Quem
se depara com o crescente congestionamento dia após dia nas grandes cidades
sabe o desgaste que é enfrentar o trânsito parado nas horas de pico. Hoje em
dia, programar algo em São
Paulo, por exemplo, depende de conciliar o horário da saída
do trabalho, o início de uma sessão de cinema e todos os imprevistos que eventualmente
irão surgir ao longo do caminho.
Tempo
perdido e o estresse entraram na rotina diária dos motoristas e, por extensão,
de todos envolvidos na mobilidade urbana.
Há
alguns anos, o aplicativo Waze surgiu
para nos propiciar algo melhor e mais completo do que um GPS convencional. Além
dos mapas e direções para se sair do ponto X e se chegar ao Y, o recurso se
baseia na interatividade entre os
usuários. E é por isso que o Waze é
superior ao GPS tradicional: trata-se de um aplicativo baseado na
interatividade voluntária e espontânea de seus usuários.
No
Waze, as rotas são configuradas levando-se em conta as informações em tempo
real que são inseridas no sistema pelos seus milhares de usuários. Os usuários podem relatar acidentes,
congestionamentos, barreiras policiais, radares escondidos, volume de tráfego, velocidade
média da via, câmeras rastreadoras etc. Isso permite que o motorista preveja os
pontos onde há maior congestionamento, os locais de acidentes, os bloqueios e
os radares móveis.
Ao
solicitar um trajeto, o aplicativo reúne todas as informações alimentadas pelos
usuários e traça a melhor rota para que o motorista economize seu tempo de viagem.
Sendo melhor que um GPS, o Waze fornece rotas e atualizações de tráfego em
tempo real.
Por
seu lado, o próprio motorista também contribui com informações que encontra
pelo caminho, seja uma árvore que caiu no chão, pista escorregadia ou uma blitz
policial.
É
por meio dessas particularidades do Waze que um fenômeno inerente às sociedades
livres se manifesta por completo: a ordem espontânea.
Segundo
o economista austríaco F. A. Hayek (1899-1992):
O que na verdade
constatamos em todas as sociedades livres é que, embora grupos de homens se
unam em organizações para consecução de alguns fins específicos, a coordenação
das atividades de todas essas várias organizações, bem como dos diversos
indivíduos, é produzida pelas forças que favorecem uma ordem espontânea. A
família, a propriedade rural, a fábrica, a pequena e a grande empresa e as
diversas associações [...] são organizações que, por sua vez, estão integradas
numa ordem espontânea mais abrangente. (HAYEK, 1985, p. 48).
Ou
seja, a ordem espontânea é fruto da evolução da ação de vários atores da
sociedade e se regula de maneira descentralizada e ao mesmo tempo coordenada.
Veja
no caso do Waze: no momento em que o sistema processa as informações inseridas por
um determinado usuário que está em uma determinada localidade, este usuário não
tem a mais mínima ideia de para onde os outros usuários estão indo. O usuário simplesmente fornece informações,
voluntária e espontaneamente, para que os outros usuários tracem suas rotas,
mas ele não tem interesse em saber o destino final de nenhum outro usuário. Excetuando-se
uma rede de amigos que compartilham entre si seus trajetos pelo aplicativo,
nenhum usuário sabe para onde outro usuário se desloca, mas mesmo assim eles se
auxiliam reciprocamente atualizando informações que vão acrescentando ao longo
do trajeto.
Em
um âmbito mais geral, é essa ordem espontânea — descentralizada e ao mesmo
tempo coordenada — que seleciona e constrói conhecimentos que, por sua vez, são
transmitidos via herança cultural. É essa
ordem espontânea que difunde normas organizacionais e normas espontâneas.
As
normas organizacionais são regras para a execução de tarefas específicas. Cada
indivíduo ocupa um lugar na estrutura da organização. Ele é nomeado por determinação de alguém, e a
autoridade dirigente indica suas atividades próprias.
Já
as normas que regem uma ordem espontânea são
Aplicáveis a um número
desconhecido e indeterminável de pessoas e situações. Terão de ser aplicadas
pelos indivíduos à luz de seus respectivos conhecimento e propósitos; e sua
aplicação independerá de qualquer propósito comum, que o indivíduo não precisa
sequer conhecer
(HAYEK, 1985, p. 52).
Temos,
portanto, as normas organizacionais formuladas por entidades responsáveis pelas
regras de trânsito. Elas estipulam que
tipos de veículos podem trafegar em determinada pista, quais vias são de mão
dupla ou única, que limite de velocidade é permitido numa avenida etc. Os
sinais de trânsito indicam as regras que devem ser seguidas. Já as normas da
ordem espontânea no tráfego provêm de um conhecimento adquirido por experiência
individual (saber conduzir o próprio veículo no trânsito) e por interação com
outros (interpretar os sinais de farol que concedem uma passagem, o gesto de um
pedestre que sinaliza que vai atravessar a rua, a intensidade e cadência de uma
buzina que informa um agradecimento, aviso ou xingamento).
