Ainda
no final da década de 1930, a discordância quanto à questão da impossibilidade
do cálculo econômico em uma economia socialista era apenas um sintoma de uma
divergência ainda maior entre Mises e seus companheiros de batalha de outrora.
Mises
não apenas defendia resolutamente as doutrinas centrais da Escola de Manchester
(corrente de pensamento que se opunha ao mercantilismo no século XIX), a qual
na época já havia perdido toda a sua influência, como também ia muito além
delas. Ele mostrou que qualquer sistema
econômico que adotasse a terceira via seria inerentemente instável porque não
poderia resolver os problemas que objetivava solucionar e, por conseguinte,
motivaria ainda mais intervenções governamentais, sempre em doses cada vez
maiores, até o sistema intervencionista inevitavelmente se transformar em total
socialismo. Porém, como o socialismo não
era viável, restava apenas uma opção significativa: um sistema 100% capitalista. Repetidas vezes, Mises insistiu que não havia
alternativas a essa questão. Era absurdo
especular sobre algum tipo de terceira via compatível com as demandas e sensibilidades de
um determinado grupo de pessoas. Para Mises, a sociedade
só era viável caso os direitos de propriedade fossem respeitados. E nada mais.
Essa
mensagem repercutiu bem entre os liberais clássicos, que se maravilharam com
tão esplêndida reformulação dos ideais de sua juventude. Mas essas visões de Mises foram recebidas de
maneira bem menos acolhedora pela nova geração de economistas da época, os
quais haviam sido educados em um ambiente intelectual saturado de
estatismo. Seus professores escolares e
universitários já haviam passado a endossar todas as principais ideias a favor
do socialismo: a doutrina do conflito de classes e da luta de classes, a noção
de empobrecimento contínuo das classes operárias sob o capitalismo, e a crença
de que um sistema capitalista livre e desimpedido tendia à formação de
monopólios.
Pelo
lado positivo, Mises já havia destronado em definitivo o socialismo completo
como um ideal político. As energias de
Friedrich Hayek, Fritz Machlup, Gottfried Haberler, Lionel Robbins, François
Perroux e Wilhelm Röpke -- homens que desempenhariam um papel fundamental na
formulação das políticas do mundo ocidental após a Segunda Guerra Mundial --
não mais estavam a serviço da defesa de um governo onipotente. Isso acabou se comprovando de decisiva
importância para o transcurso da história.
Porém, a influência de Mises mostrou-se demasiada fraca para inspirar
neles a coragem necessária para um retorno sincero e dedicado ao tipo de
liberalismo vibrante que havia caracterizado a Escola de Manchester e o
movimento laissez-faire mundial do século XIX.
Mises
ainda não havia publicado seu metódico tratado sobre ciência econômica (Ação Humana), o qual teria ajudado a
esclarecer seu argumento científico em defesa do capitalismo irrestrito. Ele já havia apresentado alguns importantes
elementos de sua teoria econômica geral dos sistemas sociais, porém, antes de
1940, ainda não estava claro como esses elementos estavam correlacionados e nem
em qual estrutura analítica geral eles se baseavam. Em 1940, Mises finalmente publicou o
precursor de Ação Humana, um tratado
geral intitulado Nationalökonomie -- Theorie
des Handelns und Wirtschaftens.
Porém, em 1940, Hayek já tinha 51 anos de idade e já era um acadêmico
consagrado; o livro viera tarde demais para ele, e também tarde demais para o
resto de sua geração -- para os Röpkes, Machlups, Robbins e todos aqueles
outros que Mises havia conseguido afastar do socialismo na década de 1920.
Do
ponto de vista desses homens, as obras anteriores de Mises sobre a
impossibilidade do cálculo econômico no socialismo e sobre a ineficácia do
intervencionismo haviam criado um paradoxo.
