Existe
alguma ideia pior do que estatizar a esmola, tornando-a assim um dever para uns
e um direito para outros? Por um lado,
trata-se de uma imoralidade criminosa subtrair por meio da força a propriedade
alheia; por outro, gera dependência e um incentivo à vadiagem.
Muitas
pessoas de bom senso, mesmo sem possuir base alguma na teoria econômica ou na
de direitos naturais, rejeitam instintivamente tal ideia. Apesar disso, a ideia começou a ser implantada
no Brasil por FHC em 2001, e hoje está em pleno funcionamento. Embora seja uma ideia tenebrosa, ela encontra
respaldo em muitos pensadores associados ao Liberalismo. O primeiro deles pode ter sido Thomas Paine. O escritor que participou da Revolução
Americana e da Revolução Francesa idealizou uma proposta de "renda mínima" — talvez
se baseando no proviso de Locke, o pensador que é um dos pilares do liberalismo.[1]
Muitos outros autores fizeram propostas semelhantes,
como Marx, Keynes e Galbraith, e era esperado que defendessem esse
redistributivismo. Mas é absurdo ver
nomes associados à defesa da liberdade dando seu aval a este tipo de
espoliação.
Quando
F. A. Hayek estava escrevendo sua obra Os
Fundamentos da Liberdade, ele estava sendo subsidiado pelo Volker Fund. Nesta mesma época, Murray Rothabrd trabalhava
como consultor para o Volker Fund e, em janeiro de 1958, quando Hayek entregou
os catorze primeiros capítulos de seu livro, o Volker Fund pediu a Rothbard que
desse sua opinião sobre eles. A análise
de Rothbard, além de devastadora, continha uma acurada previsão de como aquele
livro seria usado pelos inimigos da liberdade em prol da causa redistributiva. Devido a seus erros conceituais — com
destaque ao conceito de coerção —, Rothbard
o classificou como um péssimo livro, um "livro do mal"; além disso, graças ao
status de Hayek, o livro foi considerado também como sendo extremamente
perigoso, e Rothbard recomendou que se descontinuasse qualquer suporte à
finalização e promoção da obra, já que isso seria destrutivo para a causa da
liberdade.[2]
Hayek
era considerado um dos mais proeminentes líderes intelectuais pró-livre
mercado, e como ele estava defendendo que o estado atuasse em inúmeras funções,
Rothbard previu que a oposição iria se utilizar do velho artifício de "mas até
mesmo Hayek admite que . . ." para argumentar em defesa de suas posições pró-estado.
A
previsão que Rothbard teve instantaneamente, assim que bateu os olhos nos
primeiros capítulos da obra de Hayek, vem se concretizando desde então. Por exemplo, para atacar Ron Paul na última
corrida presidencial americana, o "economista" esquerdista Paul Krugman usou
Hayek contra os opositores da saúde pública:
No passado, conservadores aceitavam a necessidade de uma
rede de proteção garantida pelo governo por razões humanitárias. E não sou eu quem está dizendo isso; quem
disse isso foi Friedrich Hayek, o herói intelectual conservador, que declarou
especificamente em O Caminho da Servidão seu apoio a um "amplo
sistema de serviços sociais" para proteger os cidadãos de "eventualidades
comuns", e especificou a área da saúde.
Outro
teórico que é considerado um dos maiores defensores do livre mercado e que também
fez inúmeras concessões à atuação do estado foi Milton Friedman; e ele é
igualmente utilizado pelos detratores do livre mercado, como constatou Hans-Hermann
Hoppe anos depois da previsão de Rothbard:
... fazer concessões em nível de teoria, como vemos
acontecer, por exemplo, entre liberais moderados como Hayek e Friedman, ou
mesmo entre os chamados minarquistas, não apenas denota uma grande falha
filosófica, como também é uma atitude, do ponto de vista prático, inútil e
contraproducente. As ideias destas
pessoas podem ser — e de fato são — facilmente cooptadas e incorporadas pelos
governantes e pelos ideólogos do estado. Aliás, não é de se estranhar a frequência com
que ouvimos estatistas defendendo a agenda estatista dizendo coisas como "até
mesmo Hayek (Friedman) diz — ou, nem mesmo Hayek (Friedman) nega — que isto e
aquilo deve ser feito pelo estado!"
Pessoalmente, eles até podem ter ficado descontentes com isso, mas não
há como negar que suas obras serviram exatamente a este propósito; e,
consequentemente, queiram ou não, eles realmente contribuíram para o contínuo e
incessante crescimento do poder do estado.
