Texto
extraído do capítulo 10 de O
Caminho da Servidão
Todo
poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta. - Lord
Acton
Analisaremos agora uma ideia que, se de um lado serve de consolo para muitos
que consideram inevitável o advento do totalitarismo, de outro enfraquece
sobremodo a resistência dos que a ele se oporiam com todas as forças se lhe
compreendessem a natureza. Trata-se da ideia de que os aspectos mais repelentes
dos regimes totalitários se devem à casualidade histórica de esses regimes
terem sido estabelecidos por canalhas e bandidos. Se, na Alemanha, a criação de
um regime totalitário levou ao poder os Streichers e Killingers, os Leys e
Heines, os Himmlers e Heydrichs — argumenta-se —, isso sem dúvida poderá
provar a perversidade do caráter alemão, mas não que a ascensão de tais homens
seja consequência inevitável de um regime totalitário. Por que não seria
possível que o mesmo sistema, se necessário à consecução de objetivos
importantes, fosse dirigido por indivíduos honestos para o bem da comunidade?
Não
devemos iludir-nos supondo que todas as pessoas de bem são forçosamente
democratas ou desejam fazer parte do governo. Muitos prefeririam confiá-lo a
alguém que reputam mais competente. Embora isso possa ser importante, não há
erro ou desonra em aprovar uma ditadura dos bons. O totalitarismo, ouve-se
dizer, é um sistema poderoso tanto para o bem como para o mal, e o fim para o
qual é usado depende inteiramente dos ditadores. Aqueles que julgam não ser o
sistema que cumpre recear, e sim o perigo de que ele venha a ser dirigido por
maus indivíduos, poderiam até ser tentados a prevenir esse perigo fazendo com
que ele fosse estabelecido antes por homens de bem.
Não
há dúvida de que um sistema "fascista" inglês ou americano diferiria
muito dos modelos italiano ou alemão; por certo, se a transição fosse efetuada
sem violência, poderíamos ter esperanças de que surgisse entre nós um líder
melhor. E, se eu tivesse de viver sob um regime fascista, preferiria
indubitavelmente um que fosse dirigido por ingleses ou americanos a qualquer
outro. Entretanto, isso não quer dizer que, julgado pelos padrões atuais, um
sistema fascista inglês viesse no fim a revelar-se muito diferente ou muito
menos intolerável do que seus protótipos. Há razões de sobra para se crer que
os aspectos que consideramos mais detestáveis nos sistemas totalitários
existentes não são subprodutos acidentais mas fenômenos que, cedo ou tarde, o
totalitarismo produzirá inevitavelmente. Assim como o estadista democrata que
se propõe a planejar a vida econômica não tardará a defrontar-se com o dilema
de assumir poderes ditatoriais ou abandonar seu plano, também o ditador
totalitário logo teria de escolher entre o fracasso e o desprezo à moral comum.
É por essa razão que os homens inescrupulosos têm mais probabilidades de êxito
numa sociedade que tende ao totalitarismo. Quem não percebe essa verdade ainda
não mediu toda a vastidão do abismo que separa o totalitarismo dos regimes
liberais, a profunda diferença entre a atmosfera moral do coletivismo e a
civilização ocidental, essencialmente individualista.
O
"embasamento moral do coletivismo" foi, é claro, muito debatido no
passado; mas o que nos interessa em nosso estudo não é sua base moral e sim
seus resultados morais. Nos debates habituais sobre os aspectos éticos do
coletivismo pergunta-se se este é exigido pelas convicções morais existentes,
ou se devem existir certas convicções morais para que o coletivismo produza os
resultados esperados. A questão que estudaremos, entretanto, é: que atitudes
morais serão geradas por uma organização coletivista da sociedade, e por que
ideias morais tal sociedade tenderá a ser dirigida? A interação da moral e das
instituições poderá fazer com que a ética resultante do coletivismo seja
totalmente diversa dos ideais morais que levam a exigir a implantação desse
mesmo coletivismo. Embora nos inclinemos a pensar que, como o desejo de um
sistema coletivista nasce de elevados motivos morais, em tal sistema se
desenvolverão as mais altas virtudes, não existe, na realidade, nenhuma razão
para que qualquer sistema estimule necessariamente aquelas atitudes que
concorrem para o fim a que ele se destina. As ideias morais dominantes
dependerão em parte das qualidades que conduzem os indivíduos ao sucesso num
sistema coletivista ou totalitário e, em parte, das exigências do mecanismo
totalitário.
