segunda-feira, 20 0aio 2013
O
real entrou em circulação em julho de 1994.
Embora seja louvado como a moeda que trouxe estabilidade econômica para
o Brasil, a realidade é menos auspiciosa.
De julho de 1994 a março de 2013, a
inflação de preços acumulada pelo
IPCA está em 330%. Pelo IGP-M, a
situação fica ainda mais tenebrosa: 458%.
Neste
mesmo período, a inflação de preços da Austrália — país de dimensões e
economia semelhantes ao Brasil — foi de 65%.
Na Nova Zelândia, 53%. No Chile,
126%. No final, nosso histórico é
semelhante ao da Colômbia (459%), país que até 2003 vivenciou algo muito
semelhante a uma guerra civil.
Por
que esse histórico tão desanimador? O
que pretendo mostrar neste artigo é que, dentre todas as opções de política
monetária que se mostraram possíveis a cada momento, sempre escolhemos a pior. E, no atual arranjo, isso tem gerado distorções com um potencial trágico.
Sim,
é fácil e confortável fazer acusações olhando em retrospecto, mas tal
comodidade não deve ser um impeditivo para absolver as autoridades monetárias
de suas culpas.
Mesmo
em nosso melhor momento, que foi durante a primeira etapa do Plano Real
(1994-1998), as coisas não foram feitas como deveriam ser.
Para acabar
com uma hiperinflação
Um
país que está vivenciando uma hiperinflação e que quer estabilizar sua economia
— como o Brasil no início da década de 1990 — não tem muita opção: ele não
apenas tem de trocar sua moeda, como tem também de mostrar para todo o mundo
que está genuinamente disposto a, dali em diante, "levar as coisas mais a
sério". Caso não transmita essa
confiança aos investidores internacionais, sua nova moeda simplesmente não terá
nenhuma aceitação no mercado internacional — e, consequentemente, sua população
não terá nenhum poder de compra fora do país.
Adicionalmente,
dado que a causa de todas as hiperinflações da história sempre estiveram no
hiperativismo de seus Bancos Centrais — que, até a década de 1990, podiam
imprimir dinheiro para financiar diretamente o governo federal —, a primeira
medida a ser tomada pelo país é mostrar que esta instituição operará de agora
em diante de maneira bastante contida.
Sendo
assim, não basta apenas trocar a moeda — afinal, nada garante que o Banco
Central não continuará desvairado. É
preciso deixar claro que a nova moeda terá "qualidade", isto é, que ela será
lastreada por uma moeda mundialmente reconhecida como forte. Apenas isso pode gerar confiança no novo
regime que está sendo adotado. E uma
maneira bastante eficaz de se fazer isso é adotando um regime de câmbio fixo.
Existem
três tipos de política cambial: há o câmbio fixo, há o câmbio atrelado e há o
câmbio flutuante.
Câmbio fixo e câmbio atrelado
O
câmbio fixo — e aqui me refiro ao câmbio estritamente fixo, cujo valor nunca
se modifica — só ocorre quando uma economia opera sob um Currency Board. O Currency Board nada mais é do que uma
agência de conversão de moeda que, por definição, tem de manter reservas
internacionais em um volume que seja igual ou maior que a base monetária da
moeda nacional. A função do Currency
Board é trocar moeda nacional pela moeda estrangeira escolhida para servir de
"âncora cambial" a uma taxa de câmbio fixa.
Normalmente, essa moeda é o dólar.
Mas, ao longo da história, a libra, o marco alemão e, atualmente, o euro
já desempenharam e seguem desempenhando essa função.
Sob
este arranjo, quando um empreendedor exporta produtos, ele recebe como
pagamento uma moeda estrangeira — no caso, o dólar. Ato contínuo, o Currency Board emite moeda
nacional a uma taxa de câmbio fixa em relação ao dólar e deposita o valor na
conta deste exportador. Os dólares ficam
com o Currency Board. Inversamente,
quando um empreendedor importa produtos, a moeda nacional é trocada por dólares
a uma taxa fixa no Currency Board, que então fica com a moeda nacional e envia
os dólares para fora.
