No dia
14/8/2015, o Juiz de Direito Bruno Vinícius da Rós Bodart, da 1
a.
Vara da Fazenda Pública da Comarca do Rio de Janeiro, proferiu
decisão favorável ao UBER, a
qual, em resumo, afirma o seguinte:
Ex positis, DEFIRO
A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, inaudita altera parte, na forma do art. 273, I, do
CPC/1973 e do art. 7o, III, da Lei no 12.016/2009, e determino que o Presidente
do Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro
(Detro/RJ) e o Secretário Municipal de Transportes do Rio de Janeiro, bem como
órgãos ou agentes que lhes sejam subordinados ou lhes façam as vezes,
abstenham-se de praticar quaisquer atos que restrinjam ou impossibilitem que o
impetrante exerça a atividade de transporte remunerado individual de
passageiros, em especial por meio da imposição de multas, da apreensão de
veículo ou da retenção da carteira de habilitação do condutor, sob pena de
multa no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de
recalcitrância no cumprimento desta decisão, sem prejuízo da configuração do
crime de desobediência (art. 330 do Código Penal).
A
decisão por si só já é bastante positiva, pois confirma, sem qualquer autorização
legal, o ideal de liberdade, ao autorizar um indivíduo a exercer a sua
atividade sem a necessidade de uma legislação específica para isso.
Todavia,
o que mais surpreende na decisão do Magistrado, não é somente a autorização que
ele dá ao motorista do UBER e sim a fundamentação, ou seja, os motivos que levaram
o Juiz a chegar à decisão acima.
Friedrich
August Von Hayek, um dos autores que melhor abordou o Direito na Escola
Austríaca de Economia, destaca o papel dos profissionais do Direito e faz um
aviso importante sobre os engenheiros sociais e a forma que eles usam o Direito
com essa finalidade[1]:
"o principal instrumento de mudança intencional na sociedade moderna é a
legislação."
Com
a ressalva de Hayek, fica claro o estrago feito, por quem defende o estado, ao
ensino jurídico nos últimos anos. Hoje, nas Faculdades de Direito, passa-se a
impressão de que o Direito somente pode existir com a existência do estado, o
que ocasiona uma série de consequências, já que a interferência estatal gera
resultados que o burocrata não consegue prever:
Os que imaginam
ser possível ordenar todas as atividades particulares de uma Grande Sociedade
de acordo com um plano coerente deveriam reconsiderar sua posição ante a
constatação de que isso não se mostrou possível sem mesmo no que diz respeito a
essa parte do conjunto que é a sistema jurídico. O processo de alteração do
direito revela, com especial clareza, o modo como as concepções dominantes
ocasionam uma mudança continua, produzindo medidas que de inicio ninguém
desejara ou previra, mas que, no devido tempo, parecem inevitáveis.
Tal
situação é a agravada no Brasil por uma tendência publicista que ocorreu nos
últimos anos com o Neoconstitucionalismo, ou seja, a ideia de que a
constituição não só era um paradigma para as leis do sistema jurídico
brasileiro, como deveria substituir em alguns casos o próprio ramo do Direito,
o que afastou em muito a ideia de que o estado não deve regular as relações
privadas
Essa
ideia publicista e equivocada vem atacando um dos princípios basilares do
Direito Civil, o direito do dia a dia, que afirma que "aquilo que não está
proibido, está permitido."
A
decisão do Juiz de Direito do Rio de Janeiro Bruno Vinícius da Rós Bodart volta
a colocar o Direito como uma ordem espontânea que deve ter como premissa o
respeito à vida, à liberdade e à propriedade, direitos humanos que estão
previstos expressamente na Constituição Federal de 1988.
Tais
direitos foram citados nos fundamentos da decisão abaixo, que autorizou o
motorista do UBER a seguir exercendo a sua atividade — ou seja, ele teve o seu
direito à livre iniciativa respeitado.
O
Juiz de Direito afirma o seguinte:
A Constituição da
República estabelece, de forma expressa e categórica, que o nosso Estado
Democrático de Direito, bem assim a ordem econômica brasileira, tem como
fundamento a livre iniciativa. Trata-se de indiscutível liberdade fundamental
garantida a todos os indivíduos pelos artigos 1o, IV, e 170 da Carta Magna.