Mises havia lhes convencido de que o socialismo completo não era viável
e nem desejável; eles também foram persuadidos de que os sistemas econômicos da
terceira via eram sobrestimados. Porém,
muitos deles não questionaram a alegação, comum à época, de que o liberalismo
do século XIX havia fracassado porque seu programa econômico, o capitalismo
laissez-faire, não havia logrado cumprir suas promessas. Eles acreditavam ser uma simples e trivial
verdade o fato de que um mercado livre e desimpedido tendia à formação de
monopólios, e que as classes operárias do século XIX haviam vivido na miséria
por causa do capitalismo laissez-faire.[1]
Para
esses homens, a teoria havia refutado a viabilidade do socialismo, e a história
havia provado os defeitos do capitalismo.
Era necessário, portanto, uma terceira via -- uma terceira via que
poderia, de alguma forma, contornar a demonstração de Mises de que o
intervencionismo era necessariamente contraproducente. A solução que emergiu na década de 1930
baseava-se em uma construção intelectual que dividia a economia social em dois
elementos: (1) um arranjo institucional, e (2) os processos que ocorriam por si
sós dentro desse arranjo -- mais notavelmente o processo de precificação. De acordo com esse novo credo, o governo não
deveria intervir nos processos, mas deveria sim estabelecer e manter o arranjo
institucional. Esse modelo de concepção
é característico daquilo que veio a ser chamado de neoliberalismo.
Encontramos
uma clara expressão da visão de mundo neoliberal em um artigo que Hayek
escreveu em 1935. Comentando a teoria de
Mises sobre o intervencionismo, Hayek observa que, do argumento de Mises, não
se pode concluir que "a única forma de capitalismo que pode ser racionalmente defendida
é aquela do laissez-faire completo, em seu antigo sentido". Ele continuou:
O reconhecimento do princípio da propriedade privada não
necessariamente implica, de modo algum, que a delimitação dos conteúdos desse
direito pelas leis existentes é a mais apropriada. A questão sobre qual é o mais apropriado
arranjo permanente que irá assegurar o funcionamento mais harmônico e eficiente
da concorrência é da maior importância, e há de se admitir que tal questão tem
sido lamentavelmente negligenciada pelos economistas.[2]
As
raízes da ideologia neoliberal remetem às décadas de 1880 e 1890, quando os
economistas alemães da Escola
historicista alemã de economia e seus discípulos americanos convenceram-se
de que a concentração industrial tinha efeitos prejudiciais para a economia e
que, por isso, algum tipo de moderação por meio da intervenção governamental
fazia-se necessária. Uma das
consequências visíveis dessa mentalidade foi o Sherman Act (Lei Sherman
antitruste), que desde então substituiu o poder dos consumidores pelo poder
dos burocratas. Na Alemanha, a filosofia
da terceira via generalizou-se durante a Sozialpolitik estimulada pelo Kaiser Wilhelm II. A França copiou o modelo, invocando a
necessidade de uma tierce solution, assim como também fizeram os Estados
Unidos sob o New Deal.
Entretanto, as primeiras declarações
programáticas do neoliberalismo foram publicadas somente na década de 1930 --
novamente, e previsivelmente, na Alemanha e nos Estados Unidos. O manifesto mais influente veio do economista
de Chicago Henry Simons, que, em 1934, fez circular uma monografia intitulada A Positive Program for Laissez Faire (Um
Programa Positivo para o Laissez-Faire)
-- no qual a palavra "positivo" indicava que esse programa justificava amplas
intervenções governamentais, ao passo que o laissez-faire clássico era um
programa "negativo", no sentido de que ele não fornecia tal justificativa. Simons exortava o governo a regular a oferta
monetária e o sistema bancário, a impedir a formação de monopólios, e a
fornecer uma renda mínima para os destituídos -- um desvio e tanto do
liberalismo laissez-faire.[3]
Essas ideias expressavam perfeitamente os
sentimentos de uma geração de economistas que haviam sido criados em um
ambiente intelectual inteiramente estatista, mas que no entanto conheciam as
lições ensinadas pelos liberais clássicos.