Devemos
agora voltar por um momento ao estágio que precede a supressão das instituições
democráticas e a criação de um regime totalitário. Nesse estágio, a exigência
geral de uma ação governamental rápida e decidida torna-se o elemento dominante
da situação, enquanto a insatisfação com o curso lento e trabalhoso dos
processos democráticos faz com que o objetivo seja a ação em si. É então
que o homem ou o partido que parecem bastante fortes ou resolutos para
"fazerem as coisas funcionar'' exercem maior sedução. "Forte",
neste sentido, não indica apenas uma maioria numérica, pois o povo está
insatisfeito justamente com a ineficácia das maiorias parlamentares. O que as
pessoas procuram é um homem que goze de sólido apoio, de modo a inspirar
confiança quanto à sua capacidade de realizar o que pretende. E aqui entra em
cena o novo tipo de partido, organizado em moldes militares.
Nos
países da Europa Central, os partidos socialistas já haviam familiarizado as
massas com organizações políticas de caráter semimilitar, que tinham por
objetivo absorver tanto quanto possível a vida privada dos seus membros. Para
conferir um poder esmagador a um grupo, bastava estender um pouco mais o mesmo
princípio, buscando a força não no imenso número de votos garantido em eleições
ocasionais, mas no apoio absoluto e irrestrito de um grupo menor, porém perfeitamente
organizado. Para conseguir impor um regime totalitário a toda uma nação, o
líder deve em primeiro lugar reunir à sua volta um grupo disposto a submeter-se
voluntariamente à disciplina totalitária que ele pretende aplicar aos outros
pela força.
Embora
os partidos socialistas tivessem poder político suficiente para obter o que
desejassem, desde que resolvessem empregar a força, relutaram em fazê-lo. Sem o saber,
tinham assumido uma tarefa que só poderia ser executada por homens implacáveis,
prontos a desprezar as barreiras da moral reinante. Muitos reformadores sociais
aprenderam, no passado, que o socialismo só pode ser posto em prática por
métodos que seriam condenados pela maioria dos socialistas.
Os
velhos partidos socialistas sentiam-se inibidos por seus ideais democráticos;
não possuíam a insensibilidade necessária à execução da tarefa por eles
escolhida. É importante notar que, tanto na Alemanha como na Itália, o êxito do
fascismo foi precedido pela recusa dos partidos socialistas a assumir as responsabilidades
do governo. Repugnou-lhes empregar os métodos que eles próprios haviam
apontado. Ainda esperavam pelo milagre de um acordo da maioria em torno de um
plano especial para a organização de toda a sociedade. Outros já haviam
aprendido que, numa sociedade planificada, não se trata mais de saber sobre o
que concorda a maioria do povo, mas qual é o maior grupo cujos membros
encontraram um grau de acordo suficiente para tornar possível a direção
unificada de todos os assuntos públicos; ou, caso não exista nenhum grupo
bastante numeroso para impor suas ideias, de que forma e por quem ele pode ser
criado.
Há
três razões principais para que um grupo numeroso, forte e de ideias bastante
homogêneas não tenda a ser constituído pelos melhores e sim
pelos piores elementos de qualquer sociedade. De acordo com os
padrões hoje aceitos, os princípios que presidiriam à seleção de tal grupo
seriam quase inteiramente negativos.
Em
primeiro lugar, é provavelmente certo que, de modo geral, quanto mais elevada a
educação e a inteligência dos indivíduos, tanto mais se diferenciam os seus
gostos e opiniões e menor é a possibilidade de concordarem sobre determinada
hierarquia de valores. Disso resulta que, se quisermos encontrar um alto grau
de uniformidade e semelhança de pontos de vista, teremos de descer às camadas
em que os padrões morais e intelectuais são inferiores e prevalecem os
instintos mais primitivos e "comuns". Isso não significa que a
maioria do povo tenha padrões morais baixos; significa apenas que o grupo mais
amplo cujos valores são semelhantes é constituído por indivíduos que possuem
padrões inferiores. É, por assim dizer, o mínimo denominador comum que une o
maior número de homens. Quando se deseja um grupo numeroso e bastante forte
para impor aos demais suas ideias sobre os valores da vida, jamais serão
aqueles que possuem gostos altamente diferenciados e desenvolvidos que
sustentarão pela força do número os seus próprios ideais, mas os que formam a
"massa" no sentido pejorativo do termo, os menos originais e menos
independentes.
Se,
contudo, um ditador em potencial tivesse de contar apenas com aqueles cujos
instintos simples e primitivos são muito semelhantes, o número destes não daria
peso suficiente às suas pretensões. Seria preciso aumentar-lhes o número,
convertendo outros ao mesmo credo simples.