Note
que, sob um Currency Board, a variação da base monetária é completamente
passiva. Ela aumenta e diminui
estritamente de acordo com a entrada e saída de moeda estrangeira. O Currency Board não faz política
monetária. Ele não pode criar moeda
nacional e injetá-la na economia em troca de um ativo qualquer. Ele só pode emitir moeda nacional se receber
um valor equivalente em moeda estrangeira.
Sob
este regime de câmbio estritamente fixo e de política monetária totalmente
passiva, quando há um superávit no balanço de pagamentos, a base monetária se
expande. Isso gera uma redução nos juros
e, consequentemente, uma expansão no crédito e uma elevação nos preços. Ato contínuo, as importações aumentam, o que
gera uma saída de reservas do país. Tal
saída de reservas reduz a base monetária.
Os juros sobem, a economia se desacelera e o balanço de pagamentos volta
ao equilíbrio. Tal arranjo funciona
exatamente como funcionaria um padrão-ouro, com uma moeda estrangeira fazendo o
papel do ouro. (Com o tempo, o balanço
de pagamentos tende ao equilíbrio, de forma que tais flutuações econômicas
sejam mínimas.)
O
Currency Board gera confiança na moeda doméstica justamente porque ele mantém
reservas internacionais em um volume igual ou maior que a base monetária da
moeda nacional. Em teoria, quando a
operação do Currency Board é obedecida ortodoxamente, ataques especulativos não
geram resultados — afinal, seria impossível exaurir as reservas internacionais
(a base monetária teria de ser toda mandada pra fora, algo por definição
impossível). Essa é a principal atratividade do sistema: ele dá segurança
aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da
moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem
repatriar seus lucros.
Uma
explicação mais detalhada sobre o funcionamento de um Currency Board já foi
feita neste artigo. A intenção aqui é apenas ressaltar que tal
arranjo não apenas é o mais eficiente para se aniquilar rapidamente uma
hiperinflação, como também é o arranjo que realiza tal feito com o mínimo de
efeitos colaterais: ele aniquila uma hiperinflação sem deixar de herança juros estratosféricos, como ocorreu no Brasil. Um país que adota um Currency Board passa a
operar com juros semelhantes aos juros vigentes no país emissor da moeda
utilizada como âncora.
O
melhor exemplo histórico deste fenômeno é fornecido pela Bulgária. Em 1996, sucessivas trapalhadas econômicas
fizeram com que o país decretasse moratória em sua dívida externa. Em 1997, o país entrou em hiperinflação e
vários protestos nas ruas quase levaram o país a uma revolução social.
Em
março de 1997, o país apresentava uma inflação anual de 2.019%. A legislação para a implantação de um
Currency Board foi então apresentada e o Currency Board, que teria marcos alemães
como reserva, foi criado no dia 1º de julho.
Em um ano e meio, a inflação de preços caiu de 1.500% para 1,4%.
Gráfico 1: taxa
de inflação de preços na Bulgária, janeiro de 1997 a dezembro de 1998
Ainda
mais espantosa foi a queda dos juros do mercado interbancário (equivalente à
nossa SELIC): de 555% no auge da hiperinflação para apenas 3,56% no mesmo mês
em que o Currency Board passou a operar.
Gráfico 2: taxa
de juros do mercado interbancário na Bulgária, janeiro de 1997 a janeiro de
1998.
A
Bulgária foi apenas o mais extremo dos exemplos. Mas todos os outros países que também adotaram
um Currency Board — Hong Kong, Estônia, Lituânia e Argentina — vivenciaram
este mesmo fenômeno: queda abrupta na inflação de preços e, principalmente,
drástica redução nas taxas de juros, que caíram para apenas um dígito.
E
isso vale ser ressaltado: com a exceção de Hong Kong, todos os países acima
citados estavam na mais completa baderna.
Não obstante, a criação de um Currency Board logrou fazer com que suas
economias — até então completamente avacalhadas — se tornassem repentinamente
civilizadas, com inflação de preços e taxas de juros iguais às de países
desenvolvidos.
Agora
comparemos esse histórico ao que fez o Brasil.
