Sem
uma moeda minimamente estável, não há economia que resista. Na esfera econômica, a moeda constitui o mais
importante elemento.
Se
a moeda perde valor, toda a economia se desorganiza. O aspecto econômico mais básico da economia
de mercado, que é o sistema de preços, se torna desarranjado. Consequentemente, sem uma formação de preços
minimamente racional, todo o cálculo econômico permitido pelo sistema de preços
— o cálculo de lucros e prejuízos, que é o que irá estimular investimentos —
se torna praticamente impossível.
Foi
por isso que o grande economista austríaco Ludwig von Mises abordou
extensivamente a questão da moeda em todo o corpo de sua obra. Em seu livro A Teoria da
Moeda e do Crédito, publicado originalmente em 1912, ele já alertava:
É impossível compreender totalmente a ideia
de uma moeda forte sem antes entender que a própria ideia de moeda forte foi
criada para ser um instrumento para a proteção das liberdades civis contra
investidas despóticas de governos.
Ideologicamente, a moeda forte pertence à mesma classe das Constituições
e da Declaração dos Direitos dos indivíduos.
A demanda por garantias constitucionais e
por declarações de direitos humanos foi uma reação contra o poder arbitrário e
o não cumprimento de costumes tradicionais dos reis. O postulado de uma moeda forte foi criado,
acima de tudo, como uma resposta à prática dos reis e príncipes de adulterar a
cunhagem das moedas. Mais tarde, tal
postulado foi mais cuidadosamente elaborado e aperfeiçoado ao longo dos séculos
vindouros, os quais ensinaram — por meio das fracassadas experiências da moeda
Continental
americana, do papel-moeda
da Revolução Francesa, e do período de
restrição que vigorou na Grã-Bretanha — que os governos podem facilmente
destruir o sistema monetário de um país.
Hoje,
a Venezuela é a mais perfeita demonstração dessa teoria de Mises. Nenhum outro país atual tem sido mais
desrespeitoso com sua moeda do que a Venezuela.
O
roteiro é tristemente semelhante àquele já tradicional em países
latino-americanos:
Um
líder carismático (Hugo Chávez) é eleito e decide impor ao país uma variação
tropical do socialismo (o qual foi chamado de "socialismo moreno"). Essa "nova" abordagem é, de início, relativamente
bem recebida pela população, por setores progressistas, e até mesmo por vários
setores da grande mídia. Durante os anos seguintes, o país mantém um
volumoso programa de gastos sociais combinado com controles de preços e
salários e com um mercado de trabalho extremamente rígido.
Todo
este castelo de cartas consegue se manter solvente por um algum tempo caso o
país seja exportador de uma commodity mundialmente demandada, como o
petróleo. Enquanto os preços do petróleo
estiverem altos, de modo que as receitas de petróleo do governo sejam
crescentes, o arranjo consegue ser prolongado, pois o governo tem dinheiro para
manter seus programas sociais.
No
caso da Venezuela, à medida que os custos deste populismo foram crescendo, o
país teve de recorrer com cada vez mais frequência aos cofres da estatal
petrolífera PDVSA e à impressora do dinheiro do Banco Central da
Venezuela. Isso resultou em um declínio contínuo do valor do bolívar —
um declínio que se acelerou ainda mais após a morte de Hugo Chávez e a chegada
ao poder de seu pupilo, Nicolás Maduro, ainda mais radical do que Chávez.
Maduro
ensinou ao mundo tudo o que não deve ser feito com uma economia. O gráfico abaixo mostra a evolução da
quantidade total de dinheiro (agregado M3) na economia Venezuelana, de acordo
com as estatísticas do próprio Banco Central venezuelano. Apenas nos últimos 3 anos, a quantidade de
dinheiro na economia já aumentou mais de 4 vezes, ou 350%.

Evolução da quantidade de dinheiro na economia
venezuelana
Consequentemente,
o valor do bolívar desabou feito uma pedra.
O gráfico a seguir mostra a evolução da taxa de câmbio do bolívar em
relação ao dólar americano. A linha
vermelha é a taxa de câmbio oficial declarada pelo governo; a linha azul é a
taxa de câmbio no mercado paralelo.

