quarta-feira, 27 ago 2014
Ao longo da década de 1980, ainda na
vigência da ditadura de Augusto Pinochet, Milton Friedman insistia que o Chile
tinha de reintroduzir a liberdade política caso quisesse preservar suas
recém-criadas instituições de livre mercado.
Segundo Friedman, no longo prazo, o autoritarismo era incompatível com a
liberdade econômica.
Por outro lado, Friedman também se mostrava
muito cético quanto ao futuro do Chile tão logo a democracia fosse
reintroduzida. Ele temia que a classe
política viesse a utilizar o processo democrático para voltar a aumentar o
tamanho do governo, desta maneira solapando severamente a liberdade econômica.
Vinte e cinco anos após a reintrodução da
democracia, as preocupações de Friedman com os efeitos deletérios da democracia
parecem estar se materializando.
Apenas cinco meses se passaram desde que o
governo socialista de Michelle Bachelet assumiu o poder no Chile, mas isso já
foi o suficiente para fazer com que a taxa de crescimento econômico do país desabasse. A principal causa deste repentino e dramático
declínio na atividade econômica é o aumento das incertezas gerado pelo novo
governo chileno, que pretende fazer uma tabula rasa com as próprias instituições
de livre mercado que permitiram ao Chile se tornar o mais próspero país da
América Latina.
Uma das mais deletérias propostas é uma
maciça reforma tributária, a qual já foi aprovada, que irá dramaticamente
elevar o imposto sobre pessoa jurídica no Chile, deixando-o acima da média dos
países da OCDE. Além disso, essa reforma tributária — a qual
sofreu forte oposição das associações de empreendedores chilenos, e que vem
perdendo o apoio da população — concede à Receita Federal inéditos poderes
arbitrários sobre os pagadores de impostos.
Outro alvo do radical programa socialista de
Bachelet é, como não poderia deixar de ser, o emblemático sistema
previdenciário do Chile. Como é
amplamente sabido, o Chile foi o primeiro país do mundo a introduzir um sistema
de seguridade social que é gerenciado por empresas privadas e que se baseia em
contas de capitalização individual. Sob
este esquema, a cada mês, os trabalhadores chilenos depositam uma porcentagem
de sua renda em uma conta sob seu nome, a qual é administrada por empresas
privadas chamadas AFP (Administradoras de Fondos de Pensiones). O
arranjo funciona exatamente como um sistema de capitalização.
Assim, quando os trabalhadores chilenos se
aposentam, eles — ao contrário de todos os outros sistemas previdenciários
vigentes ao redor do mundo — não dependem de que outros trabalhadores continuem
contribuindo para o sistema para que recebam sua aposentadoria; eles
simplesmente recebem de volta todo o dinheiro que aplicaram corrigido pela
inflação mais juros.
Ao contrário do sistema previdenciário
estatal criado por Bismarck e copiado pelo mundo inteiro — tecnicamente
chamado de pay-as-you-go —, o sistema chileno é totalmente solvente, pois não
depende da demografia e nem de taxas de fecundidade para se manter.
Mais ainda: esse sistema, por incentivar uma
genuína poupança das pessoas, levou a um intenso processo de acumulação de
capital no país. A poupança dos
trabalhadores era investida na própria economia do Chile, algo que foi essencial
para o notável crescimento econômico que o país vivenciou nas décadas de 1990 e
2000.
Adicionalmente, esse arranjo transformou os
próprios trabalhadores chilenos em capitalistas. No Chile,
todos acompanham a evolução de suas Cuenta de AFP como acompanham o campeonato nacional de
futebol. Aliás, acompanham ainda mais de
perto: o chileno recebe um extrato mensalmente detalhando quanto foi acrescido
em sua conta, quanto valem atualmente suas economias, quanto ele receberia
mensalmente caso se aposentasse hoje, e quanto ele receberá caso continue
contribuindo para sua Cuenta até os 65 anos de idade. É um sentimento meio inebriante, e fez com
que a sociedade chilena se tornasse bastante preocupada com a segurança das
empresas privadas, pois é nelas que sua preciosa poupança está investida e é da
saúde delas que advém suas receitas previdenciárias. Por isso, tornou-se um anátema no Chile
qualquer grupo sindical ou político querer tumultuar a economia para proveito
próprio. Tais grupos simplesmente não têm
o apoio da população.