Como densificação dessa garantia, figura também na Constituição o direito ao
livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, estabelecido no
inciso XIII do artigo 5o.
Complementando a decisão, o Juiz apresenta o conceito de
Liberdade e reforça o princípio constitucional da livre iniciativa, destacando
que não se pode proibir o ingresso de novos players
no mercado:
O conceito de
liberdade fundamentalmente protegida implica a existência de um direito
fundamental a optar por fazer ou não fazer, é dizer, todos os indivíduos podem
optar por exercer ou não determinada atividade econômica, com a garantia de que
o Estado não poderá limitar ou proibir arbitrariamente o ingresso de novos
agentes no mercado.
Em geral, os liberais/libertários, no qual me incluo, tendem a criticar
a Constituição Federal de 1988 (CF/88) por ser intervencionista e ter deixado
de lado a lógica econômica em várias das suas passagens. Para se ter uma noção
dos absurdos econômicos que se incluem na CF/88, a última Emenda
Constitucional tratada pelo Senado e votada em primeiro turno determinou a seguinte
aprovação:
da
inclusão do transporte no rol de direitos sociais elencados no artigo 6º da
Constituição Federal. A mudança no texto constitucional, aprovada em primeiro
turno e por unanimidade no Senado Federal, foi sugerida pela Proposta de Emenda
Constitucional nº 74.
A PEC 74/2013, de
iniciativa da deputada federal, Luiza Erundina, uma das fundadoras da Frente
Nacional de Prefeitos (FNP) e presidente da entidade no período de 1989-1992,
tem o objetivo de assegurar ao cidadão esse benefício e deverá ser apreciada em
segundo turno na mesma Casa.
Entretanto, a própria Constituição — que possui várias falhas
— também nos dá algumas ferramentas para usarmos ao nosso favor, como o
artigo 170 da CF/88 que destaca que a livre iniciativa é um dos fundamentos do
estado brasileiro, sendo "vedado
ao Estado impedir ou limitar trocas voluntárias entre particulares, a menos que
demonstre de forma inequívoca que essa medida é:
(i) necessária para a proteção de um
interesse fundamental; e
(ii)
adequada para a consecução desse
objetivo.
Apesar
de entender que o estado não poderia impedir ou limitar as trocas voluntárias
de nenhuma forma, na decisão que estamos analisando, o Juiz do Rio de Janeiro
limita o estado, ou seja, consegue colocar algum freio na ânsia regulatória que
o estado tem.
Além
disso, o Magistrado Bruno Bodart afirma que "é necessária a demonstração clara
e inequívoca da "falha de mercado", não podendo restar qualquer dúvida, sendo
um ônus do estado demonstrar isso, sendo inconstitucional e indevida a
ingerência na livre iniciativa em caso de dúvida".
Para
ilustrar tal situação, ele cita o livro recém lançado do Milton
Friedman pela editora Record
(que tem como editor Carlos Andreazza, o qual foi entrevistado por Bruno Garshagen no Podcast 182 do
Instituto Mises Brasil):
Note-se que é do
Estado o ônus de justificar a regulação, com dados claros, objetivos e
confiáveis indicando a existência de notória "falha de mercado", reputando-se
inconstitucional e indevida a ingerência na livre iniciativa em caso de dúvida.
Essa ideia foi exposta com maestria pelo ganhador do prêmio Nobel em Ciências
Econômicas Milton Friedman: "Devemos desenvolver a prática de analisar tanto os
benefícios quanto os custos das propostas de intervenção do governo e exigir
uma justificativa muito clara a favor dos benefícios em vista dos custos antes
de adotá-las" (FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Livre para escolher. Trad.
Ligia Filgueiras. 1a ed. Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 62).
Para
ilustrar tal situação, o Douto Magistrado citou Friedman, mas poderia
claramente ter citado Fredéric Bastiat em "O que se vê e o que não se vê":
Na esfera econômica, um ato, um hábito, uma instituição, uma lei
não geram somente um efeito, mas uma série de efeitos. Dentre esses, só o
primeiro é imediato. Manifesta-se simultaneamente com a sua causa. É visível. Os outros só
aparecem depois e não são
visíveis. Podemo-nos dar por felizes se conseguirmos prevê-los.