Taxa de câmbio bolívar/dólar no mercado paralelo
(linha azul) versus taxa de câmbio oficial declarada pelo governo (linha
vermelha)
E,
assim como a noite se segue ao dia, essa desvalorização do bolívar fez com que
a inflação de preços disparasse na Venezuela.
Para
economias altamente estatizadas, a desvalorização de uma moeda no mercado
paralelo — que é o único verdadeiro livre mercado operando nessas economias —
é o mensurador que melhor estima o real valor dessa moeda. O princípio da
paridade do poder de compra (PPP), o qual vincula alterações na taxa de câmbio
a alterações nos preços, permite estimativas confiáveis para a inflação de
preços.
O
gráfico a seguir mostra a evolução da verdadeira inflação de preços que está
ocorrendo na Venezuela:

Inflação de preços oficial divulgada pelo governo
(linha vermelha) versus inflação de preços implícita (linha azul) acumuladas em
12 meses.
Ou seja, a atual inflação de preços na Venezuela — a real, e não aquela divulgada pelo governo — ultrapassou o estonteante valor de 600% ao ano.
O
governo reagiu exatamente como todos os governos populistas reagem aos aumentos
de preços causados por suas próprias políticas: impondo controle de preços cada
vez mais rígidos.
Mas
a combinação entre hiperinflação e controle de preços resultou em
desabastecimento generalizado, esvaziando as prateleiras dos supermercados do
país. Itens básicos e rotineiros como
xampu, farinha, açúcar, detergente, óleo de cozinhar e o já famoso papel
higiênico se tornaram tão escassos no país, que os venezuelanos hoje têm de
pedir permissão para faltar ao trabalho e assim poder ficar o dia inteiro em longas filas
nas portas dos poucos supermercados que ainda têm tais produtos à venda.
Com
uma moeda inconversível e que ninguém quer portar — nenhum estrangeiro está
disposto a trocar sua moeda pelo bolívar, pois não há investimentos atrativos
na Venezuela —, nenhum empreendedor na Venezuela está tendo acesso a
dólares. Consequentemente, o governo está
tendo de utilizar suas reservas internacionais para garantir a importação de
bens essenciais, como alimentos e remédios.
Por
conta disso, as reservas internacionais do país estão desabando como uma pedra,
e chegaram ao
menor nível em 12 anos:

Evolução das
reservas internacionais da Venezuela
Desde
fevereiro de 2015, toda a distribuição de alimentos na Venezuela foi
colocada sob
supervisão militar. Já em maio, o
governo — que já controla 50% da distribuição de comida — prometeu que iria estatizar
todo o sistema de distribuição.
O
suprimento de remédios também está
acabando. Salas de cirurgia estão fechadas há meses, não obstante centenas
de pacientes estejam na fila de espera para cirurgias. Algumas clínicas
privadas são capazes de manter a sala de cirurgias funcionando porque conseguem
contrabandear dos EUA, sem que o governo venezuelano possa interceptar,
remédios essenciais.
O
regime venezuelano se manteve por algum tempo graças aos seguidos empréstimos
concedidos pelo governo chinês em troca da importação de petróleo. A tabela abaixo mostra o total — em dólares
— de empréstimos concedidos pelos chineses ao governo em Caracas.

