"O Brasil está conseguindo o raro feito de extrair
opiniões quase unânimes mundo afora. São poucos, pouquíssimos, os economistas
que ousam discordar de que o país entrou em um ciclo de desenvolvimento
sustentado. E mais: são ainda mais raros aqueles que duvidam da capacidade de o
Brasil se tornar uma das maiores potências econômicas do planeta em um par de
dezenas de anos."
O trecho acima foi extraído de uma
reportagem da edição de 29 de dezembro de 2010 da revista IstoÉ, a mesma
que, em outra edição daquele mesmo ano, afirmou que
já éramos uma potência.
Dentre os "poucos, pouquíssimos, economistas que ousam discordar de que
o país entrou em um ciclo de desenvolvimento sustentado" certamente
estavam os economistas deste site, que ainda em 2010 alertavam que tudo
era infundado.
E onde estamos hoje?
Com os recém-divulgados
números do PIB para o segundo semestre de 2015, há uma constatação perturbadora:
dos últimos sete trimestres, a economia encolheu em quatro deles, e ficou
estagnada em outros dois (veja na segunda
tabela, primeira linha).
Apenas os investimentos — que são a variável mais importante do PIB, pois são
eles que indicam a saúde da economia e são eles que permitem que a situação
futura seja melhor — apresentaram uma contração
trimestral de 12%, a pior desde 1996.
Eis uma amostra de notícias colhidas apenas nos últimos meses:
Inflação
oficial acumula alta de 9,56% em 12 meses, a maior desde 2003
Rendimento
real dos trabalhadores tem maior queda mensal em 12 anos
Vendas
no varejo têm maior queda no trimestre desde 2003
Vendas
de veículos novos caem 22,4% em julho; no ano, queda chega a 21%
Comércio
tem pior semestre de vendas em 12 anos
Venda
de alimentos cai pela primeira vez em 12 anos
Crise
na mesa: consumo de carne cai 30% em seis meses
Classe
C recorre a bicos para equilibrar o orçamento
Pessimismo
na construção civil é o maior em quase 16 anos
IBGE:
Construção civil fechou 700 mil vagas no país em um ano
Produção
da indústria cai em 13 de 14 locais em abril; pior resultado desde dezembro de
2008
Produção
da indústria cai em junho e tem pior primeiro semestre em 6 anos
Endividamento
das famílias é o maior da série histórica, diz Banco Central
Executivos
brasileiros são os mais pessimistas
Lucro
de empresas aéreas mundiais deve ser o maior desde os anos 60, mas Brasil vai
na contramão
Taxa
de desemprego medida pela Pnad chega a 8,3%
Como viemos parar nesta situação?
O pano de fundo
No primeiro semestre de 2008, a economia brasileira estava relativamente
arrumada. As prudentes políticas fiscal e monetária adotadas no primeiro
mandato do governo Lula pela dupla Palocci-Meirelles
haviam gerado um nível de confiança e uma estabilidade econômica poucas vezes
vivenciados no país pós-democratização.
A renda da população crescia.
O poder de compra do salário mínimo chegaria ao segundo maior valor da história
do real (o maior havia sido alcançado em agosto de 1998).
A pobreza e a miséria haviam
caído 50% entre 2003 e 2008, e os investimentos aumentaram
25% (de 15,3% para 19,1% do PIB) também nesse período.
A inflação de preços, embora jamais invejável para um suíço, manteve-se
relativamente comportada (pelo menos em termos de Brasil): após o IPCA
acumulado em 12 meses ter chegado a 17% em maio de 2003, o índice
despencou para saudosos 2,9% em março de 2007.
Tudo isso foi possibilitado por uma política monetária previsível e austera
(para os padrões brasileiros), conduzida por uma equipe que jamais havia
se deixado seduzir pelo conto de que "um pouco mais de inflação gera mais
crescimento".
Em decorrência dessa política monetária decente — atestada pelo comportamento do real em
relação ao ouro —, o real se apreciou
continuamente perante o dólar e perante todas as principais moedas do
mundo, o que garantiu um crescente padrão de vida para os brasileiros.
Para coroar, em abril
de 2008, o país viria a ganhar o grau de investimento (investment grade)
conferido pela agência de classificação de risco pela Standard & Poor's.
Essa foi uma época em que era difícil para a oposição atacar o governo em
termos econômicos, pois a condução pragmática da economia — principalmente em
termos de política monetária — não oferecia grandes brechas para um ataque.
E então veio a crise
financeira mundial, em setembro de 2008. E, com ela, veio uma guinada
na condução da política econômica.
Eis, a seguir, um breve resumo cronológico de tudo o que o governo fez com a
economia brasileira desde o segundo semestre de 2008.
O roteiro da lambança
1) A economia brasileira chega ao primeiro trimestre de 2008 relativamente
arrumada, com uma política
monetária prudente, com o real se valorizando
em relação às principais moedas do mundo, e com a renda
e os investimentos
crescendo.
