O intervencionismo é um conjunto de políticas que visam a
estender os poderes coercivos do governo para a esfera das atividades
econômicas; é a interferência política sobre o funcionamento dos mercados por
meio de decretos administrativos e proibições.
A natureza desse processo é essencialmente
redistributiva: os privilégios legais procuram concentrar benefícios e diluir
os custos associados à norma imposta.
As licenças de táxi conferem a uma categoria de
indivíduos a exclusividade para atuar em um segmento de transporte de
passageiros nas grandes cidades. Elas
são apenas uma amostra do que ocorre cada vez que o governo — por meio das
subvenções, do tabelamento de preços e da proibição da concorrência — intervém
na economia.
Licenças restritivas são um tipo de quase-monopólio conferido pelo estado aos produtores.
Se a regulamentação for do interesse de determinados
agentes privados, então ela, uma vez implantada, alimentará naturalmente esses
próprios interesses privados em favor de sua manutenção. A busca por
privilégios legais culminará na edição de normas que extrapolarão diversos
campos da vida econômica. Uma vez consolidadas as normas, os grupos
beneficiados serão estimulados a se esforçar para conservar os privilégios
adquiridos: os privilégios são doravante "direitos" e, no caso dos táxis, o
próprio ingresso no grupo de privilegiados representará custos
não-negligenciáveis aos novos detentores de licenças.
O caso Uber e a
racionalidade da pressão
Qualquer inovação nos processos produtivos, nas
tecnologias, nos modos organizacionais ou nos bens de consumo tem impacto
similar à desregulamentação: a inovação implica um aumento da concorrência e
representa uma ameaça à proteção conferida pelo privilégio legal.
A desregulamentação e a inovação significam — ou têm por
consequência direta — o aumento da oferta sobre o segmento de mercado que é
protegido pela norma. Ambas enfraquecem
a proteção conferida por um privilégio legal que, até então, imunizava
parcialmente contra a rivalidade empresarial.
A razão da pressão política exercida é a busca pela
manutenção do privilégio, e o sucesso da empreitada política está nas
discrepâncias entre os custos e benefícios econômicos e políticos. Por um lado, na margem, os benefícios
concentrados individualmente pelos taxistas serão maiores do que os custos
acrescidos aos usuários em decorrência da diminuição da concorrência. Por outro
lado, e como uma consequência lógica, o custo relativo da ação política será
menor — na margem — para os privilegiados pela restrição. Isto quer dizer
que, na margem, dados os ganhos econômicos e os custos despendidos na
empreitada política, a vantagem relativa está claramente em favor dos
privilegiados pela norma.
Uma vez votada e implantada a norma, as novas gerações de
taxistas deverão despender um gasto importante para obter as licenças e placas,
além de estarem agora submetidos às mesmas regras de tarifas (buscando limitar
o escopo de liberdade de preços) e de conformidade (implicando investimentos
suplementares para adaptação dos veículos, aprendizado de uma língua
estrangeira etc.). Estarão também
sujeitos a regras que estipulam a quantidade de horas de trabalho, o limite de
corridas diárias e as zonas geográficas de atuação.
O mercado está, doravante, inteiramente cartelizado. A
pressão resulta na cartelização e busca a manutenção do cartel. Embora haja gastos para aquiescerem às
regulamentações, não há concorrência para atormentá-los.
O paradoxo que envolve tal cartelização muitas vezes
escapa a muitos economistas, que dizem que o taxista que pagou pela obtenção de
uma licença não se beneficia, ele mesmo, de uma renda de monopólio. Na verdade,
a renda que ele ganha não é, na maioria dos casos, demasiadamente exorbitante.
O motivo é que a renda de monopólio é afetada pelos valores da licença e não
pela renda mensal obtida na atividade de taxista.
Caso não houvessem pago nada pela licença, os novos
taxistas poderiam gozar integralmente da renda conferida pela cartelização do
mercado; mas como o valor da licença é relativamente elevado, se repartirmos
esse valor sobre todos os meses do período de validade da licença, veremos que
boa parte da renda propriamente considerada de cartel se dissipa.
Caso o taxista tenha incorrido um empréstimo e seja
obrigado a reembolsar juros, a renda efetivamente associada ao cartel tenderá a
zero: o taxista operará por uma remuneração próxima a essa da concorrência ou
até mesmo tendendo a valores menores.
Os únicos e verdadeiros beneficiados da norma são os
primeiros produtores que obtiveram a licença por um valor pequeno
comparativamente ao custo da ação política e, obviamente, os políticos e
administradores da máquina pública que foram eleitos graças à contribuições de
sindicatos de taxistas ou que obtiveram um emprego nos diversos secretariados
graças à regulamentação da atividade.
Além dos custos para obtenção da licença, em cidades como
Belo Horizonte ou São Paulo a
placa de taxista chega a custar legalmente valores entre 90 e 120 mil
reais, além dos custos de transação incorridos. No mercado
negro, os valores podem variar significativamente e de cidade pra cidade,
em municípios como São Paulo uma licença para atuar em local privilegiado pode
alcançar no mercado negro valores
de até 150 mil reais, e uma placa em Porto Alegre pode custar
mais de 400 mil reais.