Na coluna da
esquerda, o total de empréstimos feitos pelos chineses a cada ano; e no gráfico
do meio, as importações mensais de petróleo da Venezuela feitas pela China.
No
entanto, por causa do aparelhamento e da subsequente destruição da estatal
petrolífera PDVSA, bem como do racionamento de preços da gasolina, a Venezuela,
que é o quinto maior produtor de petróleo do mundo, teve de se tornar
importadora de petróleo.
Os três Ms
O
que Slobodan Milosevic, Robert Mugabe e Nicolás Maduro têm em comum? Além da adoção do Manifesto
Comunista, a hiperinflação.
A 600% ao ano, a inflação de preços da Venezuela é hoje a maior do
mundo. A Revolução
Bolivariana está pressionando os preços a uma taxa de 40% ao mês. Mas será que esses
números impiedosos bastarão para derrubar o reino de Maduro? É provável que não. A Iugoslávia de Milosevic e o Zimbábue de
Mugabe vivenciaram taxas de inflação muito maiores que as da Venezuela, e ambos
ficaram no poder por vários anos.
Slobodan
Milosevic já estava no poder quando a inflação aniquilou a economia da
Iugoslávia. A insanidade inflacionista
de Milosevic chegou ao ápice em janeiro de 1994, quando a taxa de inflação mensal alcançou 313.000.000% (trezentos
e treze milhões por cento) — quase nove milhões de vezes maior que a atual
taxa mensal da Venezuela. Não obstante,
Milosevic se manteve firme no poder da Iugoslávia — ou no que restava dela —
por mais seis anos. Após a guerra do
Kosovo e com a saída de Milosevic, e com a eleição de um novo presidente em 2000,
as coisas se estabilizaram.
Em
2008, o Zimbábue superou a Iugoslávia ao registrar a segunda maior
hiperinflação da história. Com Robert
Mugabe no comando, a hiperinflação alcançou o incompreensível valor de
79.600.000.000% (setenta e nove bilhões e seiscentos milhões por cento) ao mês, o que dava uma taxa de 98%
ao dia. Não obstante esse número
astronômico, Mugabe permanece no poder até hoje — sete anos após o fim da
hiperinflação, quando os cidadãos do país voluntariamente
passaram a utilizar o dólar e o rand sul-africano.
Embora
a hiperinflação não seja uma receita para aumentar a popularidade de um
político, ela também não representa sua marcha fúnebre. Não pensem que Maduro sairá facilmente do
comando da Venezuela. Enquanto ele
mantiver o comando de suas brigadas populares, bem como o "controle" das
máquinas eletrônicas de votação, ele permanecerá na sela do cavalo.
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Nota final do editor
Sobre
a questão da hiperinflação venezuelana e a escassez de papel higiênico, o site Spotniks fez uma matéria interessante: se o
dólar estiver custando acima de 400 bolívares no mercado paralelo, como é o
caso atual, então em vez de utilizar os desvalorizados bolívares para tentar comprar papel higiênico no mercado
paralelo, vale mais a pena utilizá-los propriamente como papel higiênico.
Eis
o raciocínio:
"Fazendo
uma busca rápida na Amazon dos Estados Unidos, é
possível perceber que uma caixa de 48 rolos do papel higiênico mais vendido,
Angel Soft, custa US$ 21,99. Isso dá US$ 0,46 por rolo, que na cotação [do
mercado paralelo em que o dólar vale 400 bolívares] equivale a cerca de 184 bolívares. Ou seja, 92 cédulas
de 2 bolívares — na Venezuela não existe nota de 1 bolívar, apenas moeda.
Mesmo
um rolo de papel higiênico comprado no Brasil vale mais que o Bolívar: no site brasileiro da Staples, maior rede
mundial de lojas de produtos para escritório, encontramos um fardo com 64 rolos
do papel higiênico Neve Folha Dupla
por R$ 87,15, o equivalente a R$ 1,36 por rolo.
Fazendo-se
a conversão do Real para o Dólar, temos US$ 0,43 por rolo, o equivalente a 172 bolívares
— ou 86 cédulas de 2 bolívares.
As
86 notas, se coladas umas nas outras, resultariam num rolo de 13 metros, quase
metade do rolo de papel Neve. Mas as cédulas possuem algumas vantagens que
fazem seu uso economicamente viável: são mais grossas e podem ser lavadas para
a reutilização, e estão disponíveis em abundância no país, diferente dos rolos
de papel higiênico.
Além
de todas essas vantagens econômicas sobre o papel higiênico, as notas ainda
possuem a assinatura do Presidente do Banco Central da Venezuela, o que torna
seu uso como papel higiênico ainda mais simbólico."