Hayek
e Friedman são mundialmente aclamados como os representantes máximos do livre
mercado; logo, este artifício não conhece fronteiras — e no Brasil também foi
e é utilizado por estatistas. O primeiro
economista brasileiro a propor um programa de renda mínima foi Antônio Maria da
Silveira, no artigo Redistribuição de Renda, publicado na Revista
Brasileira de Economia, em abril de 1975 — e, para tal, ele se baseou nos
trabalhos dos liberais Friedman e Hayek, além de nos de outros economistas
socialistas.[3] E foi um grande amigo de Antônio Maria um dos
maiores responsáveis pela implementação do programa assistencialista no Brasil:
o senador Eduardo Matarazzo Suplicy. Juntamente
com o senador Cristovam Buarque, eles podem ser considerados os pais do Bolsa
Família. E, exatamente como previsto por Rothbard, também se utilizaram do
artifício "Até mesmo Hayek e Friedman" na defesa de suas propostas:
Podemos encontrar defensores da renda mínima e do imposto
de renda negativo dentre aqueles que se posicionaram com mais eloquência em
favor do capitalismo. Friedrich A. von
Hayek, ganhador de um prêmio Nobel de Economia, defende, em O caminho da
servidão (1994), no capítulo sobre segurança e liberdade, proteção contra
privações físicas severas e garantia de que um mínimo de meios de subsistência
deve ser dado a todos. George Stigler
(The economics of minimum wage legislation, American Economic Review, n.
36, jun. 1946) mostrou que o imposto de renda negativo seria a melhor forma de
proteger a remuneração daqueles que, de outra forma, ganhariam muito pouco.
Milton Friedman popularizou a defesa do imposto de renda negativo como o
instrumento mais eficiente no combate à pobreza (Capitalism and freedom,
University of Chicago Press, 1962).[4]
Hayek
e Friedman poderiam discordar de determinadas particularidades do Bolsa Família
ou de outros programas de renda mínima, mas o fato de eles aceitarem
conceitualmente um programa estatal de amparo aos necessitados já serviu para
desmantelar qualquer oposição que poderia existir a estes programas. Inclusive, Hayek e Friedman parecem discordar
entre si nas particularidades de seus programas. Hayek declarou que era totalmente contra o
programa de Imposto de Renda Negativo de Friedman, e que concordava com a refutação que Henry Hazlitt havia feito
dele. Não obstante, a proposta de
Friedman parece ser menos ruim que a de Hayek, pois Friedman a desenvolveu para
ser apenas um substituto de outras ações assistencialistas do estado. E mais, Hayek é mesmo uma figura confusa,
parecendo discordar dele próprio. Nesta entrevista
realizada anos após a publicação de suas principais obras, ele se posiciona
contra qualquer tipo de redistribuição de renda, pois estas políticas seriam
discriminatórias ao fazerem distinção entre diferentes grupos de pessoas — uma
posição irreconciliável com seus escritos anteriores.
Friedman
também discordou de particularidades de outros programas, como o EITC (Earned income tax credit), mas concordou
com o princípio redistributivista, como mostraram Suplicy e o professor Philippe
Van Parijs[5]
em entrevista que realizaram com Friedman. Respondendo a uma questão sobre o EITC,
Friedman diz:
O EITC contribuiu para erradicar a pobreza nos EUA. Eu não acredito que tenha sido uma ferramenta
extremamente eficiente devido à forma particular pelo qual ele se integra ao
imposto de renda. Tem dado margem a
abusos.[6]
E
quando Suplicy pede para Friedman comparar sua proposta de Imposto de Renda
Negativo à do renda do cidadão, Friedman diz que ambas são semelhantes, como o
professor Philippe Van Parijs comenta: "Esta
é uma afirmação muita clara da equivalência formal entre os dois esquemas, o
que sugere que Friedman é tão a favor de uma proposta quanto de outra".[7]
Detalhes
a parte, o maior erro de Hayek e Friedman foi o de não considerarem um
princípio elementar de ética e justiça. Para
haver qualquer forma de renda mínima, esta renda tem de vir de algum lugar. Se o amparo aos mais necessitados vem de
Igrejas, instituições ou indivíduos privados, a renda tem origem voluntária, por
meio de doações de pessoas que desejam destinar parte de seus bens para
caridade. No entanto, se é o estado quem
fornece a renda mínima, então este recurso é obtido por meio da agressão ou da ameaça
de agressão física dos produtores, isto é, por meio do roubo. Frédéric Bastiat expressou brilhantemente este
princípio em 1850:
é-me impossível separar a palavra fraternidade da palavra voluntária. Eu não consigo sinceramente entender como a fraternidade pode ser legalmente forçada, sem que a liberdade seja legalmente destruída
e, em consequência, a justiça seja legalmente
deturpada. A espoliação legal tem duas raízes: uma delas, como já lhe disse anteriormente,
está no egoísmo humano; a outra, na falsa filantropia.[8]
Se
algo é compulsório, então não é caridade mas sim agressão. O conceito de caridade compulsória é contraditório,
pois considera apenas o recebedor e ignora o espoliado. Se caridade significa ajudar, quem é que está
ajudando a pessoa que está sendo obrigada, sob a mira de um revólver, a
entregar parte de sua renda para que ela seja dada a outra pessoa? É esta a base de qualquer programa de