F.A. Hayek, Wilhelm Röpke, Fritz Machlup, Milton Friedman, Michael
Polanyi, Walter Eucken e vários outros cursaram suas universidades na década de
1920 e início da de 1930, quando adquiriram seus decisivos impulsos
intelectuais. Durante o final da década
de 1930, eles começaram a adquirir cargos mais altos e, após a Segunda Guerra,
acabaram por assumir a liderança intelectual da direita política.[4]
Seu neoliberalismo animou o trabalho
daquelas instituições que surgiram no pós-guerra com o intuito de estancar o
crescimento do estatismo -- mais especificamente a Mont Pèlerin Society e o
Institute for Economic Affairs de Londres.
Atualmente, a agenda neoliberal é propagada por instituições
educacionais como o Institute for Humane Studies, o Cato Institute e a Atlas
Research Foundation.
O
Colóquio de Walter Lippmann
No
final de agosto de 1938, Mises participou de uma histórica reunião entre os
defensores do liberalismo clássico (ao estilo da Escola de Manchester) e os
defensores do neoliberalismo. A
conferência ocorreu em Paris.
O
neoliberalismo era, a princípio, um fenômeno puramente informal. Praticamente todos os seus proponentes eram economistas
que cooperavam entre si em uma rede espontânea formada dentro de algumas poucas
instituições, como a Câmara Internacional de Comércio, em Paris.
Já em meados da década de 1930, a rede havia se
expandido e atingido a massa crítica necessária para se tornar uma organização
mais formal, sob a denominação da nova terceira via. Um importante passo rumo ao surgimento
organizado dessa emergente rede neoliberal foi dado quando, em 1937, o
jornalista americano Walter Lippmann publicou um manifesto neoliberal
intitulado Inquiry into the Principles of
the Good Society (Algo como Investigação
dos Princípios da Boa Sociedade).[5]
O
livro gerou grande interesse entre os neoliberais europeus porque Lippmann
conseguiu expressar de maneira eloquente tudo o que eles sentiam e acreditavam
em relação às raízes da atual crise econômica e política. Aqueles que ainda se classificavam apenas
como liberais, embora rejeitassem o socialismo, também não queriam ser
associados muito explicitamente à doutrina laissez-faire da Escola de
Manchester. Lippmann colocou-se como
oposição tanto aos liberais clássicos quanto aos agitadores socialistas
contemporâneos. Esse posicionamento
centrista de Lippmann satisfez a mentalidade pragmática de seus conterrâneos. Os americanos tinham a tendência de assumir
uma postura mais metódica e prática para resolver conflitos políticos,
procurando resolvê-los por meio de negociações e concessões. Lippmann astutamente descreveu tanto os
socialistas quanto os manchesterianos como doutrinários teimosos e
inflexíveis. Ele contrastou esses
"extremistas" consigo próprio, comparando a intratabilidade deles à sua postura
bem mais pragmática. Isso repercutiu bem
entre os economistas neoliberais da Europa continental do período entre
guerras, os quais discordavam de Lippmann apenas quanto aos detalhes que
idealizavam para a Boa Sociedade.
Um
destes era Louis Rougier (1889--1982), filósofo da Universidade de Paris e
diretor do "Centre Danubien". Rougier
considerou o livro de Lippmann uma brilhante exposição a respeito de um
consenso que havia emergido entre os acadêmicos liberais no passado recente,
mais notavelmente em livros de Mises, Robbins, Lavergne, Marlio e Jacques
Rueff.[6] Ele
rapidamente providenciou uma edição francesa do livro[7]
e aproveitou a ocasião para realizar um colóquio de cinco dias em Paris "com a
ideia de analisar o processo do capitalismo e tentar definir a doutrina, as
condições necessárias para sua implantação, e as novas responsabilidades de um
verdadeiro liberalismo."[8]
O
evento ocorreu entre os dias 26 e 30 de agosto de 1938 no Instituto
Internacional de Cooperação Intelectual, contando com a participação de representantes
de várias correntes do liberalismo.
Esses homens podiam ser divididos em pelo menos quatro grupos com visões
nitidamente distintas a respeito da história, da teoria e da agenda política do
liberalismo moderno.
O
primeiro grupo, que representava a corrente predominante do neoliberalismo, era
a favor não somente de concessões táticas, mas também teóricas ao socialismo
coercivo. Eles estavam dispostos a fazer
concessões a respeito de qualquer item que porventura pudesse tornar sua agenda
geral mais palatável para o eleitor. Sua
posição poderia ser classificada como social democracia "pró-mercado".
