Entrevista concedida ao site suíço, de orientação pró-livre mercado, The Daily Bell.
Daily Bell: Por favor, responda a essas perguntas como se
nossos leitores não estivessem familiarizados com sua grande obra e com suas
opiniões já formadas. Vamos direto ao
ponto. Por que a democracia é o "deus que falhou"?
Hoppe: A forma tradicional do estado, anterior a essa
atual, era a da monarquia (absolutista).
O movimento democrático foi um movimento direcionado contra os reis e
contra as classes de nobres hereditários.
A monarquia era criticada como sendo incompatível com o princípio básico
de "igualdade perante a lei". Ela se
baseava em privilégios e era injusta e exploradora. Logo, a democracia supostamente deveria representar
uma solução para essa situação. Ao
permitir a participação e a livre entrada no aparato estatal para todas as
pessoas em termos iguais -- alegaram os defensores da democracia --, a
igualdade perante a lei tornar-se-ia uma realidade, e a genuína liberdade
reinaria. Porém, toda essa premissa está
imensamente equivocada.
É verdade que, sob a
democracia, qualquer um pode se tornar rei, por assim dizer, e não apenas um
círculo privilegiado de pessoas. Assim,
em uma democracia, em teoria, privilégios pessoais
não existem. Entretanto, privilégios
funcionais e funções privilegiadas existem copiosamente. Os funcionários públicos, ao agirem dentro de
seus ditames, são governados e protegidos pela "lei pública" -- isto é, por leis
válidas para o que é público --, e consequentemente ocupam uma posição
privilegiada em relação às pessoas que vivem sob a autoridade da "lei privada"
-- isto é, das leis válidas para o que é privado.
Mais especificamente, os
funcionários do estado têm permissão para financiar ou subsidiar suas próprias
atividades por meio de impostos. Ou
seja, eles podem praticar e viver à custa de atitudes que, em âmbito privado,
nas relações entre cidadãos comuns, são proibidas e consideradas "assalto" e "espoliação". Consequentemente, os privilégios e a
discriminação legal -- bem como a distinção entre soberanos e súditos -- não
desaparecem na democracia.
Pior ainda: sob a
monarquia, a distinção entre soberanos e súditos é clara. Eu sei, por exemplo, que eu jamais me
tornarei um rei, e exatamente por isso eu vou oferecer resistência a toda e
qualquer tentativa do rei de aumentar impostos.
Já sob a democracia, a distinção entre soberanos e súditos se torna
obscura. Surge a ilusão de que "nós
governamos a nós mesmos", fazendo com que a resistência contra o aumento da
tributação seja correspondentemente diminuída.
Eu posso até terminar do lado recebedor -- alguém que recebe dinheiro de
impostos ao invés de alguém que paga impostos.
Nesse caso, é claro que verei a tributação de maneira bem mais
favorável.
E mais ainda: sendo um
monopolista hereditário, um rei considera o território de seu país e as pessoas
sob seu domínio como sua propriedade pessoal.
Consequentemente, ele irá incorrer em uma exploração monopolística dessa
"propriedade". Sob a democracia, o
monopólio e a exploração monopolística não desaparecem. Ao contrário, o que ocorre é o seguinte: ao
invés de um rei e de uma aristocracia que consideram o país sua propriedade
privada, coloca-se um zelador temporário no comando monopolista do país. Ele não é o proprietário do país, porém,
enquanto ele estiver no poder, ele poderá utilizá-lo legalmente para benefício
seu e de seus favoritos. Ele está no
comando, podendo usufruir o poder, mas ele não é o dono do estoque de capital
do país. Isso logicamente não vai
eliminar a exploração. Pelo contrário:
fará com que a exploração seja menos calculista e executada com pouca ou
nenhuma consideração para com o estoque de capital (riqueza) do país - ou seja,
os regentes inevitavelmente terão uma visão imediatista das coisas. A exploração será ainda mais intensa, e o
consumo de capital será sistematicamente promovido.
Daily Bell: Se a democracia fracassou, o que o senhor
colocaria em seu lugar? Qual a sociedade
ideal? O anarcocapitalismo?
Hoppe: Prefiro o termo "sociedade de leis privadas". Em uma sociedade de leis privadas (isto é,
leis válidas para o que é privado), cada indivíduo e cada instituição estão
sujeitos ao mesmo e único arranjo de leis.
Nenhuma lei pública concedendo privilégios a pessoas ou cargos
específicos existiria nessa sociedade.
Haveria apenas a propriedade privada e as leis aplicáveis para o que é
privado, sendo que as leis são igualmente aplicáveis para absolutamente todos
os indivíduos. Ninguém poderia
legalmente adquirir propriedade por meios que não fossem a produção, as trocas
voluntárias ou a apropriação original de recursos naturais que ainda não possuíssem
donos legítimos. Ninguém possuiria o
privilégio de tributar e expropriar.
