quarta-feira, 13 mar 2013
Não
demorou muito para que os detratores do mercado descarregassem seus ataques histéricos
ao capitalismo logo após os eventos de 2008.
A crise financeira que resultou na quebra de vários bancos foi
interpretada como sendo a prova cabal do quão destrutivo o "capitalismo
desregulado" pode ser e do quão perigosos seus defensores são — afinal, os
defensores do livre mercado se opuseram a todos os pacotes de socorro
concedidos aos bancos, pacotes esses que supostamente salvaram os EUA de outra
Grande Depressão.
Em
seu livro The Great Deformation,
David Stockman — ex-congressista e diretor da Secretaria
de Administração e Orçamento do governo Reagan de 1981-85 — conta toda a
história da recente crise, e ataca impiedosamente o senso comum que credita às
políticas do governo e a Ben Bernanke o mérito de ter salvado os americanos de
outra Grande Depressão. Neste campo, a
contribuição de Stockman é sem precedentes.
O
livro aborda todos aqueles argumentos que foram apresentados em defesa dos
pacotes de socorro em 2008, os quais até hoje ainda representam o senso comum
da mídia e da academia. Tanto naquela
época quanto hoje, o principal argumento sempre foi o de que, caso o governo
não interviesse, um "efeito contágio" iria fazer a crise financeira se propagar
para todos os setores da economia americana, indo para muito além de alguns
poucos bancos e corretoras de Wall Street.
Sem os pacotes de socorro, as folhas de pagamentos de todas as empresas
americanas não mais poderiam ser cumpridas.
Os caixas eletrônicos parariam de soltar dinheiro e ficariam
paralisados. Mas as sábias decisões
políticas tomadas pelo Tesouro e pelo Federal Reserve impediram estes e outros
cenários tenebrosos, e impediram a segunda Grande Depressão.
Peguemos
o exemplo do socorro à gigante AIG [American
International Group, corporação americana provedora de serviços financeiros
e seguros nos EUA e em outros países]. A
AIG era uma empresa que fornecia seguros contra calotes de hipotecas. Os bancos concediam empréstimos para a
aquisição de imóveis, e essas carteiras de empréstimos eram seguradas pela AIG. Para fazer tal seguro, a AIG vendia para os
bancos um instrumento chamado CDS [credit default swap], e os bancos faziam uma
série de pagamentos periódicos para a AIG em troca destes CDS. Caso os devedores dessem o calote nos
empréstimos bancários, a AIG pagaria aos bancos.
Porém,
como os calotes foram vários, a AIG ficou completamente insolvente e foi
socorrida pelo governo americano. O
socorro ocorreu sob um ambiente de total histeria. Disseram ao público que a AIG tinha de ser
socorrida pelo governo porque, caso contrário, todo o sistema bancário americano,
cujas perdas estavam seguradas pela AIG, quebraria. O problema é que praticamente nenhum dos CDS
vendidos pela AIG estava em posse dos bancos convencionais, aqueles fora de
Wall Street. E mesmo em Wall Street os efeitos
seriam confinados a apenas uma dúzia de bancos e corretoras, sendo que absolutamente
todos eles possuíam um amplo colchão para absorver tais prejuízos.
No
entanto, graças aos pacotes de socorro do governo, os barões não tiveram um
dólar de prejuízo em suas hipotecas caloteadas.
No final, todo o socorro orquestrado pelo governo se resumiu a proteger
os ganhos de curto prazo e os bônus dos executivos a serem pagos no final
daquele ano.
Essa
proteção do estado aos grandes não foi de modo algum uma medida inédita. Dez anos antes, o Fed já havia emitido um
sinal bastante claro de qual seria sua política futura: ele socorreu um hedge fund chamado Long Term
Capital Management (LTCM). Se aquela empresa foi socorrida, concluiu
Wall Street, então não mais há limites para os tipos de loucura que o Fed socorreria
com sua criação de dinheiro.
Desde o início, o LTCM, diz Stockman, era "um flagrante
desastre financeiro que havia acumulado taxas de alavancagem de 100 para 1 com
o objetivo de financiar gigantescas apostas especulativas em moedas, ações,
títulos e derivativos ao redor do globo.
A acentuada temeridade e a vultosa escala das especulações do LTCM não possuíam
paralelo na história financeira americana . . . . O LTCM era algo
explicitamente insolvente, e não tinha absolutamente nenhum direito de recorrer
ao governo para utilizar recursos públicos para se safar."