O
segundo grupo era pequeno e formado por homens como Hayek, que estavam
insatisfeitos com vários aspectos do liberalismo clássico e endossavam uma
maior abrangência para a intervenção governamental. Em contraposição ao primeiro grupo,
entretanto, sua preocupação fundamental era com a liberdade individual e, com
tempo, justamente em decorrência dessa preocupação, eles foram assumindo uma
postura crescentemente radical, aproximando-se cada vez mais da posição
liberal-clássica.
O
terceiro grupo era igualmente pequeno e formado por homens como Alexander
Rüstow, relutantes em apoiar completamente o liberalismo clássico porque tinham
como principal objeção a essa teoria a igualdade de direitos defendida pelos seus
proponentes. Esse grupo argumentava que a
existência de uma hierarquia era absolutamente necessária para a manutenção de
uma sociedade livre, porque somente a autoridade subentendida na ordem
hierárquica poderia efetivamente transmitir a tradição cultural da
liberdade. O grande erro da Revolução
Francesa havia sido não apenas o fato de ela ter abolido a hierarquia coerciva
do Ancien Régime, mas também de ter
aniquilado por completo a própria ideia de hierarquia. Em seu fervor igualitário, a hierarquia
natural havia sido exterminada junto com a hierarquia coerciva.
Finalmente,
no quarto grupo, Ludwig von Mises defendia políticas laissez-faire do século
XIX assentadas em refinadas bases teóricas que ele próprio havia desenvolvido
ao longo dos últimos dezoito anos. Na
década de 1930, ele já era reconhecido tanto dentro quanto fora dos círculos
libertários como o mais importante representante contemporâneo da Escola de
Manchester.
O
Colóquio de Lippmann demonstrou que três das descobertas de Mises haviam tido
um profundo impacto sobre os neoliberais.
Primeiro, sua demonstração de que o cálculo econômico sob o socialismo
era impossível havia libertado-os de todas as ilusões de que uma nação
completamente socialista era exequível ou mesmo desejável em termos
econômicos. Segundo, o argumento do
cálculo socialista havia convencido-os de que o sistema de preços formado em
ambiente de livre concorrência era de máxima importância e uma característica
definidora do livre mercado. Terceiro,
eles endossavam o argumento original de Mises em favor do liberalismo, o qual
enfatizava que uma ordem social baseada na propriedade privada era o único
sistema viável para gerar a divisão do trabalho.
As
duas últimas descobertas, no entanto, foram distorcidas de modo a se adequarem
à agenda intervencionista neoliberal. Ao
passo que Mises havia simplesmente declarado que uma divisão do trabalho
baseada no cálculo de preços poderia ocorrer apenas onde existisse a
propriedade privada, os neoliberais planejavam manipular os sistemas institucional
e jurídico com o intuito de "aprimorar" a divisão espontânea do trabalho gerada
naturalmente pelo laissez-faire. Para
aqueles homens, o mercado era crucialmente importante, mas eles acreditavam que
a intervenção governamental poderia acentuar a "eficiência" e a
"imparcialidade" do processo de mercado.
Ao contrário dos socialistas, os neoliberais acreditavam que o mercado
levaria a sociedade à direção correta; porém, ao contrário dos liberais
clássicos, eles acreditavam que um mercado livre e desimpedido geraria
resultados aquém do seu verdadeiro potencial.