Ao
contrário do que é dito até hoje com muita frequência, o Plano Real nunca se
baseou um uma "âncora cambial" ou em um "câmbio
fixo". Desde que o real foi introduzido em primeiro de julho de
1994, o câmbio nunca foi fixo, sequer por um dia. O Brasil adotou o regime de "câmbio atrelado
ao dólar". Neste sistema, o Banco
Central faz intervenções diárias no mercado de câmbio (comprando ou vendendo
dólares) com o intuito de manter a cotação do dólar próxima a um valor por ele
estipulado.
Veja
a evolução da taxa de câmbio de julho de 1994 até dezembro de 1998, último mês
antes da alteração do regime cambial.
Gráfico 3:
evolução da taxa de câmbio durante a primeira fase do real, julho de 1994 a dezembro
de 1998
O
principal problema em se utilizar um câmbio atrelado é que há uma contradição
entre a política monetária e a política cambial. Com uma taxa de câmbio fixa — no caso, um
Currency Board —, não há política monetária; as variações no balanço de
pagamento determinam as variações da base monetária da economia. Com uma taxa de câmbio flutuante — a ser
analisada mais abaixo —, não há política cambial; o Banco Central se preocupa
apenas em fazer política monetária. Já
com um câmbio atrelado, o Banco Central tenta fazer as duas coisas ao mesmo
tempo: determinar uma política monetária e uma política cambial, sendo que
ambas são mutuamente excludentes, impossíveis de serem efetuadas
simultaneamente. Inevitavelmente, a
política cambial acaba entrando em choque com a política monetária, e os
ataques especulativos são a consequência inevitável.
Quando
se trabalha com um câmbio atrelado, o Banco Central tem de, diariamente, fazer
intervenções no mercado de câmbio de para fazer com que o dólar fique próximo à
cotação determinada pelo Banco Central.
Sendo assim, quando ocorre uma entrada "excessiva" de dólares no país,
há uma tendência de apreciação do câmbio.
Para evitar isso, o Banco Central compra estes dólares criando reais, o
que gera um aumento da base monetária.
Ato contínuo, para evitar este súbito aumento da base monetária, o Banco
Central vende títulos públicos para retirar da economia os reais que ele
próprio acabou de criar quando fez a conversão de dólares para real (esse
processo é tecnicamente chamado de "esterilização").
Já
quando ocorre uma saída de dólares, o fenômeno inverso é observado: há uma
tendência de depreciação do câmbio devido à maior procura por dólares. Para evitar isso, o Banco Central vende
dólares para satisfazer esse aumento da demanda por dólares. Essa venda de dólares pelo Banco Central gera
uma redução da base monetária. Para
evitar essa redução, algo que tende a gerar uma recessão, o Banco Central cria
reais e compra títulos públicos em posse dos bancos.
Adicionalmente,
vale enfatizar que, durante toda essa primeira fase do Plano Real, houve
déficits na balança comercial (mais importações do que exportações). Para compensar esses déficits, o Banco
Central tinha de manter juros bastante altos para atrair dólares e fazer com
que o balanço de pagamentos pudesse se equilibrar.
Observe
que este comportamento ativo do Banco Central é totalmente distinto do
comportamento de um Currency Board, que permite que a base monetária varie
automaticamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos.
E
é exatamente por isso que a opção por um regime de câmbio atrelado custa caro:
como o regime não inspira confiança nos investidores internacionais — pois uma
desvalorização pode ocorrer a qualquer momento — e dada a contínua necessidade
de estar sempre atraindo dólares para se fechar o balanço de pagamentos e para
manter o câmbio dentro do intervalo especificado pelo Banco Central, as taxas de juros têm de ser bastante
elevadas. O gráfico abaixo mostra a
evolução da SELIC de agosto de 1994 até o final de dezembro de 1998. Compare com os juros da Bulgária, no gráfico
2.
Gráfico 4:
evolução dos juros do mercado interbancário brasileiro (taxa SELIC), de agosto
de 1994 a dezembro de 1998.