Com
a utilização do aplicativo, outras informações são fornecidas e utilizadas
pelos usuários que servem aos propósitos de cada um. A ordem espontânea que
pode ser verificada no Waze é que o melhor itinerário não é conhecido a partir
da maior quantidade de possibilidades de rota, mas sim das informações dispersas
inseridas pelos indivíduos, as quais ajudam na elaboração do trajeto mais rápido. Essas informações dispersas também
possibilitam aos motoristas encontrarem postos de combustível com preços mais
atrativos na área onde se situam, por meio do recurso que permite a pesquisa de
postos e preços listados pelos usuários do aplicativo.
Para
Hayek,
Essa ordem, ao implicar
um ajustamento a circunstâncias, cujo conhecimento está disperso por um grande
número de indivíduos, não pode ser estabelecida por um sistema que centraliza
as decisões. Só pode decorrer do ajustamento mútuo dos vários elementos e da
sua reação aos eventos que atuam imediatamente sobre eles. (HAYEK, 1983, p. 177).
A
abordagem de Hayek sobre a ordem espontânea vem do Iluminismo escocês de David
Hume e Adam Smith, e ele a desenvolve a partir de suas principais influências econômicas,
notadamente Carl Menger e Ludwig von Mises (BOETTKE, 1990). Hayek expande a
ordem espontânea percebida no livre mercado para o uso do conhecimento em
diversas esferas da sociedade.
Desta
maneira, ele critica as sociedades cujo certo tipo de racionalismo arroga a
pretensão onisciente de conhecer e, portanto, controlar e planejar todos os
aspectos desse conhecimento disperso na sociedade, seja na economia, no direito
ou na política.
A
descentralização é o poder disperso para que os indivíduos possam buscar o
conhecimento necessário e adequado a seus objetivos particulares, e cada um
sabe o que é melhor a ser utilizado a partir dos interesses de cada um, pois
"precisamos da descentralização porque somente ela poderá nos assegurar que o
conhecimento de circunstâncias particulares de tempo e local serão prontamente
utilizados" (HAYEK, 1945, p. 524).
Um
aplicativo que reúna todas as informações que seus usuários alimentam
(intensidade de tráfego), e as devolve para a utilização na consecução do
propósito de cada um deles (o destino escolhido), serve como exemplo de como
este conhecimento pautado nas ações aparentemente desconectadas e alheias entre
si pode ser produzido por uma vasta e interligada cooperação.
Observamos,
porém, o quanto esses recursos, assim como outros programas tecnológicos que
armazenam uma grande quantidade de dados, podem servir a outros propósitos que
nada têm a ver com deslocamento no trânsito. Organizações como a NSA (National
Security Agency) dos EUA monitoraram informações de outros programas, como
Google e Facebook, tendo acesso a dados privados de seus usuários. Tal serviço
de vigilância governamental foi revelado por Edward Snowden,
atualmente exilado na Rússia.
Surge,
então, a dúvida sobre se até mesmo essa ordem espontânea pode ser vulnerável a
um poder centralizador capaz de reunir todas informações disponíveis com o
intuito de controlar e monitorar. Da mesma maneira que a tecnologia propicia autonomia
aos indivíduos, sua vulnerabilidade também pode comprometer a privacidade de
cada um, expondo tudo o que ele escreve, fotografa, filma e compartilha. E, agora, expondo também para onde ele se
desloca.
A ambição de qualquer sistema de poder centralizador sempre foi justamente a de
tentar domesticar essa ordem espontânea para a consecução não mais dos
propósitos dos indivíduos, mas sim daqueles que exercem esse poder. O risco que
ocorre agora não é o de uma vigilância ostensiva, mas sim uma vigilância
subterrânea, em que os dados são violados e monitorados em um tráfego virtual
de informações aparentemente invisível.
O Waze é um aplicativo limitado aos seus usuários
e a ordem espontânea refletida nele é apenas uma fração da ordem espontânea
mais ampla da grande sociedade formada pelos outros cidadãos que se movem e
agem conforme seus interesses. O Waze
apenas possibilita
a seus usuários cooperarem com a troca de informações dispersas, as quais serão
úteis aos seus objetivos particulares.
Mas
quando toda essa informação passar a ser utilizada de maneira escusa por outros
órgãos que violam a privacidade, a liberdade já estará seriamente comprometida.
Referências
BOETTKE,
P. J. (1990). The theory of spontaneous order and cultural evolution in the
social theory of F. A. Hayek. Cultural
Dynamics. Vol 3 (1), pp. 61-83.
HAYEK,
F. A. (1945). O uso do conhecimento na sociedade
HAYEK,
F. A. (1983). Os Fundamentos da Liberdade.
São Paulo: Visão
HAYEK,
F. A. (1985). Direito, Legislação e
Liberdade – volume I. São Paulo: Visão