Em
um prefácio para a primeira edição alemã do Boa Sociedade (1945), Wilhelm Röpke
enfatizou que as políticas neoliberais estavam orientadas para a otimização da
máquina social:
Destarte, a questão não é: ser a favor ou contra o
laissez-faire? Antes, a questão deve
ser: qual ordem jurídica [Rechtsordnung]
condiz com uma arranjo econômico que seja justo, livre, que gere a maior
produtividade e que seja baseado em uma sofisticada divisão do trabalho?[9]
Como
consequência dessa interpretação peculiar da teoria de Mises sobre os sistemas
sociais, os neoliberais também reinterpretaram o significado das constatações de
Mises a respeito da importância de um sistema de preços formado em ambiente de
livre concorrência. Mises havia
argumentado que uma divisão racional do trabalho poderia ocorrer apenas se
houvesse preços de mercado para os fatores de produção -- algo que, por sua
vez, requeria a propriedade privada desses fatores. Em contraposição, os neoliberais centraram-se
exclusivamente nos preços em si, menosprezando justamente as condições que
permitiam o fenômeno da livre formação de preços. Para eles, a conclusão prática do argumento
da impossibilidade do cálculo sob o socialismo não era a de que o governo não
deveria interferir na propriedade, mas sim a de que ele deveria abster-se de
intervir nos preços especificamente.
No
colóquio, Lippmann foi elogiado por ter feito uma distinção entre "intervenções
compatíveis com o mercado" e intervenções incompatíveis com o funcionamento de
uma economia de mercado.[10] Apenas a interferência direta sobre o
funcionamento do mecanismo de preços era ilegítima. Se o governo se limitasse a controlar apenas
o arranjo institucional dentro do qual os participantes do mercado teriam a
liberdade de realizar seus projetos como desejado, então essa intervenção
governamental seria irrepreensível do ponto de vista neoliberal.
O
que unificava as teorias neoliberais do pós-guerra era uma tentativa de
justificar a liberdade em alguns casos e
a violenta intervenção estatal em outros, por meio da mesma e única
teoria. Os mais importantes produtos
desse esforço foram a teoria dos bens públicos e a teoria de Chicago (Ronald
Coase) sobre direito e economia.
Mises
criticou implacavelmente o modo como os neoliberais interpretaram o seu
argumento da impossibilidade do cálculo econômico sob o socialismo. Pare ele, a distinção arbitrária entre o
"funcionamento do mecanismo de preços" e a "estrutura do mercado" era absurda e
sem sentido. A natureza de toda e
qualquer intervenção governamental é a de violar os direitos de propriedade,
desta forma afetando o mecanismo de preços em
todos os casos. Embora seja verdade
que determinados fenômenos resultam apenas da interferência direta no processo
de formação de preços -- escassez e superabundância, mais notavelmente --, o
problema principal, que é o cálculo econômico, permanece.
Em
última instância, é irrelevante se a intervenção governamental interfere
diretamente nos preços ou indiretamente por meio da "estrutura" da formação de
preços. Em ambos os casos, os preços de
mercado são deturpados.
A ascensão de Hayek
A
mais visível reviravolta no destino do liberalismo clássico ocorreu em 18 de
setembro de 1944. Nesse dia, o livro de
F.A. Hayek, O Caminho da Servidão,
foi lançado nos EUA e recebido com enorme e imediato sucesso. A revista Reader's Digest condensou o livro
em suas publicações, as quais tiveram mais de um milhão de cópias distribuídas
pelo Book-of-the-Month Club (Clube do Livro do Mês). Instantaneamente, Hayek havia se tornado uma
celebridade internacional.
Ninguém
ficou mais surpreso com os eventos do que o próprio Hayek e sua editora. Havia quatro fatores contribuindo para esse
sucesso inesperado. Primeiro, Hayek não
utilizou absolutamente nenhum argumento original; ele apenas abordou de maneira
particularmente eloquente e sofisticada uma posição que, antes da guerra, já
havia encontrado grande aclamação entre o público americano. O argumento central de O Caminho da Servidão era o fato de que mais poderes para o governo
eram equivalentes a uma redução da soberania dos indivíduos, e que o total
controle do governo transforma os cidadãos em escravos -- independentemente de
o estado totalitário ser fascista ou comunista.
Segundo, os anos de guerra haviam acelerado dramaticamente esse aumento
de poderes do governo americano, e o livro de Hayek gerou conscientização e apreensão
em relação a esse fato entre um grande número de pessoas. Terceiro, novamente fazendo eco a outros
neoliberais, Hayek defendeu aquilo que parecia ser uma pragmática solução
centrista e que, por isso, possuía grande apelo junto ao povo americano. Ele enfatizou que não estava defendendo o
laissez-faire, mas sim um novo tipo de liberalismo.[11]
Quarto, e finalmente, Hayek usufruía a total autoridade de um economista
acadêmico que já era muito conhecido e respeitado no Reino Unido, um fato que
até hoje pode excitar o complexo de inferioridade intelectual dos americanos.