Consequentemente, um aumento da concorrência nessas
condições — como no caso das novas tecnologias de
aplicativos como o Uber — gerará perdas líquidas aos taxistas e afetará
seu padrão de vida.
Tal efeito é o mesmo que encontraríamos em casos de total
desregulamentação do setor: isto destruiria o valor em capital das licenças,
por mais que as mesmas tivessem sido adquiridas por valores altos junto aos
poderes públicos.
O comportamento
dos taxistas é, deste ponto de vista, perfeitamente racional. Como apontou
muito bem o professor
Lemennicier, a razão pela qual os taxistas se opõem duramente à
desregulamentação lembra muito a posição de uma pessoa que adquiriu em boa fé
uma obra de arte roubada.
A questão moral envolvendo o privilégio é que os taxistas
das novas gerações não deveriam ser obrigados a pagar pelas licenças caso os
mercados fossem completamente livres. E,
como consequência, sequer deveriam sofrer as perdas que uma desregulamentação
causaria uma vez que não propuseram a instauração do cartel.
Em contrapartida, e também do ponto de vista estritamente
ético, os usuários e novos empreendedores não deveriam ser obrigados a ter de
arcar com custos inventados pelas gerações passadas mediante pressão política
— por meio da edificação de normas restringindo a entrada e a competição —, o
que lhes impossibilita hoje de gozar dos benefícios da competição e da
liberdade de entrada.
Os usuários querem exercer sua liberdade de escolher os
bens e serviços que consomem, os produtores responsáveis pelas inovações
tecnológicas querem poder exercer o direito de operar suas atividades, e os
taxistas querem a manutenção do privilégio tendo em vista as perdas e custos
despendidos para exercer a profissão.
Essa situação vem conduzindo objetivamente a diversos
conflitos. Temos visto na mídia nacional
e internacional
manifestações de hostilidade de ambas as partes em decorrência da chegada das
novas alternativas e soluções em matéria de transporte urbano. Dado o conflito
direto que coloca em oposição, de um lado, os interesses dos usuários e dos
empreendedores, e de outro, os interesses dos taxistas, temos um imbróglio
desafiador cuja solução não necessariamente deveria pender para alguns dos
lados.
É possível pensar em soluções melhores do que a
proibição?
A imoralidade do
privilégio, a desnecessidade de compensação, e a Liberalização
O mecanismo que busca cercear politicamente os mercados e
restringir a concorrência mediante restrição legal é regido pelo mesmo
princípio que o protecionismo. A restrição legal é, na verdade, um mero dispositivo
de protecionismo regulatório.
Como qualquer violação dos direitos de propriedade, a
consequência direta da restrição é que os proprietários de recursos — neste
caso, os usuários dos aplicativos Uber e os potenciais taxistas e
transportadores das regiões urbanas — não podem produzir e vender seus
serviços livremente.
O privilégio legal viola um direito reconhecidamente
natural: o direito do indivíduo sobre si e a livre disposição sobre os bens que
produziu ou adquiriu legitimamente. O mercado não é nada além de uma extensão
desse direito natural; as trocas de mercado representam, efetivamente, uma
aplicação desse direito.
Do ponto de vista ético, estritamente, temos um mecanismo
essencialmente perverso e profundamente imoral.
A imoralidade do privilégio é comparável ao pleito por
uma indenização que busca ressarcir os taxistas que já tenham adquirido e pago
por sua licença. A compensação monetária das perdas significa simplesmente um
estímulo a esse mecanismo de busca desenfreada por privilégios legais mediante
processos regulatórios (rent-seeking):
trata-se de um estímulo à corrupção e ao roubo generalizado.
O fato é que não deveria existir qualquer imperativo
moral para se recorrer ao dinheiro dos pagadores de impostos para auferir
alguma compensação. O imperativo moral é ainda menor se imaginarmos que os taxistas
já se beneficiam de diversos
abatimentos fiscais (IPVA, IPI, ICMS, ISS) e descontos em veículos automotivos
que viabilizam ainda mais sua atividade.
Não obstante, e mesmo não havendo qualquer imperativo
moral, é perfeitamente possível combinar a liberalização do setor a uma
indenização parcial aos taxistas via maiores
abatimentos fiscais. Esta é, na verdade, a proposição que sugiro em
detrimento da simples proibição e restrição à entrada: é uma solução que aponta
na direção do desejável e se fundamenta em medidas simples.
A primeira proposição visando a introduzir maior concorrência
é a total liberalização do mercado
secundário de licenças e placas. Um simples dispositivo de controle a cada
mudança de proprietário poderia ser utilizado como garantia de que a
conformidade seria mantida para as licenças do governo. Isto pressionaria os
preços a oscilar segundo as forças do mercado e alinharia os valores das
licenças e das placas a patamares mais baixos do que os preços do atual mercado
negro.