A
esta altura entra em jogo o segundo princípio negativo da seleção: tal
indivíduo conseguirá o apoio dos dóceis e dos simplórios, que não têm fortes
convicções próprias, mas estão prontos a aceitar um sistema de valores
previamente elaborado, contando que este lhes seja apregoado com bastante
estrépito e insistência.
Serão,
assim, aqueles cujas ideias vagas e imperfeitas se deixam influenciar com
facilidade, cujas paixões e emoções não é difícil despertar, que engrossarão as
fileiras do partido totalitário.
O
terceiro e talvez mais importante elemento negativo da seleção está relacionado
com o esforço do demagogo hábil por criar um grupo coeso e homogêneo de
prosélitos. Quase por uma lei da natureza humana, parece ser mais fácil aos
homens concordarem sobre um programa negativo — o ódio a um inimigo ou a
inveja aos que estão em melhor situação — do que sobre qualquer plano
positivo. A antítese "nós" e "eles", a luta comum contra os
que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer
ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando à ação comum. Por essa
razão, é sempre utilizada por aqueles que procuram não só o apoio a um programa
político, mas também a fidelidade irrestrita de grandes massas. Do seu ponto de
vista, isso tem a vantagem de lhes conferir mais liberdade de ação do que
qualquer programa positivo. O inimigo, seja ele interno, como o
"judeu" ou o "kulak", seja externo, parece
constituir uma peça indispensável no arsenal do líder totalitário.
Se
na Alemanha o judeu se tornou o inimigo, cedendo em seguida o lugar às
"plutocracias", isso foi decorrência do sentimento anticapitalista em
que se baseava todo o movimento, o mesmo acontecendo em relação à escolha
do kulak na Rússia. Na Alemanha e na Áustria, o judeu chegara
a ser encarado como o representante do capitalismo porque a antipatia
tradicional votada por vastas classes da população às atividades comerciais
tornara tais atividades mais acessíveis a um grupo praticamente excluído das
ocupações mais respeitadas. É a velha história: a raça alienígena, admitida
apenas nas profissões menos nobilitantes, torna-se objeto de ódio ainda mais
acirrado precisamente por exercê-las. O fato de, na Alemanha, o antissemitismo
e o anticapitalismo terem a mesma origem é de grande importância para a
compreensão do que tem acontecido naquele país, embora os observadores
estrangeiros poucas vezes se deem conta disso.
Considerar
a tendência universal da política coletivista ao nacionalismo como decorrência
exclusiva da necessidade de um apoio sólido seria negligenciar outro fator não
menos significativo. Com efeito, é questionável que se possa conceber com
realismo um programa coletivista que não atenda aos interesses de um grupo
limitado, ou que o coletivismo possa existir sob outra forma que não a de um
particularismo qualquer, nacionalista, racista ou classista. A ideia de uma
comunhão de propósitos e interesses com os próprios semelhantes parece
pressupor maior similaridade de ideias e pontos de vista do que aquela que
existe entre os homens na qualidade de simples seres humanos. Se não podemos
conhecer pessoalmente todos os outros componentes do nosso grupo, eles terão de
ser pelo menos do mesmo tipo dos que nos cercam, terão de pensar e falar do mesmo
modo e sobre os mesmos assuntos, para que nos possamos identificar com eles.
O
coletivismo em proporções mundiais parece inconcebível, a não ser para atender
aos interesses de uma pequena elite dirigente. Ele por certo suscitaria
problemas, não só de natureza técnica, mas sobretudo moral, que nenhum dos
nossos socialistas estaria disposto a enfrentar. Se o proletário inglês tem
direito a uma parcela igual da renda atualmente proporcionada pelos recursos
financeiros do país, assim como ao controle do emprego desses recursos, porque
eles resultam da exploração, então pelo mesmo princípio todos os hindus teriam
direito não só à renda mas também ao uso de uma parcela proporcional do capital
britânico.
Que
socialistas, porém, pensam de fato em repartir de maneira equitativa, entre
toda a população da terra, os atuais recursos de capital? Para todos eles, o
capital pertence não à humanidade, mas à nação — embora, mesmo no âmbito da
nação, poucos ousem sustentar que as regiões mais ricas devem ser privadas de
"seus" bens de capital para auxiliar as regiões mais pobres. Os
socialistas não estão dispostos a conceder ao estrangeiro aquilo que proclamam
como um dever para com os seus concidadãos. De um ponto de vista coletivista
coerente, os direitos dos países pobres a uma nova divisão do mundo são de todo
justificados — embora, se fossem aplicados com lógica, aqueles que os
reivindicam com maior insistência acabassem quase tão prejudicados quanto as
nações mais ricas. Têm, por conseguinte, o cuidado de não fundamentar suas
exigências em princípios igualitários, mas numa pretensa capacidade superior de
organizar outros povos.