Para
os mais resolutos defensores da liberdade, o neoliberalismo de Hayek era excessivamente
brando e tolerante para com o governo. O
programa positivo de O Caminho para a
Servidão deixava o governo no controle da vida econômica. A economia ainda era para ser planejada, com
o governo no controle de todo o planejamento.
Hayek meramente sugeria que esse planejamento fosse voltado para a exortação
da concorrência, e não para o controle detalhado de todos os participantes do
mercado. Sob qualquer ponto de vista,
essa era uma abordagem ingênua, e alguns pensavam até que era também indefensável
do ponto de vista intelectual.
Comentando sobre o programa de Hayek, Frank Chodorov exclamou: "Quanta
tolice!", e fez questão de deixar claro que achava que o programa beirava a
covardia intelectual.[12]
Mises
ficou muito contente com o sucesso do livro.
Entretanto, ele também achou que Hayek defendeu seu argumento em termos
equivocados. Hayek havia apontado o
planejamento econômico como a causa fundamental das várias políticas que
ameaçavam as liberdades políticas e econômicas.
Mas não há perigo no ato do planejamento per se. A questão real é: quem deve fazer o planejamento e como os
planos devem ser realizados? Deveria
haver apenas um plano imposto pelo poder do estado sobre todos os
cidadãos? Ou deveria haver vários planos
diferentes, cada um feito por indivíduos distintos ou por chefes de
família? Mises enfatizou essa crucial
distinção em um discurso feito a 30 de março de 1945 na American Academy of
Political Science. Ele deixou implícito
o fato de que seu discurso era uma análise crítica do livro de Hayek.[13]
A Conferência da Sociedade Mont Pèlerin
A
primeira conferência da Sociedade Mont Pelèrin começou em 1º de abril de 1947
nos alpes suíços, aos pés do Monte Pèlerin, no Lago de Genebra, e durou dez
dias. Mises havia saído de Nova York no
dia 25 de março, curioso para ver a Europa novamente após uma ausência de quase
sete anos. O encontro tinha uma agenda mínima,
permitindo uma grande margem de improvisação para que os participantes pudessem
determinar os assuntos que eles gostariam de discutir ao longo dos dias
vindouros.

Primeiro encontro da Mont Pèlerin
Society em 1947; Robbins na extrema esquerda, Machlup, em frente à janela da
esquerda, Hayek, no centro, e, no grupo da direita, Rappard, Mises, Eucken,
Stigler
Mises
e Leonard Read, F.A. "Baldy" Harper e V. Orval Watts da Foundation for Economic
Education, bem como Hanry Hazlitt e H.J. Davenport (Revista Fortune) representavam a ala
manchesteriana do encontro. Hayek,
Milton Friedman e Fritz Machlup eram os neoliberais. Pessoas como Walter Eucken, Harry Gideonse,
Bertrand de Jouvenel, Frank Knight, Michael Polanyi, Karl Popper, Wilhelm Röpke
e George Stigler representavam os social-democratas liberais. Maurice Allais e Lionel Robbins representavam
a extrema esquerda da conferência.
Allais
não conseguiu sequer endossar a vaga "declaração de metas" que todos os outros
participantes aprovaram no dia 8 de abril.
Em
seu discurso de abertura, Hayek determinou a agenda para a reconstrução
ideológica do movimento liberal-clássico do pós-guerra. Tal agenda envolvia, Hayek explicou, de um
lado "expurgar da teoria liberal tradicional certos acréscimos acidentais que
foram anexados a ela no decorrer do tempo" e, do outro, "enfrentar
corajosamente alguns problemas reais que um liberalismo ultra-simplificado
esquivou-se de enfrentar ou que se tornaram aparentes apenas desde que se
transformaram em um credo um tanto estacionário e rígido"[14]
Como
os acontecimentos posteriores iriam mostrar, o significado concreto do seu
programa era (1) isentar de culpa o liberalismo clássico contra certas críticas
muito difundidas e generalizadas, como, por exemplo, a de que as políticas que
ele havia inspirado levaram à miséria em massa; (2) distinguir o "moderno"
liberalismo do sua modalidade laissez-faire anterior.