Ademais, ninguém poderia proibir outra pessoa de utilizar sua
propriedade para entrar em qualquer setor da economia que ela desejasse para
poder concorrer no mercado contra quem ela quisesse.
Daily Bell: Como a lei e a ordem seriam ofertadas nessa
sociedade? Como seu sistema ideal de
justiça funcionaria?
Hoppe: Em uma sociedade de leis privadas, a produção de
lei e ordem -- de segurança -- seria feita por indivíduos e agências livremente
financiados, concorrendo entre si por uma clientela disposta a pagar (ou a não
pagar) voluntariamente por tais serviços -- exatamente como ocorre com a
produção de todos os outros bens e serviços.
Como esse sistema funcionaria é algo que pode ser melhor compreendido ao
contrastarmos tal sistema com o funcionamento do nosso atual e totalmente
conhecido sistema estatista. Se
quisermos resumir em uma única palavra a diferença (e a vantagem) decisiva
entre uma indústria de segurança operando em ambiente concorrencial e a atual
prática estatista, essa palavra seria: contrato.
O estado opera em um
vácuo jurídico. Não existe nenhum
contrato entre o estado e seus cidadãos.
Não está determinado contratualmente o que de fato pertence a quem;
consequentemente, não está determinado o que deve ser protegido. Não está determinado qual serviço o estado
deve fornecer, nem o que deve acontecer caso o estado falhe em cumprir seu
dever, e nem qual preço o "consumidor" de tais "serviços" deve pagar. Ao contrário: o estado determina
unilateralmente as regras do jogo, podendo mudá-las, por mera legislação,
durante o jogo.
Obviamente, tal
comportamento seria inconcebível para fornecedores de serviços de segurança
financiados livremente. Apenas imagine
um fornecedor de serviços de segurança -- seja uma polícia, uma seguradora ou
um tribunal de arbitragem -- cuja oferta consistisse em algo mais ou menos
assim: "Eu não vou contratualmente garantir nada a você; não irei lhe dizer o
que estou obrigado a fazer caso você não fique satisfeito com meus serviços. Porém, mesmo assim, eu me reservo o direito
de determinar unilateralmente o preço que você deve me pagar por tais serviços
indefinidos." Qualquer fornecedor de
serviços de segurança desse tipo iria imediatamente desaparecer do mercado em
decorrência de uma total falta de clientes.
Ao invés de agir assim,
cada produtor de serviços de segurança, sempre financiado livremente, teria de
oferecer um contrato aos seus clientes em potencial. E esses contratos -- a fim
de serem considerados aceitáveis para consumidores que estão pagando
voluntariamente por eles -- devem conter cláusulas e descrições totalmente
claras, bem como serviços e obrigações mútuas claramente definidos. Cada uma das partes do contrato, ao longo de
sua duração e até o vencimento do contrato, estaria vinculada a ele de acordo
com seus termos e condições; e qualquer mudança nos termos ou nas condições
iria requerer o consentimento unânime de todos os lados envolvidos.
Mais especificamente,
para serem tidos como aceitáveis por seus potenciais compradores, esses
contratos teriam de conter cláusulas especificando o que será feito no caso de
um conflito ou desavença entre a agência de segurança (ou seguradora) e seus
segurados, bem como no caso de um conflito entre diferentes agências de
proteção e seus respectivos clientes. E,
nesses casos, apenas uma solução mutuamente acordada é possível: os lados em
discórdia concordariam contratualmente em recorrer a um tribunal de arbitragem
comandado por algum agente que seja independente e que goze da confiança mútua desses
dois lados.
E quanto a esse agente,
ele também deve ser financiado no livre mercado, além de sofrer a concorrência
de vários outros arbitradores e agências de arbitragem. Seus clientes -- isto é, as seguradoras e os
segurados -- esperam que ele dê um veredito que seja reconhecido por todos como
sendo justo e imparcial. Somente
arbitradores capazes de dar vereditos justos e imparciais terão êxito no
mercado de arbitramento. Arbitradores
incapazes disso, e consequentemente vistos como parciais ou tendenciosos, irão
desaparecer do mercado.
Daily Bell: Então o senhor está negando que precisamos do
estado para nos defender?
Hoppe: Sim. O
estado não nos defende; ao contrário,
o estado nos agride, confisca nossa
propriedade e a utiliza para se defender a si
próprio. A definição padrão do
estado é essa: o estado é uma agência caracterizada por duas feições exclusivas
e logicamente conectadas entre si.