Uma
das contradições inerentes à filosofia coletivista é que, embora baseada na
moral humanista aperfeiçoada pelo individualismo, só se mostra praticável no
interior de um grupo relativamente pequeno. Enquanto permanece teórico, o
socialismo é internacionalista; mas ao ser posto em prática, na Alemanha ou na
Rússia, torna-se violentamente nacionalista. Esta é uma das razões por que o
"socialismo liberal", tal como o imagina a maioria das pessoas no
mundo ocidental, é apenas teórico, ao passo que a prática do socialismo é em
toda parte totalitária. No coletivismo não há lugar para o amplo
humanitarismo do liberal, mas apenas para o estreito particularismo do
totalitário.
Se
a "comunidade" ou o estado têm prioridade sobre os indivíduos, se
possuem objetivos próprios superiores aos destes e deles independentes, só os
indivíduos que trabalham para tais objetivos podem ser considerados membros da
comunidade. Como consequência necessária dessa perspectiva, uma pessoa só é
respeitada na qualidade de membro do grupo, isto é, apenas se coopera para os
objetivos comuns reconhecidos, e toda a sua dignidade deriva dessa cooperação,
e não da sua condição de ser humano. Os próprios conceitos de humanidade e, por
conseguinte, de qualquer forma de internacionalismo são produtos exclusivos da
atitude individualista e não podem existir num sistema filosófico coletivista.[1]
Além
do fato fundamental de que a comunidade coletivista só pode chegar até onde
exista ou possa ser estabelecida uma unidade de propósitos individuais, vários
elementos contribuem para fortalecer a tendência do coletivismo a tornar-se
particularista e exclusivista. Destes, um dos mais importantes é que o desejo
de identificação do indivíduo com um grupo resulta com frequência de um
sentimento de inferioridade, e por isso tal desejo só será satisfeito se a
qualidade de membro do grupo lhe conferir alguma superioridade sobre os que a
este não pertencem. Às vezes, ao que tudo indica, o próprio fato de esses
instintos violentos que o indivíduo é obrigado a refrear no seio do grupo
poderem ser liberados numa ação coletiva contra os estranhos constitui mais um
incentivo para fusão de sua personalidade com a do grupo.
Uma
profunda verdade está expressa no título do livro de Reinhold Niebuhr, Moral
Man and Immoral Society (O Homem Moral e a Sociedade Imoral) — embora
seja difícil aceitar conclusões a que chega a sua tese. Na verdade, como diz
ele em outra obra, "o homem moderno tende a se considerar uma pessoa de
moral elevada por ter delegado seus vícios a grupos cada vez mais
numerosos".[2] Agir
no interesse de um grupo parece libertar os homens de muitas restrições morais
que regem seu comportamento como indivíduos dentro do grupo.
A
atitude de muitos planejadores de nítida oposição ao internacionalismo
explica-se também pelo fato de que, no mundo atual, todos os contatos
exteriores de um grupo constituem obstáculos ao planejamento efetivo da esfera
em que este pode ser empreendido. Não é, pois, mera coincidência se conforme
descobriu com pesar o organizador de um dos mais abrangentes estudos coletivos
sobre o planejamento, "os 'planejadores' são, em sua maioria,
nacionalistas militantes".[3]
As
propensões nacionalistas e imperialistas dos planejadores socialistas — muito
mais comuns do que em geral se admite — nem sempre são tão flagrantes como no
caso dos Webb e de alguns
outros fabianos primitivos, nos quais o entusiasmo pela planificação se
somava, de modo característico, à veneração para com as grandes e poderosas
unidades políticas e ao desprezo pelos pequenos estados. Referindo-se aos Webb
na ocasião em que os conheceu, há quarenta anos, afirmava o historiador Elie
Halévy que
seu socialismo era profundamente antiliberal. Não odiavam
os conservadores, eram até muito tolerantes com eles; entretanto, mostravam-se
implacáveis para com o liberalismo gladstoniano. Era no tempo da guerra dos
bôeres e tanto os liberais quanto aqueles que começavam a constituir o Partido
Trabalhista haviam-se alinhado aos bôeres contra o imperialismo britânico, em
nome da liberdade e da humanidade. Mas os dois Webb e seu amigo Bernard Shaw
não os apoiaram. Eram ostentosamente imperialistas. A independência das
pequenas nações poderia ter alguma importância para um individualista liberal
mas, para coletivistas como eles, nada significava. Ainda ouço Sidney Webb a
explicar-me que o futuro pertence às grandes nações administrativas, onde os
funcionários governam e a polícia mantém a ordem.