Alguns
do outros discursos programados, entretanto, foram mais "neo" e menos
"liberais". Por exemplo, o economista
alemão Walter Eucken explicou que a legislação anti-monopólio não era
suficiente para combater monopólios.
Legislações adicionais eram necessárias no campo do direito corporativo,
da lei de patentes e da lei de marcas comerciais. Ele defendia duas máximas da política
econômica. Primeiro, embora devesse
haver liberdade de contrato, essa liberdade não poderia de maneira alguma
limitar da qualquer forma que fosse a liberdade de contrato de terceiros. Segundo, participantes do mercado que fossem
monopolistas deveriam ser forçados a se comportarem como se estivessem sob
"concorrência" -- produzindo as mesmas quantidades e vendendo-as aos mesmos
preços que existiriam sob um arranjo "concorrencial".
Em
suma, Eucken ofertou a mesma agenda intervencionista que já havia dominado o
Colóquio de Lippmann em 1938. Naquela
época, Mises estava em sua lua de mel em Paris, o que pode explicar o fato de
suas contribuições para a discussão terem sido atipicamente mansas. Porém, agora, nove anos depois, sua lua de mel
já tinha acabado. Ele reagiu com grande
determinação e defendeu sua posição laissez-faire tão vigorosamente que, muitos
anos depois, seu amigo Lawrence Fertig ainda se lembrava dos detalhes do
debate. Milton Friedman concordou:
Nossas seções foram marcadas por vigorosas controvérsias
acerca de assuntos como o papel da religião e dos valores morais em
possibilitar e preservar uma sociedade livre; o papel dos sindicatos e a ação
apropriada do governo para afetar a distribuição de renda. Eu particularmente me lembro de uma discussão
sobre o assunto, no meio da qual Ludwig von Mises levantou-se, virou-se para os
participantes e proclamou "Vocês são todos um bando de socialistas", e saiu
pisando duro da sala. Tal reunião não
continha uma única pessoa que poderia, mesmo pelos mais baixos padrões, ser
considerada socialista.[15]
Friedman
não especificou o que ele quis dizer com "mais baixos padrões". Em todo caso, embora Mises fosse capaz de ter
alta estima por socialistas, o incidente mostrou que ele tinha pouca paciência
com socialistas que faziam pose de liberais.
O debate entre Mises e seus oponentes neoliberais deu o tom e definiu os
rumos da Sociedade Mont Pèlerin nos anos vindouros. Wilhelm Röpke mais tarde viria a prestar uma
amigável homenagem a Mises, ainda que este tenha feito "comentários sarcásticos
a respeito do espírito não iluminado de vários de seus membros", incluindo o
próprio Röpke.[16]
Embora
os libertários ao redor de Mises formassem uma pequena minoria, eram
eles que
tinham o suporte financeiro dos principais patrocinadores americanos,
como o
Volker Fund, sem os quais a Sociedade teria rapidamente morrido naqueles
primórdios. Enquanto Mises mantivesse uma
participação ativa nas reuniões, portanto, era impossível avançar nas
discussões sobre detalhes técnicos acerca de intervencionismos
governamentais aprováveis. O laissez-faire havia ressurgido. Não era a
opinião da maioria, mas era uma
opção política debatível e debatida -- e mostrou-se excessiva para
alguns dos
membros iniciais, como Maurice Allais, que rapidamente deixou a
Sociedade
exatamente por esse motivo.[17]
Não
obstante as desavenças fundamentais, a conferência foi um sucesso. Em 9 de abril, algo em torno de quarenta
participante criaram a Sociedade Mont Pèlerin e elegeram Hayek como presidente.