Primeiro, o estado é uma agência que exerce o monopólio compulsório da
jurisdição de seu território; o estado é o tomador supremo de decisões. Ou seja, o estado é o árbitro e juiz supremo
de todos os casos de conflito, incluindo aqueles conflitos que envolvem ele
próprio e seus funcionários. Não há
qualquer possibilidade de apelação que esteja acima e além do estado. Segundo, o estado é uma agência que exerce o
monopólio territorial da tributação. Ou
seja, é uma agência que pode determinar unilateralmente o preço que seus
súditos devem pagar pelos seus serviços de juiz supremo. Baseando-se nesse arranjo institucional, você
pode seguramente prever quais serão as consequências.
Primeiro, ao invés de
impedir e solucionar conflitos, alguém que possua o monopólio da tomada suprema
de decisões irá gerar e provocar conflitos com o intuito de
resolvê-los em benefício próprio. Isto
é, o estado não reconhece e protege as leis existentes, mas as distorce e
corrompe por meio da legislação.
Contradição número um: o estado é um infrator protetor das leis.
Segundo, ao invés de
defender e proteger alguém ou alguma coisa, um monopolista da tributação irá
invariavelmente se esforçar para maximizar
seus gastos com proteção e ao mesmo tempo minimizar a real produção de
proteção. Quanto mais dinheiro o estado
puder gastar e quanto menos ele tiver de trabalhar para obter esse dinheiro,
melhor será a sua situação. Contradição
número dois: o estado é um expropriador protetor da propriedade.
Daily Bell: Existe alguma lei ou regulamentação boa?
Hoppe: Sim.
Existem algumas leis simples e boas que praticamente todo mundo
reconhece intuitivamente, e as quais podemos demonstrar serem leis "verdadeiras" e "boas".
Primeiro:
se não houvesse conflitos entre indivíduos e todos nós vivêssemos em perfeita
harmonia, não haveria nenhuma necessidade de leis ou normas. O propósito de leis ou normas é justamente o
de ajudar a evitar conflitos que de outra forma seriam inevitáveis. Somente as leis que atingem esse objetivo podem
ser chamadas de leis boas. Uma lei que gera conflitos ao invés de ajudar a
evitá-los é contrária ao propósito intrínseco de qualquer lei -- ou seja,
trata-se de uma lei ruim, disfuncional e corrupta.
Segundo:
conflitos ocorrem porque vivemos em um mundo de escassez, onde os bens são escassos. As pessoas entram em choque porque querem
utilizar exatamente o mesmo bem de maneiras distintas e incompatíveis. Ou eu venço a briga e utilizo tal bem do meu
jeito, ou você vence e utiliza tal bem do seu jeito. É impossível que nós dois saiamos "ganhadores". No caso de bens escassos, portanto, são
necessárias regras ou leis que nos ajudem a solucionar reivindicações rivais e
conflituosas. Em contraste, bens que são
"gratuitos" -- isto é, bens que existem em superabundância, que são
inesgotáveis ou infinitamente reproduzíveis -- não são e nem podem ser fonte de
conflito. Quando eu utilizo um bem não
escasso, isso de modo algum implica a diminuição da quantidade disponível deste
bem para você. Posso fazer o que eu
quiser com este bem ao mesmo tempo em que você também pode fazer o que quiser
com ele. Não há perdedores. Ambos saímos ganhadores. Portanto, no que diz respeito a bens não
escassos, nunca haverá a necessidade de qualquer tipo de lei.
Terceiro:
todos os conflitos relacionados ao uso de bens escassos, portanto, poderão ser
evitados apenas se cada bem for propriedade
privada, isto é, se cada bem escasso for exclusivamente controlado por um
indivíduo (ou grupo de indivíduos) específico -- e não por vários indivíduos
não especificados --, e sempre for deixado claro qual bem é propriedade de
quem, e qual não é. E, para que os
conflitos fossem evitados desde o início
da humanidade, por assim dizer, seria necessário ter uma regra determinando
que a primeira apropriação original
de algum recurso escasso e até então sem dono configuraria propriedade privada.
Em suma, portanto,
existem essencialmente três "leis boas" que podem garantir uma interação humana
sem a ocorrência de conflitos (ou a "paz eterna"):
a) aquele que se
apropria de algo até então sem dono torna-se o seu proprietário exclusivo (na
condição de primeiro proprietário, ele logicamente não entrou em conflito com
ninguém, dado que todas as outras pessoas apareceram em cena apenas mais tarde);
b) aquele que produz
algo utilizando tanto o seu próprio corpo quanto os bens dos quais se apropriou
originalmente torna-se o proprietário único e legítimo do produto de seu
trabalho -- desde que ele, nesse processo, não danifique a integridade física
da propriedade de terceiros; e
c) aquele que adquire um
bem de algum proprietário por meio de uma troca voluntária -- isto é, uma troca
considerada a priori como mutuamente
benéfica -- torna-se o novo proprietário desse bem.