E
esta foi justamente a "mácula" da primeira fase do Plano Real: a
necessidade de manter juros altos para atrair dólares e, com isso, manter a
confiança da comunidade internacional no Plano. Não bastasse isso, o
governo ainda apresentava um déficit orçamentário de aproximadamente 7% do PIB
(não havia sequer superávit primário). Tamanha necessidade de
financiamento contribuía ainda mais para a elevação dos juros.
No
final, o que vale ser ressaltado é que esta postura do Banco Central — de
ficar vendendo e comprando dólares para manter o câmbio dentro de um intervalo
especificado e de ficar arbitrando juros para atrair dólares para fechar o
balanço de pagamentos — gera um descasamento entre a quantidade de dólares nas
reservas internacionais e a base monetária do país: haverá um momento em que a
quantidade de dólares nas reservas internacionais será bem menor do que a base
monetária. Quando isto ocorre, é apenas
uma questão de tempo para que os especuladores descubram esta contradição entre
política cambial e política monetária e forcem uma desvalorização da moeda —
ou a imposição de controle de capitais.
Este
tipo de ataque especulativo varreu a América Latina e o sudeste asiático ao
longo da década de 1990. A crise do
México em 1994, a crise asiática em 1997 e 1998, a crise do real em janeiro
de 1999 e a crise da Argentina em dezembro de 2001 (cujo Currency Board
havia sido praticamente abolido em junho daquele ano) —
todas ocorreram de acordo com este mecanismo.
Com efeito, até mesmo o ataque perpetrado por George Soros à libra
esterlina em 1992 se deu por causa deste arranjo, uma vez que o Banco Central
da Inglaterra vinha mantendo a libra atrelada ao marco alemão.
Veja
a evolução das reservas internacionais do Brasil, e observe a queda súbita
ocorrida no segundo semestre de 1998 em decorrência do ataque especulativo que
culminou com a abolição do regime de câmbio atrelado:
Gráfico 5:
evolução das reservas internacionais durante a primeira fase do real, julho de
1994 a dezembro de 1998
Sendo
assim, surge a pergunta inevitável: se um Currency Board é estável e se um
regime de câmbio atrelado sempre se esfacela, por que então a opção pelo último
é quase que universal? Há várias
respostas, mas duas se sobressaem: o regime do câmbio atrelado não abole a
moeda nacional e, principalmente, o governo mantém sua autonomia para fazer
política monetária, algo de extrema importância para financiar seus déficits
via inflação. O preço desse nacionalismo
e dessa autonomia governamental são juros altos, instabilidade e crise no
balanço de pagamentos.
Por
outro lado, para não dizer que só há críticas ao arranjo brasileiro, houve um
fator positivo: o comportamento da inflação de preços. Como o Banco Central tinha de manter a
expansão monetária contida para evitar uma súbita desvalorização do real
perante o dólar, a inflação de preços apresentou um continuado declínio. Não tão súbito quanto o da Bulgária e da
Argentina, mas ainda assim substancial.
Gráfico 6:
evolução da inflação de preços durante a primeira fase do real, junho de 1995 a
dezembro de 1998
A adoção do
câmbio flutuante e o problema com o sistema de metas de inflação
Após
a inevitável série de ataques especulativos (detalhados aqui)
ocorrida no final de 1998, que reduziu abruptamente a quantidade de reservas
internacionais do Banco Central, o regime de câmbio atrelado foi abolido logo
no início de 1999.
A
partir daquele ano, adotou-se aquilo que é conhecido hoje como 'tripé
macroeconômico': câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação.
Em
tese, adotar um câmbio flutuante significa que o Banco Central irá se preocupar
exclusivamente com a política monetária — isto é, irá se preocupar apenas em
controlar a evolução da base monetária e dos agregados monetários (M1, M2, M3 e
M4) visando a atingir uma determinada meta de inflação de preços, sem olhar
para o câmbio. O comportamento da taxa
de câmbio ficará exclusivamente por conta das forças de mercado. Justamente por não se preocupar com a taxa de
câmbio, um regime de câmbio flutuante não sofre crises no balanço de
pagamentos, como ocorre com o regime de câmbio atrelado.