Quando o índice S&P 500 disparou 50% ao longo dos
quinze meses seguintes, isso não era um sinal de que as empresas americanas
estavam vendo suas perspectivas de lucros aumentarem 50%. Ao contrário, tal aumento indicava a
confiança de Wall Street de que o Fed iria impedir que futuros investimentos
errados recebessem as tradicionais punições impostas pelo livre mercado. Sob este 'capitalismo de estado', o índice do
mercado de ações passou a refletir "o estímulo monetário que era esperado do
Banco Central, e não a expectativa de aumento dos lucros de empresas operando
no livre mercado."
Não foram apenas algumas empresas específicas que
usufruíram das benesses do Fed de Alan Greenspan e Ben Bernanke; todo o mercado
de ações foi beneficiado. As políticas
do Fed passaram a se concentrar no "efeito riqueza" gerado pelo aumento dos
preços das ações. A ideia era que, se o
Fed estimulasse os preços das ações, os americanos donos destas ações se
sentiriam mais ricos e consequentemente estariam mais propensos a gastar mais e
a se endividar mais para continuar consumindo, desta forma estimulando a
atividade econômica. E foi isso o que
aconteceu.
Esta abordagem política, por sua vez, praticamente compeliu
a implementação dos pacotes de socorro que inevitavelmente viriam. Qualquer evento que pudesse derrubar os
preços das ações iria frustrar esse efeito riqueza. E isso não era tolerável. Logo, o sistema teria de ser estimulados por
todos os meios necessários.
Quais os resultados desta política? Ela tem algo do que se gabar? Stockman fornece a resposta:
Se os planejadores centrais do sistema monetário estavam
tentando criar empregos por meio do sinuoso método do "efeito riqueza", então
eles têm de estar profundamente constrangidos pela sua incompetência. A única coisa que ocorreu no front da criação
de empregos ao longo da última década foi uma maciça expansão das 'brigadas do
urinol e do diploma' — isto é, os empregos foram criados apenas em hospitais,
clínicas de repouso, agências de saúde domiciliar e faculdades. Com efeito, o complexo educacional-hospitalar
responde pela totalidade dos empregos criados desde o final da década de 1990
nos EUA.
Enquanto
isso, o número de empregos realmente capazes de sustentar uma família de classe
média não aumentou absolutamente nada entre janeiro de 2000 e janeiro de 2007,
permanecendo em 71,8 milhões. Toda a
forte expansão ocorrida no mercado imobiliário, no mercado de ações e no
consumo das famílias conseguiu, no final, produzir apenas esta amarga
estatística. E quando se considera todo
o período de 12 anos desde 2000, houve uma criação líquida de 18.000 empregos
por mês — um oitavo da taxa de crescimento da força de trabalho.
Abaixo,
a evolução da taxa de emprego em relação ao total da população.

Após o estouro da crise
financeira, o Fed continuou criando dinheiro para irrigar o mercado de
ações. Em setembro de 2012, o S&P já
havia subido 115% desde suas mínimas atingidas no pós-crise. Dos 5,6 milhões de empregos capazes de
sustentar uma família de classe média perdidos durante a recessão, somente
200.000 haviam sido restaurados até aquele mês.
E durante esta tão badalada "recuperação", o fato é que as famílias
americanas gastaram, no terceiro trimestre de 2012, US$30 bilhões a menos em
alimentos do que gastaram durante o mesmo período de 2007.
O repentino surgimento de enormes déficits
orçamentários nos últimos anos, na casa de US$ 1 trilhão, simplesmente
explicitou aquilo que a bolha dos anos Bush havia escondido. A falsa riqueza gerada pela expansão do
mercado imobiliário e do consumismo no período 2000-2008 conseguiu reduzir
temporariamente a quantidade de dinheiro gasta em programas assistencialistas,
e temporariamente aumentou a quantidade de receita tributária auferida pelo
governo. Porém, tão logo essa falsa
prosperidade se arrefeceu, o verdadeiro déficit, o qual havia apenas sido
suprimido por estes fatos temporários, começou a aparecer.