Entre um bom e um mau economista existe uma diferença: um se
detém no efeito que se vê; o
outro leva em conta tanto o efeito que
se vê quanto aqueles que se devem prever.
E essa diferença é enorme, pois o que acontece quase sempre é
que, quando a consequência imediata é favorável, as consequências posteriores
são funestas e vice-versa. Daí se conclui que o mau economista, ao
perseguir um pequeno benefício no presente, está gerando um grande mal no
futuro. Já o verdadeiro bom economista, ao perseguir um grande benefício
no futuro, corre o risco de provocar um pequeno mal no presente.
Ou
ainda poderia citar Hayek[2] que trata do mesmo
assunto:
Sou
suficientemente idoso para ter ouvido muitas vezes, de homens mais velhos, que
certas consequências da sua política, que eu previa, jamais ocorreriam; e mais
tarde, quando elas de fato ocorreram, para ter ouvido, de homens mais jovens,
que essas mesmas consequências tinham sido inevitáveis e totalmente
independentes daquilo que de fato tinha sido adotado.
Na
decisão em análise, o Juiz questiona se "no caso do transporte individual de
passageiros, se há justificativas legítimas[3]
para que o Estado, por meio de regulação, impeça a entrada de novos agentes no
mercado."
Além
disso, o Magistrado observa algumas alegações que os estatistas utilizam para
regulamentar as trocas voluntárias. O primeiro argumento trata da assimetria de
informações entre fornecedor e consumidor:
Em um mercado com
muitos prestadores do serviço, é caro e ineficiente que cada usuário
certifique-se da habilidade de todo motorista com que se defronta. Nesse
cenário, a intervenção do Estado serviria para reduzir os custos de transação típicos
do setor através, por exemplo, da fixação de padrões mínimos de segurança,
higiene e conforto, além de critérios objetivos para a formação de preços.
Garantir-se-ia, com isso, a qualidade do serviço prestado pelos fornecedores ao
impedir a circulação de motoristas despreparados e carros precários, bem como
ao reduzir os custos de barganha na definição de preços de cada corrida.
Ora,
o estado nunca conseguiu nada disso. Na realidade, o que se vê, é que a
regulação estatal nunca livrou o consumidor de deparar-se com condutores que
desrespeitam as leis de trânsito ou condutores pouco cordiais, com veículos em
péssimo estado de conservação e com a prática das chamadas "corridas no tiro".
O
Juiz da decisão em favor do UBER destaca que a "evolução da tecnologia tem
beneficiado e protegido os usuários do serviço de forma muito mais intensa que
os poderes públicos foram capazes ao longo do tempo."
E,
na decisão que está sendo analisada, o Magistrado passa a tratar diretamente do
serviço UBER e destaca como o estado não tem qualquer interesse no benefício do
consumidor quanto às tarifas fixadas:
Aplicativos como o
Uber permitem que os usuários controlem diretamente a qualidade dos serviços,
por meio de avaliações ao final de cada corrida. O motorista que preste serviços
cuja qualidade, higiene e conforto sejam pouco conceituadas entre os usuários é
descredenciado. Como apontam os professores de economia João Manoel Pinho de
Mello (Insper) e Vinicius Carrasco (PUC/Rio), a plataforma Uber "faz uso de
mecanismos de avaliação por parte dos consumidores que induzem incentivos para
que os motoristas criem a reputação de prover bons serviços."
Além disso, o
credenciamento depende do preenchimento de diversos requisitos, como a
apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais, de carteira
nacional de habilitação válida com permissão para o exercício de atividade
remunerada, da frequência a cursos de direção segura e boas maneiras, assim
como da posse de carro em funcionamento regular, de modelo recente.
Note-se
também que o estabelecimento de tarifas fixas sequer é necessário, na medida em
que o usuário é informado previamente sobre o valor do serviço para o trajeto
pretendido. Aliás, o mero fato de
aplicativos como o Uber lograrem propiciar ao usuário um serviço de melhor
qualidade por um preço praticamente idêntico demonstra como as tarifas fixadas
pelo Poder Público não são estabelecidas no interesse do consumidor.
Além
disso, destaca "que os próprios indivíduos, sem ingerência estatal, conseguiram
construir um sistema em que a assimetria de informação é eliminada, não se
justificando a regulação por esse aspecto." Ou seja, ele destaca como os
indivíduos são quem melhor podem resolver os seus próprios problemas.
