Recentemente, uma amiga queixou-se sobre um surto de arrombamentos que
estavam ocorrendo na vizinhança de sua recém-comprada casa. Uma casa mais à frente da dela havia sido
arrombada há algumas semanas e, não muito tempo depois, foi a vez da casa ao
lado. Nesta, os ladrões levaram uma
enorme televisão de plasma e um laptop, sendo que eles aparentemente saíram
andando da casa com a mercadoria à plena luz do dia.
Minha amiga estava evidentemente indignada com toda essa roubalheira --
exatamente como deveria -- e parecia ter dificuldades para entender como os
ladrões tiveram a petulância de arrombar uma casa e levar aquilo que não lhes
pertencia. "Como ousam?!", disse
ela. "O que os fazem pensar que têm o
direito de fazer isso?"
É uma pergunta justa. O que os fazem pensar que têm o direito
de fazer isso? Bom, talvez eles saibam que não têm o direito de fazer
isso, mas o fazem assim mesmo porque seu desejo de obter o imerecido (aquilo
que não foi ganho pelo trabalho) é maior do que seu respeito pelos direitos de
propriedade de terceiros. Talvez os
ladrões racionalizaram seu crime com base em alguma suposta necessidade;
necessidade essa produzida -- sem dúvida -- pelo fato de terem sido
"marginalizados" pela sociedade.
Sobre as atitudes desses ladrões em particular, podemos apenas
especular. Porém, em um sentido mais
amplo, podemos perguntar: Por que será que um criminoso sente-se confortável
tomando uma propriedade que ele não adquiriu por merecimento próprio?
Após ouvir o relato de minha amiga, concordei plenamente que os ladrões que
haviam pilhado seus vizinhos (tinha de ser mais de um para poder carregar o
grande aparelho de TV) não tinham nenhum direito de obter essa propriedade que
não lhes pertencia, e que ela tinha toda razão de estar brava. Entretanto, por estar sempre em alerta à
espera de uma oportunidade para disseminar o pensamento libertário, também
aproveitei para informá-la que a conduta dos ladrões em nada diferia
fundamentalmente da conduta da maioria das pessoas da sociedade, as quais
rotineiramente defendem ou aceitam o roubo de propriedade que não é delas.
Ah, mas é claro que não! É claro que
somente um salafrário dos mais torpes poderia achar que tem o direito de roubar
a propriedade dos outros! Nenhum cidadão
"cumpridor das leis" iria aceitar tal coisa!
Iria?
Bem, vejamos: suponha que um indivíduo tenha a grande perspicácia de
perceber que algumas pessoas não têm tanto dinheiro quanto as outras, e que
seria bom se elas tivessem mais dinheiro do que têm atualmente. Para remediar esse problema, o iluminado
propõe que um grupo de generosos benfeitores crie uma agência cuja função seja
tomar forçosamente o dinheiro de terceiros sem a permissão destes (ou seja,
roubá-los), e dar uma parte do roubo para aquelas pessoas que consideram
"necessitadas". O grupo, então,
utilizaria o que sobrou do roubo para:
1) deturpar a moral dos recebedores, fazendo-os crer que têm um direito
adquirido sobre esse dinheiro roubado;
2) financiar propagandas que mostram a todos o ótimo trabalho que a agência
está fazendo; e
3) gradualmente construir um pequeno e lucrativo império para a equipe de
funcionários no comando da agência, que têm o sucesso dos grandes bandidos --
ganhando muito mais do que ganhariam em outros empregos, ao mesmo tempo em que
são enaltecidos pelo seu "serviço público".
As pessoas ficam indignadas com esse arranjo? Elas chamam a polícia para denunciar essa
extorsão? Elas formam comitivas para ir aos
gabinetes de seus representantes eleitos e exigir que essa abominável agência
seja abolida? Não, elas não fazem nada
disso. Na realidade, ocorre exatamente o
oposto: as pessoas se aglomeram e se atropelam para dizer o quanto apóiam esse
sistema, tomando o máximo de cuidado para não deixar escapar nenhuma crítica a
qualquer excesso que porventura tal sistema possa cometer, como que para deixar
claro que elas realmente se "importam" com "os pobres".
Os exemplos da abundância desse tipo de criminalidade e do abundante apoio
aos -- ou pelo menos condescendência para com -- programas que praticam tais
crimes são extremamente extensos. O fato
é que, nesse ambiente, não é de se surpreender que os ladrões tenham poucos
escrúpulos e não hesitem em tomar propriedade que não lhes pertence. A razão para esse sentimento é provavelmente
muito similar à razão por que a vasta maioria das pessoas em nossa sociedade
acha que tem direito sobre a propriedade dos outros: vivemos em uma sociedade de criminosos.