Durante todo este período de bonança artificial, o
Fed havia garantido aos americanos que os EUA estavam vivenciando uma genuína
prosperidade. Ao inundar Wall Street com
dinheiro criado do nada, o Fed viu o valor das ações e dos imóveis disparar e
anunciou que estava contente com o "efeito riqueza" assim gerado. As pessoas passaram a utilizar a contínua
valorização de seus imóveis como colateral para refinanciar suas dívidas e
conseguir mais empréstimos junto aos bancos, aumentando continuamente seu
consumo e seu endividamento. Ao
testemunhar esta farra consumista, o Fed maravilhou-se com o fato de que os
dados macroeconômicos eram ainda melhores do que o esperado.
Que estas deformações tenham sido confundidas com
prosperidade e crescimento econômico sustentável é uma boa prova da insensatez
sem fim das doutrinas monetárias hoje em voga no meio monetário.
Stockman também discute em seu livro as condições
fiscais do governo americano. Parte
dessa história nos remete aos gastos militares dos anos Reagan. A história narrada por Stockman, que foi
membro daquele governo, não é a mesma que se ouve da boca dos políticos. A verdadeira história é exatamente aquela da
qual todo mundo suspeitava: um frenesi de programas irrelevantes e arbitrários,
os quais, uma vez iniciados, não mais eram interrompidos, dado que vários
empregos passaram a depender deles.
Mas pelo menos esta escalada dos gastos militares
gerou o colapso da União Soviética, certo?
Stockman não acredita nisso. "Os
US$3,5 trilhões (em dólares de 2005) gastos em defesa durante os anos Reagan
não fizeram com que o Kremlin erguesse a bandeira branca da rendição. Praticamente nenhum dólar foi gasto em
programas que de fato ameaçassem a segurança soviética ou debilitassem sua
estratégia de intimidação nuclear."
No cerne do programa de gastos
militares do governo Reagan . . . havia um paradoxo. Os tambores da guerra rufavam uma estratégica
ameaça nuclear que virtualmente ameaçou a civilização americana. No entanto, o dinheiro estava sendo realmente
gasto em tanques, barcaças de desembarque anfíbio, helicópteros de apoio aéreo
aproximado, e uma vasta armada convencional de navios e aviões.
Estas armas seriam de pouco
valor na eventualidade de um embate nuclear, mas eram muito adequadas a missões
imperialistas de invasão e ocupação de outros países. Ironicamente, portanto, a corrida
armamentista do governo Reagan foi justificada por um Império do Mal (como ele
se referia à URSS) que estava rapidamente desaparecendo, mas, no final, foi
utilizada para iniciar guerras eletivas contra um Eixo do Mal que nem sequer
existia.
O que realmente viria a derrubar a União Soviética
era a sua própria economia centralizada — um ponto que, observa Stockman, os
economistas libertários já vinham anunciando havia algum tempo. Os neoconservadores, por outro lado, faziam
ridículas alegações sobre as capacidades soviéticas e sobre sua 'portentosa'
economia exatamente em uma época em que sua decrepitude já deveria estar óbvia
para todos. Estas asserções inflamadas
sobre os inimigos do regime continuaram a ser o procedimento padrão dos
neoconservadores até muito tempo depois do fim dos anos Reagan.
No final, o objetivo do livro de Stockman é mostrar
como todos os intelectuais da mídia e do meio político enganaram e manipularam
os americanos. Acima de tudo, seu
objetivo é mostrar que as tentativas de culpar os atuais problemas econômicos dos
EUA no "capitalismo" são ilógicas e absurdas, e revelam uma completa falta de
entendimento sobre como a economia tem sido deformada ao longo das últimas
décadas.
Stockman bate com gosto nos formadores de opinião
progressistas — defensores do cidadão comum, como gostam de se autointitular
— que defenderam os pacotes de socorro aos bancos e naqueles pretensos "livre-mercadistas"
que defenderam o TARP (Troubled Asset Relief Program — Programa de Alívio para
Ativos Problemáticos), como praticamente todos os candidatos republicanos de
2012, com a exceção de Ron Paul. Ambos
os lados, em uníssono com a mídia convencional, repetiram continuamente
estórias assustadoras sobre o quão grande seria a tragédia caso o governo não
tomasse dinheiro dos pequenos para dar para os grandes. E ambos os lados só tinha coisas boas a dizer
sobre como o Fed gerenciou a economia americana nos últimos 25 anos.
O livro de Stockman mostra com dados, argumentos e
uma sólida teoria por que o livre mercado tem de ser exonerado das acusações
violentamente proferidas por burocratas, políticos e seus aliados, todos ávidos
para encontrar um bode expiatório que os livrasse das consequências trágicas de
suas próprias políticas.