Em
outra parte, Halévy cita a afirmação de Bernard Shaw, mais ou menos da mesma
época, de que "o mundo pertence necessariamente aos estados grandes e
poderosos, e os pequenos devem ser incorporados, a eles ou esmagados e
aniquilados".[4]
Citei
por extenso essas passagens, que não deveriam surpreender num relato sobre os
precursores alemães do nacional-socialismo, porque apresentam um exemplo muito
característico da glorificação do poder que facilmente conduz do socialismo ao
nacionalismo e que tanto influencia as concepções éticas de todos os
coletivistas. No que se refere aos direitos das pequenas nações, Marx e Engels
pouco diferiam da maioria dos outros coletivistas coerentes, e as opiniões que
ambos expressaram ocasionalmente a respeito dos tchecos ou dos poloneses
assemelham-se às dos nacional-socialistas contemporâneos.[5]
Enquanto
para os grandes filósofos sociais individualistas do século XIX, como Lord Acton
ou Jacob Burckhardt, e mesmo para socialistas contemporâneos como Bertrand
Russell,que herdaram a tradição liberal, o poder sempre se afigurou o supremo
mal, para o coletivista puro ele é um fim em si mesmo. O próprio desejo de
organizar a vida social segundo um plano unitário nasce basicamente da ambição
de poder, mas não apenas disso, conforme destacou Russell com propriedade. Esse
desejo resulta sobretudo do fato de que, para realizar seu objetivo, os
coletivistas precisam criar um poder de uma magnitude jamais vista até hoje —
poder exercido por alguns homens sobre os demais — e de que seu êxito
dependerá do grau de poder alcançado.
Isto
permanece válido ainda que muitos socialistas liberais orientem suas ações pela
desastrosa ilusão de que, privando os indivíduos do poder que possuem num
sistema individualista e transferindo-o à sociedade, lograrão acabar com o
próprio poder. O que todos aqueles que usam esse argumento esquecem é que,
concentrando-se o poder de modo a empregá-lo a serviço de um plano único, ele
não será apenas transferido mas aumentado a um grau infinito; e que,
enfeixando-se nas mãos de um só grupo uma autoridade antes exercida por muitos
de forma independente, cria-se um poder infinitamente maior — tão amplo que
quase chega a tornar-se um outro gênero de poder.
É
de todo errôneo afirmar, como por vezes se faz, que o grande poder exercido por
uma comissão de planejamento central "não seria maior do que o poder
exercido conjuntamente pelas diretorias das empresas privadas".[6]
Numa sociedade baseada na concorrência, ninguém exerce uma fração sequer do
poder que uma comissão planejadora socialista concentraria nas mãos; e se
ninguém o pode empregar de modo intencional, não passa de abuso de linguagem
afirmar que este se encontra nas mãos de todos os capitalistas reunidos. Falar
do "poder conjuntamente exercido pelas diretorias das empresas
privadas" é apenas manipular palavras, se essas diretorias não se unem
para uma ação comum — o que significaria, é evidente, o fim da concorrência e
a criação de uma economia planificada. Fracionar ou descentralizar o poder
corresponde, forçosamente, a reduzir a soma absoluta de poder, e o sistema de
concorrência é o único capaz de reduzir ao mínimo, pela descentralização, o
poder exercido pelo homem sobre o homem.
Já
vimos como a separação dos objetivos políticos e dos objetivos econômicos
representa uma garantia essencial da liberdade individual e como, em
consequência, tal separação é atacada por todos os coletivistas. Devemos
acrescentar agora que a "substituição do poder econômico pelo político",
tão demandada hoje em dia, significa necessariamente a substituição de um poder
sempre limitado por um outro ao qual ninguém pode escapar. Embora possa
constituir um instrumento de coerção, o chamado poder econômico nunca se torna,
nas mãos de particulares, um poder exclusivo ou completo, jamais se converte em
poder sobre todos os aspectos da vida de outrem. No entanto, centralizado como
instrumento do poder político, cria um grau de dependência que mal se distingue
da escravidão.