Toda essa realidade chilena, reconhecida
pela literatura especializada, é desdenhada pelo atual governo socialista.
Determinados a trazer o estado de volta para
o ramo da previdência, a senhora Bachelet e seus ministros já apresentaram um
plano para criar uma empresa estatal para o setor previdenciário. Como é fácil de se prever, isso provavelmente
irá criar uma concorrência desleal para as atuais empresas privadas, as quais
não mais seriam capazes de fazer frente às taxas de administração cobradas por
uma empresa que é subsidiada com o dinheiro de impostos dos chilenos e que,
caso apresente uma má gerência, será imediatamente socorrida com mais dinheiro
de impostos.
Em outras palavras, há um perigo real de que
a nova estatal se torne uma ameaça existencial para a mais importante dentre
todas as reformas de livre mercado feitas no Chile na década de 1980.
Outras reformas do programa socialista de
Bachelet incluem acabar com o formato do atual sistema privado de saúde, o qual
seria agora gerido de forma socializada.
As apólices e os prêmios que os trabalhadores chilenos pagam
individualmente para seus planos de saúde seriam socializados e transferidos
diretamente para os cofres do estado. O
objetivo seria criar um sistema universal de saúde, tão em voga no vocabulário
mundial. Isso não apenas representaria
uma expropriação direta do dinheiro que os trabalhadores pagam às suas empresas
de plano de saúde, como também, como vários economistas já alertaram, traria
consequências desastrosas para todo o resto da economia, especialmente em
termos de segurança jurídica e institucional.
Mas tem
mais.
Dentre outras reformas, o atual governo
socialista planeja fazer uma transformação substancial nas leis trabalhistas do
país, as quais iriam conceder poderes inéditos e dramáticos aos sindicatos (que
são a base eleitoral do atual governo) e afetar sobremaneira a
produtividade. Pretende também fazer uma
reforma educacional que irá acabar com o atual sistema de voucher e criar um
sistema educacional completamente gerido pelo estado, inclusive com educação
universitária "gratuita" para todos, sistema idêntico ao que existe no Brasil e
na Argentina (e com resultados nada invejáveis).
Para completar, os partidos de esquerda
estão planejando criar uma constituição totalmente nova, a qual seria escrita
— nas palavras do ex-presidente socialista Ricardo Lagos — "em uma página em
branco". Como o mesmo Lagos recentemente
declarou, a nova Constituição tem de abolir o princípio da subsidiariedade
vigente na atual Constituição, a qual diz que o estado só pode intervir quando
os agentes privados não conseguiram solucionar problemas sociais urgentes. Na nova constituição socialista, o governo
passaria a ser o principal condutor do progresso econômico e social, um modelo
que o Chile já tentou desde a década de 1930 e que terminou desastrosamente em 1973.
Como que para deixar bem claro seu intuito,
a própria Bachelet declarou recentemente que compartilha dos mesmos objetivos
do ex-presidente marxista Salvador Allende, que geriu o país de 1971 a 1973.
Ao contrário de Allende, a senhora Bachelet
não quer transformar o Chile em um regime comunista. No entanto, não é nenhum segredo que ela
endossa, em grande parte, uma antiquada filosofia estatizante. E não há dúvidas de que, caso sua
administração consiga implementar esses projetos, o Chile deixará de ser um
modelo para a América Latina. Resta
saber se aqueles que querem preservar o caminho do progresso trilhado pelo
Chile nas últimas décadas serão capazes de impedir que o país adote um modelo
argentino de involução institucional.
Por enquanto, o futuro chileno não é nada alvissareiro.