_____________________________________________________________
O artigo acima foi uma compilação de vários
trechos do magistral livro Mises
-- The Last Knight of Liberalism, de Jörg Guido Hülsmann. Dez exemplares estarão à venda durante o II Seminário de Escola Austríaca
promovido pelo IMB nos dias 9 e 10 de abril em Porto Alegre.
Notas
[1] Foi somente após a Segunda Guerra Mundial que uma revisão
da performance histórica do capitalismo do século XIX corrigiu essas falsas
informações. Os tímidos primórdios desse esforço podem ser encontrados em F.A. Hayek, ed., Capitalism
and the Historians (Chicago: University of Chicago Press, 1954).
[2] Hayek,
"The Nature and History of the Problem," in Individualism and Economic Order
(Chicago: University of Chicago Press, 1948), p. 135.
[3] H.C.
Simons, A Positive Program for Laissez-Faire. Some Proposals for a Liberal
Economic Policy (Public policy pamphlet no. 15; Chicago: University of Chicago
Press, 1934).
[4] Alguns deles, mais notavelmente Hayek, mais tarde viriam
a adotar uma postura mais laissez-faire. Porém, isso só ocorreria em uma época em que o
rolo compressor neoliberal já estava a todo vapor.
[5] Walter
Lippmann, Inquiry into the Principles of the Good Society (Boston: Little,
Brown & Co., 1937).
[6] Louis
Rougier, "Préface," Le Colloque Walter Lippmann (Paris: Librairie de
Médicis, 1938).
[7] Walter Lippmann, La Cité Libre (Paris: Librairie de
Médicis, 1938).
[8] Louis Rougier, "Préface." Ele mais tarde viria a
enfatizar que o propósito era definir o neoliberalismo. Ver Louis Rougier, "Le Néo-libéralisme," Synthèses
(Dezembro de 1958).
[9] Wilhelm Röpke, "Einführung," in Walter Lippmann, Die
Gesellschaft freier Menschen (Bern: Francke, 1937), p. 32. Como esse
prefácio mostra, Röpke tornou-se altamente influenciado pelo trabalho de
Lippmann, o qual ele acreditava ter tido um tremendo impacto sobre o movimento
neoliberal.
[10] Rüstow se vangloriava de ter cunhado a frase "liberaler
Interventionismus" (intervencionismo liberal-clássico) ainda em 1932. Ver a cópia de sua carta para Volkmar
Muthesius, datada de 23 de maio de 1955; Grove City Archive: Muthesius file.
[11] F.A. Hayek, The Road to Serfdom
(Chicago: University of Chicago Press, 1944), pp. 17, 36.
[12]
Frank Chodorov, "What This Country Needs Is Guts," ("O que esse país precisa é
de coragem"), analysis 2 (Fevereiro de 1946): 3.
[13]
O discurso de Mises foi originalmente publicado como "Planning for Freedom",
junto com um discurso feito por Rufus S. Tucker à mesma platéia, em um panfleto
de 24 páginas: Economic Planning (New York: Dynamic America, 1945), pp.
3-12. Em uma carta para Selma Fuller,
Mises exalta as virtudes de O Caminho da Servidão, mas reconhece a justeza da
postura crítica de Fuller ao livro.
O
programa positivo desenvolvido por Hayek é de menor importância quando
comparado às virtudes do livro.
Entretanto, é muito reconfortante o fato de que seus amigos foram
sagazes o bastante para ver as contradições deste programa. (Mises para Fuller,
carta manuscrita em 14 de novembro de 1944; Grove City Archive: Fuller files)
[14] F.A. Hayek, "Opening Address to
a Conference at Mont
Pèlerin," Studies in Philosophy, Politics, and Economics (Chicago: University
of Chicago Press, 1967), p. 148.
[15] Milton Friedman e Rose D.
Friedman, Two Lucky People: Memoirs (Chicago: University of Chicago Press,
1998), p. 161.
[16] Wilhelm Röpke, "Homage to a
Master and a Friend," The Mont
Pèlerin Quarterly (October 1961): p. 5.
[17]
Possivelmente a visita de Allais à Foundation for Economic Education, em
outubro de 1947, reforçou suas convicções de que os libertários americanos eram
radicais demais para seu gosto.