O
problema é que, na prática, tal teoria nunca foi de fato implantada. Em primeiro lugar, o Banco Central brasileiro
nunca se preocupou exclusivamente com a política monetária, deixando a taxa de
câmbio flutuar ao sabor do mercado. Ele
sempre tentou controlar as duas variáveis, que são incompatíveis. Consequentemente, ao tentar fazer duas coisas
mutuamente excludentes — política monetária e política cambial —, o resultado
final foi uma inflação de preços continuamente acima da meta (a qual, diga-se
de passagem, sempre foi muito alta).
O
gráfico abaixo detalha este descasamento.
A linha azul mostra como seria a inflação de preços acumulada de 1999
caso o Banco Central de fato conseguisse manter a inflação de preços dentro da
meta por ele próprio estipulada. Já a
linha vermelha mostra a verdadeira inflação de preços acumulada. (Veja os valores anuais aqui).
Gráfico 7:
inflação de preços acumulada de acordo com a meta estipulada pelo Banco Central
(linha azul); inflação de preços observada (linha vermelha)
Mas
o principal problema desse atual tripé macroeconômico nem chega a ser o
conflito entre política monetária e política cambial: o problema está
justamente no formato escolhido para a política monetária.
O
modelo de política monetária utilizado pelo Banco Central brasileiro se resume
a estipular uma meta para a
taxa de juros do mercado interbancário (a SELIC) e, em seguida, fazer injeções
de dinheiro no mercado interbancário para tentar manter essa taxa de juros estipulada. Por meio de cálculos econométricos
sofisticadíssimos (e sempre errados), o Banco Central estipula qual é o valor
da SELIC que, na crença dos burocratas, fará com que a inflação de preços fique
próxima do valor tido pelo Banco Central como 'desejável'.
Tal
prática — a qual, segundo a imprensa, foi unanimemente testada e aprovada ao
redor do mundo — não apenas gerou um legado desastroso para o Brasil, como
também, ao contrário do que se imagina, é utilizada por apenas um outro grande
Banco Central em todo o mundo: o Fed.
Um pequeno histórico do sistema de metas
para a taxa de juros
Essa
política de metas para a taxa de juros foi adotada pela primeira vez nos EUA no
final dos anos 1970. O então presidente
do Fed e criador desta política foi um cavalheiro chamado G. William Miller,
que, de tão desastrado, durou no cargo apenas de janeiro de 1978 a agosto de
1979. O resultado de sua criação foi tão
pavoroso, que Jimmy Carter teve de tirar o sujeito do comando do Fed e colocar
o durão Paul Volcker em seu lugar.
O problema desta política criada por Miller — e hoje adotada pelo Brasil — é
que, quando você estipula uma determinada taxa de juros como alvo, você perde
totalmente o controle do crescimento da base monetária e dos agregados
monetários, os quais passam a se comportar de forma totalmente errática. O M2 americano, sob o comando de Miller,
passou a crescer a uma taxa de dois dígitos (12%), algo até então inédito na
história do país. Foi isso que aniquilou
Miller e provocou a inflação galopante americana daquela época. Para se ter uma ideia, em novembro de 1978,
apenas 11 meses após implantar sua nova política, Miller fez com que o dólar se
desvalorizasse 34% em relação ao marco alemão e 42% em relação ao iene japonês.
Já no início de 1980, o "IPCA" americano
estava em 15%.

Gráfico 8: evolução da inflação de preços
nos EUA, janeiro de 1977 a março de 1980
Quando Miller foi retirado, Paul Volcker assumiu o comando e disse que essa prática
de determinar uma meta para a taxa de juros não mais seria a política do Fed, e
passou a controlar diretamente o crescimento da base monetária e dos agregados
monetários, desconsiderando totalmente as taxas de juros resultantes, as quais
passaram a flutuar alucinadamente. De
início, isso aniquilou a inflação de preços, que caiu de 15% em 1980 para 2,5%
em 1983.
Gráfico 9: evolução da inflação de preços nos EUA, março
de 1980 a julho de 1983
Abaixo,
a variação da taxa básica de juros americana neste período.
Gráfico 10:
variação da taxa básica de juros americana.