2) No segundo semestre de 2008, ocorre a crise financeira mundial.
3) Para combater os efeitos da crise, o governo brasileiro dá uma guinada na
política econômica e passa a utilizar os bancos estatais — principalmente o
BNDES — como a principal
ferramenta de expansão do crédito.
4) Como a economia até então estava arrumada, essa política de expansão do
crédito estatal aparenta
funcionar no curto prazo. A economia cresce e a inflação de preços
permanece sob controle (para os níveis brasileiros, é claro). O Brasil chama a atenção
do resto do mundo.
5) Dilma Rousseff toma posse em janeiro de 2011 e sua equipe econômica não
apenas decide manter a vigente política de crédito dos bancos estatais, como
ainda decide intensificá-la, adicionando outros elementos heterodoxos.
6) A Nova
Matriz Econômica é oficializada. Essa "nova matriz" — na
realidade, incrivelmente velha — se baseia em cinco pilares: política fiscal expansionista,
juros baixos,
crédito barato fornecido por bancos
estatais, câmbio desvalorizado
e aumento das tarifas
de importação para "estimular" a indústria nacional. A
crença do governo passa a ser a de que "um pouco mais de inflação gera
mais crescimento econômico".
7) No início de 2012, o governo declara guerra
aos bancos privados que não baixarem os juros, e utiliza os bancos estatais
para fornecer empréstimos
a juros baixos, ampliando dessa forma a expansão do crédito. O consumismo e
o endividamento passam a ser explicitamente estimulados pelo governo, com a
crença de que ambos é que são os motores do crescimento econômico. A expansão
do crédito em conjunto com o aumento
das tarifas de importação faz com que a inflação de preços comece a
incomodar.
8) Também em 2012, o governo unilateralmente decide revogar
os contratos de concessão das empresas de geração e transmissão de energia (os
quais terminariam entre 2014 e 2018) com o intuito de fazer novos contratos e
impor tarifas menores.
9) Com o ataque às geradoras e transmissoras, as distribuidoras ficam sem
alternativa e têm de recorrer ao mercado de energia de curto prazo, no qual os
preços negociados são muito superiores em relação aos ofertados pelas geradoras
que ficaram sob intervenção. As distribuidoras ficam desabastecidas
e endividadas.
10) O Tesouro — ou seja, nós, os pagadores de impostos — começa a repassar
dinheiro para as distribuidoras, garantindo artificialmente a política de
tarifas baratas. O endividamento do governo aumenta.
11) O governo faz concessões de aeroportos e poços de petróleo, mas
tabela o lucro permitido e impõe regulamentações esdrúxulas. Os grandes
investidores não se interessam.
12) Em paralelo a tudo isso, um mastodôntico esquema
de corrupção já operava na Petrobras, que destroça o capital da
empresa. Ao mesmo tempo, o governo obriga a Petrobras a vender às
distribuidoras gasolina
abaixo do preço pelo qual ela foi importada. E a obriga também a
produzir utilizando uma determinada
porcentagem de insumos fabricados no Brasil. O capital da Petrobras,
portanto, sofre um triplo ataque. A Petrobras se torna a empresa mais
endividada do mundo.
13) O uso do BNDES
para a escolha de campeãs nacionais é intensificado. O Tesouro se
endivida emitindo títulos que pagam o valor da SELIC e repassa esse dinheiro
para o BNDES, o qual irá então emprestá-lo a grandes empresas a juros abaixo de
5%, e em prazos que chegam a 30 anos. Tal
política não apenas é inflacionária como ainda afeta substantivamente a
situação das contas públicas. A dívida
bruta do governo começa a subir acentuadamente.
14) Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal intensificam o uso do
crédito direcionado, que consiste em empréstimos para pessoas físicas e
jurídicas a juros muito abaixo da SELIC. O intuito é estimular tanto o consumismo
quanto os investimentos. Essa medida, além de pressionar a inflação de
preços, levou o endividamento
das famílias a níveis recordes.
15) Em decorrência dos repasses do Tesouro ao BNDES e às distribuidoras de
energia, as contas públicas entram em desordem. Para mantê-las
artificialmente equilibradas, o governo recorre a truques contábeis que
consistem em atrasar repasses tanto para bancos estatais quanto para
autarquias, como o INSS. Esses truques contábeis se tornam popularmente
conhecidos como "pedaladas
fiscais", as quais constituem um crime de responsabilidade fiscal.
16) A inflação de preços em nenhum momento fica perto da meta de 4,50%
estabelecida pelo próprio Banco Central. Em vários
momentos ela ultrapassa o teto da meta, de 6,50%. No setor de serviços,
a inflação de preços fica continuamente entre 8 e 9%.