Das
duas características principais de todo sistema coletivista — a necessidade de
um sistema de objetivos aceito por todos os membros do grupo e o desejo
imperioso de conferir ao grupo o máximo de poder para realizar tais objetivos —
brota um sistema moral definido, que em certos pontos coincide e em outros se
contrapõe violentamente ao nosso. Dele difere, entretanto, num detalhe que
torna questionável podermos aplicar-lhe o termo "morar'': tal sistema não
deixa à consciência individual a liberdade de aplicar suas regras próprias, nem
mesmo conhece quaisquer regras gerais cuja prática seja exigida ou permitida ao
indivíduo em todas as circunstâncias. Isso torna a moral coletivista tão
diferente daquilo que conhecemos como moral que é difícil encontrar nela
qualquer princípio — o que, no entanto, ela possui.
A
diferença de princípio é praticamente a mesma que já consideramos em relação ao
estado de Direito. Como o Direito formal, as regras da ética individualista são
gerais e absolutas, por mais imprecisas que possam parecer sob certos aspectos.
Prescrevem ou proíbem um tipo geral de ação, sem levar em conta se num caso
específico o objetivo último é bom ou mau. Trapacear ou roubar, torturar ou
trair segredos é considerado mau, apresentem ou não consequências prejudiciais
em determinado caso. E sua maldade intrínseca não se altera, mesmo que em dadas
circunstâncias ninguém venha a sofrer por isso, e mesmo que tais ações tenham
sido praticadas em nome de um propósito elevado. Embora por vezes sejamos
forçados a escolher entre dois males, estes não deixam por isso de ser males.
Na
ética individualista, o princípio de que o fim justifica os meios é considerado
a negação de toda a moral. Na ética coletivista, torna-se a regra suprema; não
há literalmente nada que o coletivista coerente não deva estar pronto a fazer,
desde que contribua para o "bem da comunidade", porque o "bem da
comunidade" é para ele o único critério que justifica a ação. A
"razão de estado", em que a ética coletivista encontrou a sua
formulação mais explícita, não conhece outros limites que não os da
conveniência — a adequação do ato particular ao objetivo que se tem em vista. E o que a
"razão de estado" afirma no tocante às relações entre diferentes
países aplica-se também às relações entre diferentes indivíduos no estado
coletivista. Não pode haver limites para aquilo que o cidadão desse estado deve
estar pronto a fazer, nenhum ato que a consciência o impeça de praticar, desde
que seja necessário à consecução de um objetivo que a comunidade impôs a si
mesma ou que os superiores lhe ordenem.
Dessa
ausência de normas absolutas e formais na ética coletivista não se infere,
naturalmente, que a comunidade não estimule certos hábitos úteis do indivíduo,
e que não condene outros. Ao contrário, ela se interessará muito mais pelos
hábitos individuais de vida do que uma comunidade individualista. Ser membro
útil de uma sociedade coletivista requer qualidades muito precisas, as quais
devem ser fortalecidas por uma prática constante. A razão por que designamos
essas qualidades como "hábitos úteis", uma vez que não é possível
denominá-las virtudes morais, é que nunca se permitiria ao indivíduo colocar
essas regras acima de quaisquer ordens positivas ou deixar que se tornassem um
obstáculo à realização dos objetivos concretos da comunidade. Elas apenas
servem para preencher as lacunas deixadas pelas ordens diretas ou pela
indicação de finalidades concretas. Jamais, entretanto, poderão justificar um
conflito com a decisão da autoridade.
As
diferenças entre as virtudes que continuarão a ser valorizadas num sistema
coletivista e aquelas que virão a desaparecer são bem elucidadas por uma
comparação entre as virtudes atribuídas aos alemães, ou melhor, ao
"prussiano típico", mesmo por seus piores inimigos, e aquelas que lhes
são negadas pela opinião geral, mas que o povo inglês, com alguma razão, se
orgulhava de possuir em alto grau. Poucos deixarão de admitir que os alemães,
em geral, são laboriosos e disciplinados, detalhistas e enérgicos a ponto de se
mostrarem insensíveis, conscienciosos e coerentes em qualquer tarefa à qual se
dedicam; que possuem um acentuado senso de ordem, dever e estrita obediência à
autoridade, e que muitas vezes dão provas de grande capacidade para o
sacrifício pessoal e de admirável coragem diante do perigo físico. Essas
virtudes fazem do alemão um instrumento eficiente na execução de uma tarefa
prescrita, e todas elas foram cuidadosamente ensinadas no velho estado
prussiano e no novo reich, também sob o domínio prussiano.
