si próprios.
As explicações podem ser várias e a eleição de tal político
não foi necessariamente "correta" e "inquestionável".
Certamente, e como já exposto, não se pode descartar
a priori que as pessoas podem se equivocar ou que elas tenham motivações ruins
na hora de votar.
Agora, se uma pessoa acredita que os eleitores podem
se equivocar com certa frequência, então, por definição, tal pessoa jamais deveria
defender que várias questões cruciais fossem submetidas a uma decisão coletiva,
ao voto da maioria. Se aceitamos que as pessoas se equivocam ou por
ignorância ou por má fé, então jamais deveríamos expor questões vitais que envolvem vida, propriedade e liberdade a essa ignorância ou má fé.
Dito de outra maneira: questões vitais quem envolvem
vida, propriedade e liberdade jamais deveriam ser levadas a uma "votação da maioria".
Elas jamais devem ser questões "decididas pelo voto".
(Não é à toa que a esquerda sempre gosta de defender
plebiscitos e referendos sobre assuntos cruciais, colocando nas mãos do
coletivo assuntos que envolvem a vida, a liberdade e a propriedade individual --
o que seria uma "democratização" da vida social).
Democracia
é contradição
Admitir que o eleitor pode ser ignorante ou mal
intencionado, e ainda assim defender que (quase) tudo deve ser matéria de voto,
é uma postura extremamente perigosa, pois alimenta o paternalismo autocrático e
oligárquico: se as decisões devem ser tomadas coletivamente, mas não devem ser
tomadas "pelas massas ignaras", então restam duas opções: ou
toleramos as recorrências de más decisões coletivas até que as pessoas
"aprendam" (isto é, sejam reeducadas), ou as decisões coletivas
deverão ser tomadas somente por aquelas pessoas que se auto-intitulam sábias e
éticas.
A primeira opção não é racional. A segunda é impossível.
Por tudo isso, a democracia é um arranjo totalmente
contraditório e propício a gerar conflitos e resultados desastrosos. E, olhando
o que está havendo ao redor do mundo nos países democráticos, a situação só
tende a piorar.
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pior tipo de competição
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