Mas como assim? A maioria das pessoas
não obedece às leis? Elas não pagam seus
impostos e dirigem apenas quando têm carteira de motorista, como qualquer bom
cidadão "cumpridor da lei"? Elas não
obedecem às regulamentações trabalhistas, às regulamentações ambientais, aos
regulamentos tributários, e a todas as outras coisas que seus representantes
eleitos mandam?
Bom, sim -- na medida em que é possível cumprir com esse enorme e
frequentemente vago ou contraditório emaranhado de regras, a maioria das
pessoas o faz. Mas isso não é obediência
à lei; isso é obediência à legislação. Trata-se meramente de obedecer aos decretos
dos detentores do poder.
Com efeito, as únicas regras de conduta que podem adequadamente ser chamadas
de "leis" são as regras das leis naturais
-- aquelas regras de conduta objetivas que são tidas como moralmente adequadas em
decorrência da natureza do homem.[1] Essas regras consistem essencialmente no
princípio da não agressão e nas regras da apropriação original e da livre troca
de propriedade, que são a base da teoria libertária da justiça. Em sua discussão sobre a lei natural, o
grande teórico jurídico Lysander Spooner apresenta as condições desta lei:
As condições são simplesmente essas: primeiro, que cada homem deve
fazer, em relação a todos os outros, tudo o que a justiça requer que ele faça;
como, por exemplo, que ele deve pagar suas dívidas, que ele deve devolver ao
dono a propriedade que foi roubada deste ou que lhe foi tomada emprestada, e
que ele deve reparar qualquer dano que porventura possa ter causado para a pessoa
ou propriedade de outro. A segunda
condição é que cada homem deve se abster de fazer ao outro qualquer coisa que a
justiça o proíba de fazer; como, por exemplo, que ele deve se abster de praticar
furto, roubo, incêndio criminoso, assassinato ou qualquer outro crime contra a
pessoa ou a propriedade de outro.[2]
Portanto, como as pessoas se saem quando avaliadas em sua conduta em relação
a esta lei -- em relação à lei? Nada bem.
Aliás, quando se avalia sob essa perspectiva, a imensa maioria das
pessoas aprova atos criminosos.
As pessoas frequentemente se surpreendem com a mentalidade dos "criminosos
comuns" (ou seja, criminosos da variedade genuinamente reconhecida como
criminosa) porque elas acham que a atitude desses criminosos -- de achar que
podem adquirir bens imerecidos, que não foram ganhos por meio do trabalho -- é
um defeito relativamente escasso. Mas
não é. Com efeito, a vasta maioria dos
membros do público se sente perfeitamente no direito de arrebatar a propriedade
de terceiros. Eles exigem que as
propriedades de terceiros sejam confiscadas por meio do sistema tributário e de
outras "políticas públicas", ou que se interfira forçosamente nelas por meio de
"regulamentações" rotineiras.
Mesmo que eles não sejam os beneficiários líquidos nesse sistema, mesmo que
eles entreguem em impostos muito mais do que jamais receberão desse esquema
extorsivo, é provável que eles ainda assim apóiem várias "políticas públicas"
que, na prática, equivalem a um roubo ou a uma violação da pessoa e da
propriedade de terceiros.
E como eles veem aquelas pessoas que discordam dessa mentalidade do direito
adquirido, que discordam dessa avidez por coerção e dessa criminalidade em
massa? Ora, tais pessoas são
evidentemente insensíveis e desapiedadas!
Elas não possuem consciência social!
Elas são ideólogas perigosas e extremistas sem qualquer espírito prático!
Que Deus não permita que elas jamais venham a exercer qualquer tipo de
influência, por mais marginal que seja, sobre as "políticas públicas". Claro, esses extremistas podem ter alguma
razão em relação a determinados excessos pontuais dos privilégios concedidos
pela máquina estatal. Eles podem nos
ajudar a controlar alguns dos problemas criados por políticos e burocratas mais
descontrolados. Porém na maioria das
vezes eles exageram muito! Nada de
impostos? Nada de regulamentações?
Direitos de propriedade invioláveis? Ora, isso é loucura!
Mas, ao contrário, isso não é loucura alguma. Pois a única diferença entre o ladrão
"reconhecido como criminoso" e o membro da máquina estatal é que o ladrão faz
ele próprio seu trabalho sujo. Ele não
obtém aparelhos de televisão, aparelhos de som e jóias por meio daquela
modalidade de roubo conhecida como "política pública". Ao invés de recrutar políticos burocratas
para roubar a propriedade alheia em benefício próprio, ele os poupa desse
trabalho e faz o serviço sujo por conta própria.