17) O descontrole das contas públicas, a inflação de preços persistentemente
alta, o tabelamento dos lucros nos serviços de concessão e as seguidas
demonstrações de desrespeito aos contratos do governo (como a Medida Provisória
579, a qual alterou totalmente o sistema elétrico) afetam o humor dos
empresários, que reduzem os investimentos (os quais estão
em queda há nada menos que sete trimestres seguidos).
18) O número de miseráveis volta
a crescer.
19) Os investidores estrangeiros finalmente percebem os truques contábeis do
governo e entendem que a dívida bruta está alcançando padrões perigosos.
A agência de classificação de risco Standard & Poor's ameaça
acabar com o grau de investimento do país.
20) Como consequência, a taxa de câmbio dispara.
O dólar, que estava em R$ 1,65 no início do governo Dilma, chega a R$ 3,60 em
meados de agosto de 2015. A moeda brasileira derrete.
21) Em simultâneo à disparada do dólar, os repasses do Tesouro às
distribuidoras de energia são
abolidos. As tarifas encarecem,
em média, 58%. (Em Porto Alegre e São Paulo, os reajustes ficam acima de
70%; em Vitória e Curitiba, passam dos 80%). Paralelamente, a Petrobras
decide que é hora de recompor seu caixa (dizimado tanto pela corrupção quanto
pela política de vender gasolina a preços menores que os custos de importação),
e o preço
da gasolina dispara nas bombas.
22) Em decorrência de tudo isso, a taxa de inflação de preços passa a subir
a um ritmo não vivenciado desde 2003. O
IPCA acumulado em 12 meses chega a 9,56% em julho de 2015.
23) O aumento dos combustíveis e da conta de luz obriga empresas,
estabelecimentos comerciais e ofertantes de serviços a repassar esses custos
aos seus preços. Como consequência, vendem
menos e a receita cai.
24) O Banco Central, que havia se mantido totalmente submisso ao governo no
primeiro mandato de Dilma, tenta recuperar a credibilidade perdida e volta a
tentar controlar a carestia aumentando
seguidas vezes a taxa básica de juros, as quais praticamente dobram em
dois anos. Isso restringe
uma parte do crédito e, consequentemente, afeta o crescimento da renda
nominal.
25) No entanto, dado que a carestia é majoritariamente decorrente da desvalorização cambial
e do reajuste
de preços administrados pelo governo, os aumentos da SELIC são inócuos
nesse combate. Logo, cria-se uma situação de renda estagnada e preços em
ascensão, o que gera uma queda
da renda real da população.
26) Os seguidos aumentos dos juros, em vez de combaterem a carestia, afetam
severamente os investimentos
e o consumo.
27) Com a carestia em alta, a renda real em queda e o endividamento
recorde da população, as vendas no varejo despencam,
as vendas de automóveis desabam,
a indústria
encolhe (e já vem encolhendo
há 4 anos, não obstante todo o
protecionismo) e o desemprego aumenta.
As famílias endividadas — consequência inevitável de uma política de estímulo
ao consumo — têm dificuldade para quitar as parcelas de suas dívidas. A inadimplência
bate recorde.
28) Com renda em queda e custo de vida em alta, a classe
média vai atrás de bicos para tentar fechar as contas. E pode encolher
este ano.
29) Empresários se dizem pessimistas
e sem
intenção de investir. Os investimentos apresentam a pior
contração trimestral desde 1996. Já a
confiança do consumidor é a pior
em 13 anos.
30) Com previsões
de que a economia encolherá mais de 2% em 2015 e 0,3% em 2016, e de que a
inflação de preços fechará o ano perto de 9,3%, o cenário econômico é pior do
que uma estagflação: temos desemprego em alta, preços em alta, e renda em
queda. E tudo isso aditivado pela desvalorização cambial.
As perspectivas futuras não são nada alvissareiras.
Conclusão
A obra acima descrita não é resultante de uma única política ruim. Ela
é o resultado de meticulosas e desastrosas intervenções governamentais na
economia. Não se chega à situação atual de um mês para o outro ou mesmo
de um ano para o outro; é necessária toda uma soma de erros. É necessária
toda uma série de intervenções que, ao darem errado, exigem novas intervenções
apenas para "corrigir" os efeitos inesperados das intervenções
anteriores.
E esta sequência de intervenções adquiriu um ritmo espantoso no Brasil dos
últimos 4 anos.
Ainda em 2012, quando já havia sinais claros de deterioração, o grande mentor da Nova Matriz Econômica, Guido Mantega, escreveu este artigo tecendo autoelogios às suas políticas. Hoje, tal texto é um convite ao escárnio.
O fato é que poucos países minimamente sérios vivenciam, de forma tão explícita e tão
rotineira quanto o Brasil, as consequências das intervenções estatais em suas
economias.
Exatamente por isso não deixa de ser curioso que, justamente o país em que
os resultados nefastos das intervenções do governo na economia são os mais
visíveis, é também aquele que possui uma das populações que mais adoram o estado.
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