De meados de 1979 ao final de 1983, o Fed se preocupou exclusivamente em
controlar os agregados monetários, gerando aquelas desenfreadas variações nos
juros.
Porém,
como havia vários distintos e complexos agregados monetários, ninguém se
entendia a respeito de "o que era dinheiro" e qual agregado monetário deveria
ser seguido: o M1, o M1-A, o M2, o M3 ou o M4?
Consequentemente,
mais tarde, em agosto de 1982, o Fed retornou à política de determinar uma meta
para os juros, sendo até então o único Banco Central do mundo a fazer
isso. Quinze
anos depois, mais especificamente a partir de 1999, o Banco Central brasileiro também
viria a imitá-lo. Hoje, estes são os
únicos grandes bancos centrais do mundo a fazer este tipo de política
monetária.
Como
tal afirmação parece estranha, vale a pena enfatizá-la: dentre os grandes,
apenas o Fed e o Banco Central brasileiro utilizam este mecanismo de
continuamente injetar dinheiro no mercado interbancário — chamado de operações
de mercado aberto — para manter a taxa básica de juros em um determinado
nível. O Banco Central Europeu, o Banco Central
suíço, o Banco Central da Inglaterra, o Banco Central japonês, o Banco Central
canadense, o Banco Central australiano e o Banco Central neozelandês estipulam
os juros por meio da janela de redesconto, um mecanismo muito mais punitivo
para os bancos.
Já
o Banco Central de Cingapura não estipula juros nenhum. Ele apenas controla a taxa de câmbio do dólar
cingapuriano em relação a uma cesta formada pelas moedas dos principais
parceiros comerciais do país.
Não
é o objetivo deste artigo especificar como funcionam os mecanismos utilizados
por estes outros bancos centrais; basta dizer que mercado aberto (Brasil e EUA)
é dar dinheiro para os bancos em troca de títulos públicos, ao passo que janela
de redesconto é empréstimo.
Como
aqui os economistas só leem literatura americana, eles adotaram o Fed e suas
operações de mercado aberto como modelo a ser seguido.
Consequências
As
duas principais consequências deste modelo de política monetária adotada pelo
Banco Central brasileiro são o estímulo maior à inflação monetária e ao
endividamento das pessoas.
Se
o Banco Central está continuamente injetando dinheiro no mercado interbancário
para tentar manter os juros próximos a um valor específico, ele irá estimular
os bancos a concederem mais empréstimos.
Consequentemente, a expansão do crédito — isto é, a expansão da
quantidade de dinheiro na economia — será mais intensa e mais errática.
O
gráfico abaixo mostra a evolução da quantidade de títulos públicos em posse do
Banco Central. Ele mostra a quantidade
de dinheiro que o Banco Central brasileiro já criou e entregou ao sistema
bancário com o intuito de manter a taxa básica de juros, a SELIC, próximo do
valor por ele estipulado.

Gráfico 11:
títulos públicos comprados do sistema bancário pelo Banco Central brasileiro
A
consequência desta maciça injeção de dinheiro no mercado interbancário foi a volumosa
expansão do volume de crédito na economia.
Quando bancos concedem crédito, eles criam dinheiro eletrônico para
emprestar a pessoas e empresas. O
gráfico abaixo mostra a evolução do crédito concedido pelos bancos ao setor
privado da economia (pessoas físicas, indústrias, setor rural, comércio e
serviços).

Gráfico 12: total
do crédito concedido pelo sistema bancário brasileiro ao setor privado
E
a consequência desta expansão do crédito foi a desordenada, errática e colossal
expansão da quantidade de dinheiro na economia.
O gráfico abaixo mostra a expansão do M2 brasileiro (cédulas e moedas
metálicas, depósitos em conta-corrente, depósitos em poupança e depósitos a
prazo).

Gráfico 13:
evolução do M2 brasileiro
No
final, essa política monetária adotada pelo Banco Central que se resume a
injetar dinheiro no mercado interbancário para controlar a taxa de juros gerou
uma inflação de preços sistematicamente maior do que a vivenciada durante a era
do câmbio atrelado. Observe no gráfico
abaixo que, ao passo que a inflação de preços apresentava uma tendência
claramente declinante até 1998 (sendo que o IPCA daquele ano foi de saudosos
1,65%), houve uma súbita e pronunciada inversão desta tendência a partir de
1999. A tendência de alta apresentada
desde 2007 é preocupante.