Ao fazer isso, ele não pode justificar seus crimes recorrendo a
argumentações baseadas em processos democráticos, mandatos políticos e outras
noções estatistas. É claro que ele pode
ter suas próprias explicações racionais, mas estas serão muito mais tíbias do
que aquela fervorosa avidez pelo imerecido que é exibida no âmbito político por
lobistas, políticos e jornalistas estatistas.
Seja como for, não é de se surpreender que ele se sinta no direito de
tomar a propriedade que não lhe pertence.
Essa é a menor das diferenças
entre ele e os membros "comuns" da máquina estatal.
A explicação mais comum para aqueles crimes cometidos sob o manto das
"políticas públicas" é que essas políticas são a "vontade do povo", expressada
por meio de seus representantes eleitos.
Porém, ainda que esse processo pudesse realmente determinar alguma
expressão agregada de desejo popular -- e
isso é extremamente duvidoso --, não pode haver algo como um grupo de pessoas
com a capacidade de mudar o conteúdo da lei ou de retirar por meio do voto os
direitos das pessoas. Aqui podemos
novamente recorrer a Spooner, que observa que
Se a justiça é um princípio natural, então ela é necessariamente um
princípio imutável; e, assim como a lei da gravidade, as leis da ótica, os
princípios da matemática ou qualquer outra lei natural ou princípio qualquer, a
justiça não pode ser alterada por qualquer poder inferior àquele que a
estabeleceu. E todas as tentativas ou
pretensões, da parte de qualquer homem ou conjunto de homens -- estejam eles
chamando a si próprios de governo ou de qualquer outro nome --, de estabelecer suas
próprias ordens, vontades, prazeres ou critérios, no lugar da justiça, como uma
regra de conduta para todos os seres humanos, representaria um absurdo, uma
usurpação e uma tirana tão grandes quanto seriam suas tentativas de estabelecer
suas próprias ordens, vontades, prazeres ou critérios no lugar de todas e
quaisquer leis físicas, mentais e morais do universo.[3]
O que então quero dizer quando afirmo que vivemos em uma sociedade de
criminosos? Simplesmente estou querendo
dizer que a vasta maioria das pessoas em nossa sociedade apóia atos criminosos
cometidos contra terceiros. Esses
supostos cidadãos cumpridores da lei apóiam o roubo, a agressão, a transgressão
e, algumas vezes, até o assassinato quando esses crimes são camuflados sob o
respeitável manto das "políticas públicas".
O desprezo com que eles veem os criminosos comuns é genuinamente risível
quando se examina a criminalidade em massa que eles apóiam.
É claro que isso não quer dizer que todos os membros do público são
moralmente equivalentes a ladrões ou outros criminosos. Sua culpabilidade moral pode ser em certa
medida descontada quando se sabe que eles estão rotineiramente submetidos a essa
verdadeira enxurrada de propaganda estatista que nos cerca, algo que os ilude e
confunde, e os estimula a acreditarem que têm o direito de decidir como os
outros devem usar suas propriedades.
De fato podem existir alguns membros do público que ainda não perceberam a
conexão entre coerção e "política pública", e que estão completamente alheios
ao fato de que há um paralelo entre essas políticas e as ações dos "criminosos
comuns". Se esse é um erro honesto,
então trata-se de um erro de conhecimento, e não de moralidade. Entretanto, dificilmente pode-se afirmar que
esse erro de conhecimento é amplamente disperso -- na maioria dos casos, os
membros do público estão bem cientes da natureza coerciva das políticas que
defendem. Ademais, o fato de não serem
eles que "vão a campo" e fazem a pilhagem por conta própria, como faz um
criminoso comum, não pode ser utilizado como desculpa para suavizar a natureza
do delito -- como se o fato de que o roubo lhes foi "dado" por seus senhores
benevolentes abrandasse a transgressão.
Pois é exatamente essa grande massa do público que apóia o intenso e
constante processo de "redistribuição" que ocorre na sociedade.
A atitude do público em relação ao "criminoso comum" gera uma óbvia
pergunta. Qual seria a possível razão
que você teria para reclamar das ações desses criminosos quando você próprio
apóia ou mesmo defende ações criminosas em escala muito maior?
Há uma lição em tudo isso para os libertários. Se quisermos ter êxito ao apresentar nossas
ideias para um grande público, precisamos ter em mente o fato de que as pessoas
comuns rotineiramente apóiam o roubo e outros crimes cometidos pelo estado, mas
ficam perplexas quando veem o mesmo crime sendo cometido por "criminosos
comuns" (que na realidade são o tipo mais incomum dos bandidos). Os defensores de uma sociedade genuinamente
baseada na lei devem se esforçar para chamar a atenção para a contradição
inerente a essa atitude.