O
que se supõe faltar ao "alemão típico" são as virtudes
individualistas da tolerância e do respeito pelos demais indivíduos e suas
opiniões; o pensamento independente e aquela integridade de caráter que fazem o
indivíduo defender suas convicções perante um superior — qualidades que os próprios
alemães, em geral cônscios de não possuírem, chamam Zivilcourage; a
consideração pelos fracos e doentes; e o saudável desprezo e antipatia pelo
poder, que somente uma longa tradição de liberdade pessoal pode criar. Parece
faltar-lhes ainda quase todas essas pequenas porém importantes qualidades que
facilitam as relações entre os homens numa sociedade livre: a bondade e o senso
de humor, a modéstia pessoal, o respeito pela privacidade e a fé nas boas
intenções de seus semelhantes.
Após
tais considerações, não causará surpresa a ninguém que essas virtudes
individualistas sejam ao mesmo tempo virtudes eminentemente sociais, qualidades
que suavizam os contatos sociais e que tornam menos necessário, e ao mesmo
tempo mais difícil, o controle que vem de cima. São virtudes que florescem onde
quer que tenha prevalecido a sociedade de tipo individualista ou comercial e
que, inversamente, inexistem quando predomina a de tipo coletivista ou militar —
diferença que se pode (ou se podia) observar nas várias regiões da Alemanha,
como agora se observa entre as ideias que reinam naquele país e as ideias
características do Ocidente. Até bem pouco, pelo menos, nas regiões da Alemanha
que mais longamente estiveram expostas às forças civilizadoras do comércio - as
antigas cidades comerciais do sul e do oeste e as cidades hanseáticas - os
conceitos éticos em geral tinham muito mais afinidade com os dos povos
ocidentais do que com aqueles que hoje prevalecem em toda a Alemanha.
Seria,
no entanto, injusto considerar as massas que sustentam um regime totalitário
destituídas de qualquer fervor moral só porque prestam apoio irrestrito a um
sistema que a nós se afigura a negação dos melhores valores morais. Para a sua
grande maioria, é justamente o contrário que se verifica: a intensidade das
emoções morais em que repousa um movimento como o nacional-socialista ou o
comunista talvez só possa ser comparada à dos grandes movimentos religiosos da
história. Uma vez admitido que o indivíduo é simples instrumento para servir
aos fins da entidade superior que se chama sociedade ou nação, manifesta-se
necessariamente a maior parte dessas características dos regimes totalitários
que nos enchem de horror. Da perspectiva coletivista, a intolerância e a brutal
supressão da dissidência, o completo desrespeito pela vida e pela felicidade do
indivíduo são consequências essenciais e inevitáveis dessa premissa básica. O
coletivista pode aceitar esse fato, e ao mesmo tempo afirmar que seu sistema é
superior àqueles em que se permite que interesses individuais
"egoístas" criem embaraços à plena realização das metas visadas pela
comunidade. Quando os filósofos alemães repetidas vezes caracterizam como
imoral em si mesma a busca da felicidade pessoal e apenas digno de louvor o
cumprimento do dever imposto, estão usando de completa sinceridade, por mais
incompreensível que isso pareça às pessoas educadas numa tradição diferente.
Onde
existe uma finalidade comum e soberana, não há lugar para uma moral ou para
normas gerais. Até certo ponto, nós próprios experimentamos isso durante a
guerra. A guerra e o perigo mais grave, no entanto, levaram os países
democráticos a uma situação que só de longe se assemelhava ao totalitarismo,
poucas vezes prejudicando os demais valores em função de um objetivo único. Mas
quando toda a sociedade é dominada por alguns fins específicos, é inevitável
que, vez por outra, a crueldade se torne um dever; que ações que nos revoltam,
tais como o fuzilamento de reféns ou o extermínio de velhos e doentes, sejam
tratadas como meras questões de conveniência; que arrancar centenas de milhares
de indivíduos de suas casas e transportá-los compulsoriamente para outro lugar
se converta numa linha de ação política aprovada por quase todos, menos pelas
vítimas; ou que ideias como a "conscrição das mulheres para fins de
procriação'' possam ser consideradas a sério. O coletivista tem sempre diante
dos olhos uma meta superior para a qual concorrem essas ações e que, no seu
modo de ver, as justifica, porque a busca do objetivo social comum não pode ser
limitada pelos direitos ou valores de qualquer indivíduo.