Gráfico 14:
evolução do IPCA acumulado em 12 meses
Porém,
ainda pior do que a inflação de preços é o grau de endividamento da população
brasileira. E isso era inevitável. Se você cria um sistema monetário que se
baseia completamente no controle artificial dos juros e no estímulo ao crédito,
o incentivo ao endividamento se torna irresistível. E as consequências podem ser trágicas.
O
gráfico abaixo mostra o nível de endividamento das famílias em relação à sua
renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul) e os gastos das famílias
com o serviço de suas dívidas — ou seja, juros e amortização — em relação à
sua renda mensal (linha vermelha). De acordo com as últimas estatísticas,
o endividamento das famílias é de quase 43,75% da sua renda acumulada em doze
meses, e os gastos das famílias para cumprirem o serviço de suas dívidas é de 21,70%
de sua renda mensal.

Gráfico 15: nível
de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze
meses (linha azul); gastos das famílias com o serviço de suas dívidas — juros
e amortização — em relação à sua renda mensal (linha vermelha).
A
título de comparação, como é possível ver no gráfico deste artigo,
esta mesma variável (linha vermelha) para os americanos é de apenas 11%.
Tal
nível de endividamento levou a uma inadimplência total de R$85 bilhões, um
recorde.

Gráfico 16:
inadimplência dos brasileiros junto ao sistema financeiro
Conclusão
Eis
aí a nossa sinuca de bico. O endividamento
e a inadimplência estão em alta, o que reduz a propensão ao consumo futuro e,
consequentemente, restringe novos investimentos. A atual contração do setor industrial, que se
expandiu acentuadamente durante os anos de 2010 e 2011, época da farra do crédito,
é uma consequência inevitável desta nova realidade.
Enquanto
estas duas variáveis (endividamento e inadimplência) não forem equacionadas,
não há grandes perspectivas para o crescimento econômico. E caso a SELIC mantenha sua trajetória de
alta — o que pode se traduzir em um aumento dos juros do crediário —, o
endividamento e a inadimplência podem piorar, afetando ainda mais a economia e
a situação financeira dos bancos, das empresas e das indústrias.
Adicionalmente,
a quantidade de dinheiro na economia (gráfico 13) tem apresentado um acentuado
arrefecimento no seu ritmo de crescimento, muito provavelmente porque os bancos
estão mais contidos em seu ritmo de concessão de empréstimos — certamente
estão mais cautelosos com o nível de endividamento e com a inadimplência. Esse fenômeno foi analisado em detalhes neste artigo.
Essa
combinação entre desaceleração do ritmo de crescimento da quantidade de
dinheiro na economia e inflação de preços ainda em alta está afetando
sensivelmente a renda real das pessoas.
Em outras ocasiões em que inflação de preços também estava alta, como em
meados de 2011, não havia esta sensação de renda afetada porque a quantidade de
dinheiro na economia também estava crescendo acentuadamente, o que gerava um
certo alívio. Agora, no entanto, o
arranjo é outro: a inflação de preços está em alta, mas a quantidade de
dinheiro na economia está crescendo bem mais contidamente, o que gera esta
sensação — real — de aperto financeiro.
Este atual arranjo dificulta ainda mais a capacidade das pessoas de
honrarem suas dívidas.
E
caso os juros aumentem (ou caso desemprego suba), tanto os gastos com o serviço
da dívida quanto a inadimplência podem piorar, afetando ainda mais a receita
das empresas e o balancete dos bancos.
Tudo
isso é uma consequência natural do nosso atual sistema monetário e financeiro, no
qual tecnocratas a serviço de políticos populistas — que só pensam em
popularidade e em alguns décimos de PIB — estimulam os bancos a expandirem o
crédito e a patrocinar o consumismo e o endividamento. Isso pode acabar mal.