A
escravidão existiu por milhares de anos, em todos os tipos de sociedade e em
todas as partes do mundo. Imaginar como seria a vida social dos homens
sem a escravidão era algo que exigia um esforço extraordinário.
Entretanto, de tempos em tempos, sempre surgiam alguns excêntricos que se
opunham a ela, a maioria argumentando que a escravidão era uma monstruosidade
moral e que, portanto, as pessoas deveriam aboli-la. Tais pessoas
geralmente provocavam diversas reações, que iam desde a galhofa educada até o
escárnio ríspido, chegando até mesmo a agressões violentas.
Quando
alguém se dava ao trabalho de fornecer alguns argumentos contra a abolição,
várias ideias eram defendidas. Na
primeira coluna da tabela abaixo, listo dez dessas ideias que descobri ao longo
de minhas pesquisas sobre o assunto. Em
um dado momento da história, incontáveis pessoas recorreram com naturalidade a
uma ou mais das razões abaixo expostas para fundamentar sua oposição à abolição
da escravidão.
Entretanto,
quando se analisa em retrospecto, esses argumentos nos parecem extremamente
prosaicos -- parecem mais racionalizações (ato de se inventar possíveis razões
para uma ação, razões essas que não se baseiam nas razões verdadeiras) do que
argumentações lógicas.
Hoje,
para praticamente qualquer pessoa, esses argumentos parecem ser, senão
completamente enganosos, na melhor das hipóteses questionáveis ou não
convincentes. Atualmente, ninguém
desenterra essas ideias -- ou o corolário delas -- para defender alguma
proposta de se restabelecer a escravidão.
Embora vestígios de escravidão ainda existam no norte da África e em
alguns outros poucos lugares, a ideia de que a escravidão é uma instituição
social defensável está extinta. Razões
que há até pouco tempo pareciam fornecer fundamentos irrefutáveis para se opor
à abolição da escravidão, hoje não provocam absolutamente nenhum impacto
intelectual.
É
estranho, entretanto, que essas mesmas e retrógradas ideias uma vez utilizadas
para justificar a oposição à abolição da escravidão sejam hoje rotineiramente
utilizadas para justificar a oposição à abolição do governo (como o
conhecemos). Anarquistas libertários
ousados o bastante para já terem defendido sua proposta de abolir o estado
certamente já terão lidado com muitos dos, senão todos, argumentos utilizados
por séculos para dar sustento à escravidão.
Assim, fazemos uma lista paralela, como mostrada na segunda coluna da
tabela.
Na
tabela, minha constante repetição da enfadonha expressão "governo (como o
conhecemos)" pode parecer esquisita, ou até mesmo irritante, mas optei por
tributar a paciência do leitor dessa forma por um motivo. Quando o cidadão comum encontra um defensor
do anarquismo, sua imediata reação é identificar uma lista de funções críticas
do governo -- preservação da ordem social, manutenção de um sistema legal para
se resolver contendas e lidar com criminosos, proteção contra agressores
estrangeiros, fiscalização e aplicação dos direitos de propriedade, defesa dos
fracos e indefesos, produção e manutenção da infraestrutura econômica, e por aí
vai. Essa reação, entretanto, atira no
alvo errado.
Anarquistas
libertários não negam que tais funções sociais devam ser mantidas para o
funcionamento exitoso de uma sociedade.
Entretanto, o que eles realmente negam é que necessitemos de um governo
(como o conhecemos) para executá-las.
Anarquistas libertários preferem que essas funções sejam executadas por
provedores privados com os quais os beneficiários tenham concordado em lidar. Quando escrevo sobre o
governo "como o conhecemos", estou me referindo à forma de governo monopolista e não consentida pelo indivíduo, forma
essa que existe hoje em praticamente todos os lugares da terra.
Os
leitores podem contestar dizendo que pelo menos algumas das formas existentes
de governo de fato têm o
consentimento das pessoas. Mas eu
pergunto: onde está a evidência? Mostrem
os contratos adequadamente assinados, com testemunhas e tudo. A menos que todos os adultos que hoje estão submetidos a essa autoridade
reivindicada pelo governo tenham voluntariamente
e explicitamente aceitado serem
governados em termos específicos, a
única suposição lógica que resta é a de que os governantes simplesmente
impuseram seu domínio.
Declarações,
propagandas, textos cívicos, pesquisas de opinião, conversas de boteco,
eleições políticas e afins são irrelevantes e nada têm a ver com essa
questão. Ninguém pensaria em oferecer
tais formas de evidência para mostrar que eu possuo um contrato válido com
minha operadora de celular, que me provê serviços telefônicos. Quando o governo do meu país, o governo do
meu estado e a prefeitura da minha cidade irão me mandar os contratos para que
eu possa assinar dizendo se concordo (ou não) em comprar seus "serviços" em termos mutuamente satisfatórios?
A
similaridade entre os argumentos contra a abolição da escravidão e os
argumentos contra a abolição do governo (como o conhecemos) deveria abalar a fé
daqueles que ainda possuem a falsa ideia de que vivemos em um "governo do
povo, pelo povo e para o povo". Do meu
ponto de vista, os argumentos pró-governo parecem lastimosamente iguais aos
mesmos questionáveis e trôpegos fundamentos intelectuais que deram base à
escravidão.
Argumentos Contra a Abolição da Escravidão
e Argumentos Contra a Abolição do Governo (como o conhecemos)
A
escravidão é natural.
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O
governo (como o conhecemos) é natural.
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A
escravidão sempre existiu.
|
O
governo (como o conhecemos) sempre existiu.
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Todas
as sociedades do mundo têm escravidão.
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Todas
as sociedades do mundo têm um governo (como o conhecemos).
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Os
escravos não são capazes de cuidar de si próprios.
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As
pessoas não são capazes de cuidar de si próprias.
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Sem
seus mestres, os escravos morrerão em massa.
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Sem
o governo (como o conhecemos), as pessoas morrerão em massa.
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Onde
as pessoas comuns são livres, elas estão ainda piores que os escravos.
|
Onde
as pessoas comuns não têm um governo (como o conhecemos), elas estão muito
piores (por exemplo, na Somália).
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Acabar
com a escravidão iria ocasionar um grande derramamento de sangue e outras
perversidades.
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Acabar
com o governo (como o conhecemos) iria ocasionar um grande derramamento de
sangue e outras perversidades.
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Sem
a escravidão, os ex-escravos ficariam fora de controle, roubando, estuprando,
matando e provocando o caos generalizado.
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Sem
o governo (como o conhecemos), as pessoas ficariam fora de controle,
roubando, estuprando, matando e provocando o caos generalizado.
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Tentar
acabar com a escravidão é algo ridiculamente utópico e impraticável; somente
um sonhador confuso e sem noção defenderia proposta tão absurda.
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Tentar
acabar com o governo (como o conhecemos) é algo ridiculamente utópico e
impraticável; somente um sonhador confuso e sem noção defenderia proposta tão
absurda.
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Esqueça
a abolição. Um plano muito melhor é manter os escravos suficientemente bem
alimentados, bem vestidos, bem instalados e ocasionalmente entretidos,
distraindo-os da exploração que sofrem e estimulando-os a se concentrar na
boa perspectiva de vida que os aguarda daqui pra frente.
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Esqueça o fim do estado. Um plano muito melhor é manter as pessoas comuns suficientemente
bem alimentadas, bem vestidas, bem instaladas e ocasionalmente entretidas,
distraindo-as da exploração que sofrem e estimulando-as a se concentrar na
boa perspectiva de vida que as aguarda daqui pra frente.
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