A segunda proposição sugere a irrestrita liberdade para
entrada ou a total desregulamentação da atividade cartelizada, permitindo que
os concorrentes potenciais possam exercer livremente a atividade, o que inclui
os novos aplicativos. No entanto, de forma a garantir que os taxistas não saiam
tão prejudicados neste cenário de irrestrita desregulamentação, a proposta
associa a fixação de uma data (por
exemplo, a data de expiração da licença) para a transformação das licenças em
simples certificados de qualidade cuja gestão possa ser ulteriormente
privatizada.
As licenças passarão a ser, a partir dessa data, um
simples produto de referência de qualidade, um critério conferindo
reconhecimento de excelência nos serviços prestados ou algo comparável aos
certificados de conformidade, qualidade, e rótulos de garantia (labels). Mesmo com a liberação dos
mercados e com a possibilidade de fornecimento privado e concorrencial de labels de qualidade, os taxistas não
perderão, a médio prazo, esse valor que o rótulo de garantia confere à licença.
Concomitantemente, em terceiro lugar, e por mais que os
contribuintes não tenham nenhuma obrigação moral de indenizar os taxistas,
poderíamos imaginar que, até a data de expiração da licença, antes de serem
simples rótulos de qualidade, o valor
residual de cada uma fosse, em dada porcentagem, deduzido em um dos componentes
da vasta lista de impostos cobrados aos seus detentores (obviamente, os
impostos que eles ainda pagam).
Poderíamos incluir descontos maiores no preço final da
gasolina, abatimento direto no IR, aumento da extensão da redução do valor
abatido no IPVA ou redução das alíquotas de impostos sobre veículos importados
ou de luxo: existe muita margem para a criatividade nessa proposição.
O importante é que o montante de benefícios fiscais seja
atrelado e alinhado ao valor residual da licença (sua taxa de desconto).
Esta seria uma direção conciliadora entre o interesse
pela imediata liberalização dos serviços alternativos de transporte
(aplicativos Uber, moto-taxis, vans-piratas ou partilha de carros) e a
necessidade de parcial indenização dos valores e dos dispêndios com as licenças
e placas.
Considerações
Conclusivas
Conclusivamente, é curioso notar que uma das localidades
onde a norma restritiva se impôs tenha sido o Distrito Federal, ao lado do
município de São Paulo. Brasília talvez esteja entre os exemplos mais notórios
de cidades com acúmulo de políticas fracassadas em matéria de transporte: uma
mistura de corrupção ([1];
[2]),
tarifas elevadas — exceção feita ao serviços de ônibus do Plano Piloto, que
estão na média nacional ([1];
[2])
—, greves ([1];
[2];
[3]),
ineficiência no fornecimento dos serviços e precariedade ([1];
[2]).
Um verdadeiro absurdo se considerarmos que se trata de
uma cidade que possui os maiores níveis de renda per capita e onde houve amplo planejamento prévio para a mobilidade
urbana.
O mais instigante é que, não satisfeitos em não fornecer
serviços de transporte de qualidade, os administradores impedem e atrapalham
vigorosamente o empreendedorismo no setor, o caso Uber sendo apenas mais uma
ação punitiva entre tantas demonstrações dos resultados do intervencionismo ([1];
[2];
[3]).
Visando proteger sindicatos e grupos de transportadoras que
adquiriram o privilégio legal, as ações públicas não medem esforços para
expropriar e limitar as oportunidades de trabalho dos cidadãos que vivem nas
regiões do entorno, ou seja, justamente os que têm menos oportunidades e menor
nível de renda.
Se o comportamento dos taxistas é perfeitamente racional
dadas as despesas incorridas para obtenção de licenças, completamente
irresponsável é a tomada de decisões políticas pouco inteligentes e respondendo
apenas aos anseios de um determinado grupo de pressão. Ao insistirem em um
aparato organizacional centralizador que já mostrou seus limites, os
parlamentares demonstraram completa indiferença para com as reais necessidades
dos usuários de transporte.
Os parlamentares apenas satisfazem seu papel de
distribuidores de privilégios privados sob forma de restrições regulamentárias. Em contrapartida, recebem o apoio sindical e
eleitoreiro de uma entidade de classe, em um ambiente de corruptível democracia
representativa.
Esse sistema político, quando não restringe seu campo de
atuação, é simplesmente a representação de uma estrutura normativa em que uns buscam viver à custa dos outros, ao mesmo tempo em que esquecem
que o próprio regulamentador vive à custa de todos.
Obviamente que todos os parlamentares que votaram pela
proibição do aplicativo Uber têm suas despesas de transporte pagas pelos
próprios contribuintes e usuários dos transportes públicos. Em vez de serem
proibidas, soluções alternativas como a partilha de carros e os aplicativos
tipo Uber deveriam justamente ser estimuladas, dados os problemas de tráfego e
necessidade de concorrência e maior eficiência para os transportes nas grandes cidades.
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Leia também:
Uber, livros e os duzentos anos de conspiração contra o público consumidor