Mas
enquanto para a massa dos cidadãos do estado totalitário é muitas vezes a
dedicação desinteressada a um ideal — embora esse ideal nos pareça detestável —
que os leva a aprovar e até a praticar tais atos, o mesmo não se pode alegar em
favor dos dirigentes da política estatal. Para ser um auxiliar útil na
administração de um estado totalitário não basta que um indivíduo esteja pronto
a aceitar justificações capciosas de atos abomináveis. Deve estar preparado
para violar efetivamente qualquer regra moral de que tenha conhecimento, se
isso parecer necessário à realização do fim que lhe foi imposto. Como o chefe
supremo é o único que determina os fins, seus instrumentos não devem ter
convicções morais próprias. Cumpre-lhes, acima de tudo, votar uma fidelidade
irrestrita à pessoa do líder; em seguida, o mais importante é que sejam
desprovidos de princípios e literalmente capazes de tudo. Não devem possuir
ideais próprios que desejem realizar, nenhuma ideia sobre o que é justo ou
injusto que possa criar obstáculos às intenções do líder. Desse modo, as
posições de mando oferecem àqueles que possuem convicções morais semelhantes às
que têm guiado os povos europeus poucos atrativos que compensem a repugnância
causada por muitas das tarefas a executar, e escassas oportunidades de
satisfazer os desejos mais idealistas, de recompensar os inegáveis riscos, o
sacrifício da maioria dos prazeres da vida privada e da independência pessoal
que esses postos de grande responsabilidade sempre impõem. A única satisfação é
a da ambição do poder em si mesmo, o prazer de ser obedecido e de fazer parte
de uma máquina perfeita, imensamente poderosa, diante da qual tudo deve ceder.
Por
outro lado, embora pouco haja para induzir homens bons, segundo nossos padrões,
a aspirar a cargos de importância na máquina totalitária, e muito para
afastá-los dessas posições, haverá oportunidades especiais para os insensíveis
e os inescrupulosos. Será preciso desempenhar tarefas de inegável crueldade,
mas que não podem deixar de ser executadas, a serviço de alguma finalidade
superior, com a mesma perícia e a mesma eficiência que quaisquer outras.
Havendo, assim, necessidade de ações intrinsecamente nocivas e que todas as
pessoas ainda influenciadas pela moral tradicional relutarão em fazer, a
disposição para praticar tais ações converte-se no caminho da ascensão social e
do poder. Numa sociedade totalitária, são numerosas as posições em que é
necessário praticar a crueldade e a intimidação, a duplicidade e a espionagem.
Nem a Gestapo, nem a administração de um campo de concentração, nem o
ministério da Propaganda, nem a S.A. ou a S.S. (ou seus equivalentes italianos
ou russos) são lugares favoráveis à prática de sentimentos humanitários. E, no entanto,
é exercendo esses cargos que se chega às posições supremas no estado
totalitário. É corretíssima a conclusão do ilustre economista americano que,
após enumerar os deveres das autoridades num estado coletivista, afirmou:
Eles seriam obrigados a fazer essas coisas, quisessem ou
não; e é tão reduzida a probabilidade de o poder ser exercido por homens que
detestem a sua posse e exercício quanto a de alguém extremamente bom e sensível
vir a ser feitor de escravos.[7]
Não
nos é possível, todavia, esgotar aqui o assunto. O problema da seleção dos
líderes está intimamente ligado ao amplo problema de selecioná-los segundo as
opiniões que essas pessoas exibem, ou melhor, de acordo com a presteza com que
se adaptam a um corpo de doutrinas em constante transformação. E isto nos
conduz a um dos mais característicos aspectos morais do totalitarismo: sua
relação com as virtudes que se incluem na denominação geral de veracidade e
seus efeitos sobre estas. Trata-se de assunto tão amplo que requer um capítulo
especial.
[1] É inteiramente
dentro do espírito do coletivismo que Nietzsche faz Zaratustra dizer: "Até
agora mil metas existiram, porque mil pessoas existiram. Mas falta ainda o
grilhão para os mil pescoços, pois ainda falta a meta única. A humanidade não
tem uma meta. Mas dizei-me, ó irmãos, eu vos peço: se falta uma meta à
humanidade, não é a própria humanidade que está faltando?".
[2] Citado
de um artigo do dr. Niebuhr por E. H. Carr, em The Twenty Years'
Crisis, 1941. p. 203.
[3] Mackenzie,
F., org. Planned Society, Yesterday, Today, Tomorrow: A
Symposium. 1937. p. XX.
[4] Halévy,
E. L'ère des Tyrannies, Paris, 1938, p. 217. e History
of the English People, Epílogo, v. I, pp. 105-6.
[5] Cf.
Marx, Karl, Revolution and Counter-revolution, e a carta de
Engels a Marx datada de 23 de maio de 1851.
[6] Russell,
Bertrand, The Scientific Outlook, 1931, p. 211.
[7] Knight,
F. H. em The Journal of Political Economy, dez. 1938, p. 869.