redistribuição de renda feito pelo estado, pois para haver algo para distribuir
é necessário que este algo tenha sido previamente produzido e retirado à força
dos produtores. 'Não é seu para dar' é um
conceito que até pouco tempo era amplamente compreendido até mesmo por
políticos socialistas, como Herbert Hoover, que estendeu os tentáculos do
estado a inúmeras áreas, mas tinha ressalvas quanto à caridade:
A assistência voluntária era praticamente a única esfera em
que o presidente Hoover parecia preferir de todo o coração a ação voluntária à
governamental. No outono anterior,
Hoover havia se recusado a convocar uma sessão especial do Congresso para a
assistência ao desemprego dizendo que isso era responsabilidade das
agências voluntárias. De fato, a
tradição voluntarista ainda era tão forte nessa área, que a Cruz Vermelha
opôs-se a um projeto de lei, no começo de 1931, que lhe concederia US$ 25
milhões para prestar assistência. A Cruz
Vermelha declarou que seus próprios fundos bastavam, e seu Presidente disse a
um comitê da Câmara que essa verba do congresso "em grande medida
destruiria a doação voluntária". Muitos
líderes locais da Cruz Vermelha opunham-se fortemente a qualquer ajuda federal,
e até mesmo a qualquer assistência pública de modo geral, de modo que o projeto
de lei, após passar pelo Senado, foi derrubado na Câmara. Muitas organizações
privadas de caridade, filantropos e assistentes sociais tinham a mesma opinião.[9]
É
inegável que Hayek e Friedman colaboraram muito na luta contra a tirania
estatal. Porém, eles não são nem de
longe os autores que melhor representam a liberdade; e é inegável também que
eles apoiaram muitas posições contrárias à liberdade. E é exatamente por causa de todas as
concessões que estes autores fizeram aos estatistas, que a esquerda os alçou à
posição de maiores e mais radicais representantes do livre mercado, ao passo
que pensadores realmente radicais como Mises e Rothbard foram jogados para fora
do debate. Hayek e Friedman são os
inimigos que a esquerda adora odiar. De
fato, eles não são inimigos — eles fazem parte da esquerda, e são aceitos e
respeitados pelo mainstream (que é esquerdista).[10]
Libertários
não seguem pessoas; nós seguimos ideias. Aqui mesmo no Instituto que leva seu nome,
criticamos diversas ideias de Ludwig von Mises, e não pretendemos fazer "culto à
personalidade" nem de Mises, nem de Rothbard e nem de ninguém. Mas o fato é que alguém inevitavelmente será
identificado como o líder intelectual de um movimento, e a esquerda já nomeou
os atuais "líderes". Não temos líderes, mas se existem pessoas cuja obra
representa melhor a defesa da liberdade, estas pessoas são Mises e Rothbard.
[1] A
proposta de "dividendo universal" de Paine, que garantiria uma renda mínima a
todos, é baseada em sua ideia de que todo ser humano do planeta é
coproprietário da terra apenas em virtude de ter nascido neste planeta e de
estar vivo. Já o proviso de Locke dizia que os indivíduos podiam se apropriar
da terra 'misturando seu trabalho a ela', contanto que sobrasse o suficiente
para que outros também pudessem se apropriar de porções semelhantes. Veja a refutação do proviso lockeano em
Rothbard, capítulo 29
do A Ética da Liberdade;
Hoppe, pág. 410 et pass. The Economics and Ethics of Private Property; e de Jasay, págs. 188 e 195 do Against Politics.
[2]
Dois anos depois, quando Rothbard recebeu e analisou a obra completa, ele
elogiou a erudição da obra — principalmente pelo valioso conteúdo de suas
notas — e enalteceu alguns capítulos específicos, mas no geral sua avaliação
continuou a mesma. Hayek havia fracassado monumentalmente em sua tentativa de
estabelecer um sistema em prol da liberdade. Murray
N. Rothbard vs. the philosophers: unpublished writings on Hayek, Mises,
Strauss, and Polanyi, capítulos 2 e 3, Roberta Adelaide Modugno — Auburn, Alabama: Ludwig
von Mises Institute, 2009. Para
uma crítica devastadora de Os Fundamentos
da Liberdade, veja: F.A. Hayek e o conceito de coerção, em A Ética da Liberdade,
Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 28.
[3] Homenagem a Antônio
Maria da Silveira, Eduardo Matarazzo Suplicy.
[4]
SUPLICY, Eduardo Matarazzo e BUARQUE, Cristovam. Garantia
de renda mínima para erradicar a pobreza: o debate e a experiência brasileiros.
Estud. av. [online]. 1997, vol.11, n.30
[5] O
professor Philippe Van Parijs, da Universidade Católica de Louvain, é um
filósofo e economista político belga, conhecido como proponente e principal
defensor do conceito da renda mínima. É um dos fundadores e secretário-geral da
"BIEN", "Basic Income European Network" (Rede Europeia da Renda Básica), fórum
que defende a instituição de uma renda básica em todas as nações.
[6] UM DIÁLOGO COM
MILTON FRIEDMAN SOBRE O IMPOSTO DE RENDA NEGATIVO, paper de EDUARDO M. SUPLICY. Basic Income European Network, VIIIth International Congress, Berlin, 6-7 de outubro
de 2000.
[7]
Ibid., pág. 9.
[8] A Lei, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pág.
24.
[9] A grande depressão
americana, Instituto Ludwig von Mises Brasil,
2010, pág. 281.
[10] "The Hayek Myth",
PFS 2012, Hans Hermann Hoppe.