Devemos alertar para os paralelos entre as "políticas públicas" do estado e
os atos dos "criminosos comuns". Devemos
aprender a apresentar ao público as políticas estatistas do jeito que elas são
-- criminalidade em larga escala. E
devemos aprender a convencer as pessoas de que o apoio delas a essas políticas
é o equivalente a apoiar o crime.
Ao fazer isso, não basta apenas falar sobre livre mercado,
desregulamentação, não intervencionismo etc. -- isso seria o equivalente a combater
os estatistas em seu próprio território, apresentando a questão como um mero
confronto entre "políticas públicas" concorrentes. O real combate, a verdadeira questão que está na raiz dos debates políticos, não envolve
escolher entre uma política ou outra -- é sobre escolher entre cometer crimes e
não cometer crimes.
Com efeito, aquilo que é chamado de "livre mercado" é simplesmente o arranjo
em que não há roubos, agressões, esbulhos etc. socialmente sancionados. Aquilo que é chamado de "desregulamentação" é
na realidade apenas a remoção de políticas que autorizam -- isto é, que
sancionam socialmente -- que a pessoa e a propriedade sejam transgredidas. Aquilo que é chamado de "descentralização do
poder" é na realidade simplesmente a quebra de uma grande agência criminosa e
sua consequente redução em várias pequenas agências criminosas concorrenciais,
com o objetivo último de torná-las suficientemente diminutas e concorrentes
(entre si) de modo a nos permitir escapar totalmente de suas garras.
Em suas raízes, a posição libertária é bastante simples e deve ser
comunicada dessa forma. Ela afirma que
não se deve permitir que as pessoas cometam crimes contra as outras. Toda a disputa acerca de livre mercado versus
intervencionismo, capitalismo versus socialismo, regulamentação versus
desregulamentação, e assim por diante, é apenas uma forma mascarada de
apresentar a dicotomia básica entre uma sociedade
de criminosos e uma sociedade de leis. Esta é a essência da batalha.
Uma batalha entre o livre mercado e seus antípodas, quando apresentada com a
roupagem da filosofia política, é uma batalha esotérica. É uma batalha que pode ser distorcida e
adulterada. Já uma batalha objetiva e
clara entre criminalidade e lei é mais fácil de ser entendida e muito mais poderosa. Os libertários não deveriam se esquivar de
apresentar as "questões políticas" como elas verdadeiramente são: um confronto
direto e claro entre criminalidade e leis.
Muitos foram intimidados a evitar essa abordagem, doutrinados que foram pela
ideia de que essa "linguagem forte" iria assustar as pessoas, ou fazer com que
os libertários parecessem exagerados e irracionais. Mas é exatamente essa confrontação com o fato
elementar -- a saber, que o libertarianismo apóia uma sociedade de leis --, que é
a mais poderosa arma para seus defensores.
Não há nada de errado em dizer às pessoas que tributação é roubo, que
regulamentação é transgressão, que leis antidrogas são agressão e roubo, que
políticos são criminosos, e que o estado é uma monstruosa agência criminosa.
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Notas
[1] Uma boa
definição da lei natural é apresentada por Edwin Patterson, que a define como
Princípios da conduta humana que são descobertos pela "razão" e que advêm
das mais básicas inclinações da natureza humana, e que são absolutos, imutáveis
e de validade universal para todas as épocas e lugares. Essa é a concepção básica da lei natural
escolástica... e da maioria dos filósofos da lei natural. (Patterson, E.W. (1953) Jurisprudence: Men
and Ideas of the Law. Foundation Press: Brooklyn, p. 333.)
Este autor não vê a necessidade de colocar aspas na palavra "razão" na
definição acima, mas, mesmo assim, se a razão é em si entendida como um
conceito objetivo, então essa definição captura a essência da lei natural. A ideia de lei natural é oposta à doutrina do positivismo jurídico. Esta
última doutrina afirma que as leis são feitas por seres humanos e que a
validade das leis não tem necessariamente nenhuma conexão com a ética. Leitores interessados podem encontrar uma
extensa discussão sobre lei natural e a base deontológica para a teoria
libertária em Rothbard, Murray N. A Ética da Liberdade.
[2] Spooner,
L. (1992) The Lysander Spooner Reader. Fox and Wilkes: San Franc isco,
p. 11.
[3] Ibid.,
Spooner (1992) p. 16.