Daily Bell: Como então podemos definir a liberdade? Seria a
ausência de coerção estatal?
Hoppe: Uma sociedade é livre quando reconhece que cada
indivíduo é o proprietário exclusivo de seu próprio (e escasso) corpo físico;
quando os indivíduos são os donos exclusivos do fruto de seu próprio trabalho;
quando os indivíduos são livres para se tornarem proprietários de bens até
então sem donos definidos, tornando-os propriedade privada; quando qualquer
indivíduo é livre para utilizar seu corpo e seus bens apropriados originalmente
para produzir qualquer coisa que ele queira produzir (sem com isso danificar a
integridade física da propriedade de terceiros); e quando todos os indivíduos
são livres para fazerem contratos com outros indivíduos envolvendo as suas
respectivas propriedades da maneira como acharem mais mutuamente benéfica. Qualquer interferência nesses arranjos
constitui um ato de agressão. O grau de
liberdade de uma sociedade pode ser medido na intensidade com que ela pratica
tais agressões.
Daily Bell: Qual a sua posição a respeito de direitos
autorais? O senhor também crê que
propriedade intelectual é algo que não existe, como argumentou seu amigo Stephan Kinsella?
Hoppe: Eu concordo com meu amigo Kinsella. A ideia de direitos de propriedade
intelectual não apenas é errada e confusa, como também é muito perigosa. E eu já comentei por que é assim. Ideias -- receitas, fórmulas, declarações,
argumentações, algoritmos, teoremas, melodias, padrões, ritmos, imagens etc. --
certamente são bens (na medida em que são bons e úteis), mas não são bens
escassos. Tão logo as ideias são
formuladas e enunciadas, elas se tornam bens não escassos, inexauríveis. Suponha que eu assobie uma melodia ou escreva
um poema, e você ouça a melodia ou leia o poema e, ato contínuo, os reproduza
ou copie. Ao fazer isso, você não expropriou
absolutamente nada de mim. Eu posso
assobiar e escrever como antes. Com
efeito, o mundo todo pode copiar de mim e, ainda assim, nada me foi tomado. (Se eu não quiser que ninguém copie minhas
ideias, tudo que eu tenho de fazer é mantê-las par mim mesmo, sem jamais
expressá-las.)
Agora, imagine que eu
realmente possua um direito de propriedade sobre minha melodia de tal modo que
eu possa proibir você de copiá-la ou até mesmo exigir um royalty de você caso o
faça. Primeiro: isso não implica, por
sua vez, que eu também tenha de pagar royalties para a pessoa (ou para seus
herdeiros) que inventou o assobio e a escrita?
Mais ainda: para a pessoa (ou seus herdeiros) que inventou a linguagem e
a criação de sons? Quão absurdo é isso?
Segundo: ao impedir que
você assobie minha melodia ou recite meu poema, ou ao obrigá-lo a pagar caso
faça isso, estou na realidade me transformando em seu proprietário (parcial):
proprietário parcial de seu corpo, de suas cordas vocais, de seu papel, de seu
lápis etc. porque você não utilizou nada exceto a sua própria propriedade
quando me copiou. Se você não mais pode
me copiar, então isso significa que eu, o dono da propriedade intelectual,
expropriei de você a sua "real" propriedade.
Donde se conclui: direitos de propriedade intelectual e direitos de
propriedade real são incompatíveis, e a defesa da propriedade intelectual deve
ser vista como um dos mais perigosos ataques à ideia de propriedade "real"
(sobre bens escassos).
Daily Bell: Já sugerimos certa vez que, se as pessoas quiserem
impingir direitos autorais hereditários, então que elas façam por conta
própria, assumindo os custos de tal empreitada e tentando, por vários meios,
confrontar os violadores dos direitos autorais com seus próprios recursos. Isso colocaria o ônus da coerção e da
fiscalização no bolso do próprio indivíduo reclamante. Seria essa uma solução viável -- deixar que o
próprio mercado decida essas questões?
Hoppe: Isso já seria um grande avanço na direção
correta. Algo ainda melhor: um número
cada vez maior de tribunais em cada vez mais países, especialmente países
fora da órbita do cartel de governos ocidentais, todos dominados pelos EUA,
deixaria explícito que esses países não mais se importam com casos de direitos
autorais e de violação de patentes, pois consideram tais reclamações um
artifício utilizado por grandes empresas ocidentais -- todas com boas conexões
com seus respectivos governos, tais como as empresas farmacêuticas -- para
enriquecerem à custa de outras pessoas.
Amanhã: bancos centrais, ouro, reservas fracionárias, agigantamento do
estado, governo mundial e revoluções.