O
segundo argumento aponta que o estado poderia limitar as trocas voluntárias. Mais especificamente, o argumento está
relacionado ao "excesso de carros em circulação, para aliviar os
congestionamentos de trânsito, que poderiam ser compreendidos, em linguagem econômica,
como "externalidades negativas":
Outro argumento que
poderia ser invocado em favor da regulação seria a necessidade de evitar um
excesso de carros em circulação, para aliviar os congestionamentos de trânsito,
que poderiam ser compreendidos, em linguagem econômica, como "externalidades
negativas".
Ocorre que, para surtir efeito, um expediente dessa natureza
deveria abranger todos os tipos de veículos em circulação nas vias públicas,
não apenas aqueles que prestam o transporte individual de passageiros. Seria
necessário que o Governo limitasse a própria compra de veículos ou instituísse
restrições à circulação total de automóveis em certas localidades ou certos
períodos.
Some-se ainda o fato de que muitos clientes de serviços como o Uber
lançam mão dessa opção precisamente para não ter de utilizar seu automóvel
particular, pelo que o impacto sobre o tráfego não é inequívoco: o aumento de
prestadores de serviço, por um lado, eleva a quantidade de carros em
circulação, mas, por outro, reduz o uso do transporte próprio. Portanto, a mera
limitação ao número de prestadores de serviço de transporte individual de
passageiros é medida manifestamente inadequada aos objetivos a que se propõe.
Pelos
argumentos dos estatistas, não se vê qualquer necessidade de regulação desse
tipo de serviço por uma questão de mercado. Na realidade, impedir a entrada de
novos players viola claramente a
livre iniciativa e é, como dito acima, completamente inconstitucional.
É
necessário destacar que tanto os táxis como a UBER podem conviver de forma
harmônica, já que existem vantagens em cada um dos serviços oferecidos,
conforme destaca a decisão:
Nem se diga que a
vedação da atividade econômica de transporte privado individual de passageiros
seria justificada como forma de resguardar os interesses daqueles que se
dedicam à modalidade pública dessa atividade. É possível a convivência
harmônica entre esses profissionais, dada a clara distinção entre os serviços
prestados por eles.
Os táxis dispõem de
lastro oficial ao serem certificados pelo Poder Público. A existência de uma
permissão concedida Município ainda é um ativo valioso neste setor, sobretudo
se considerarmos que nem todas as pessoas conhecem aplicativos como o Uber ou
têm acesso a tecnologias. A caracterização própria dos táxis confere-lhes ainda
poder de obter clientela nas vias públicas, sem contar a autorização para
utilizar faixas exclusivas, agregando maior celeridade para seus usuários.
Gozam, ainda, de desonerações tributárias, seja na aquisição de veículos, seja
no que tange ao imposto sobre a sua propriedade. As taxas devidas ao Poder
Público pelos detentores de táxi são justificadas pelo custo da fiscalização
estatal que lhe é associada: a aferição da regularidade dos taxímetros, da
qualidade mecânica e estética dos veículos etc.
Quanto
aos motoristas profissionais, a decisão ilustra a dificuldade que havia antes
do aplicativo, já que era bem mais difícil conectar quem precisava de um
motorista e quem queria prestar o serviço:
Os demais
motoristas profissionais que prestam serviços em caráter privado não gozam dos
mesmos benefícios. Na realidade, até o advento de aplicativos de mobilidade,
esses trabalhadores possuíam grande dificuldade para angariar clientes. Muitos
atuavam em casos muito específicos, como o transporte de convidados de festas e
eventos, o dos noivos após o casamento etc. Aqueles que anunciavam seus
serviços "de porta em porta" possuíam renda ainda mais eventual, como o caso de
um idoso cujas limitações físicas demandavam os serviços de um motorista em
certa situação peculiar. Devido à baixa (ou oculta) demanda, quando contratados
como empregados, esses profissionais obtinham salários demasiadamente
reduzidos.
A
criação do UBER demonstra a vantagem da destruição criativa, a possibilidade da
inovação e de como os indivíduos, por meio da tecnologia, podem resolver os
seus próprios problemas, no caso, a conexão entre quem precisa de motorista e
quem quer ser um motorista:
A utilização da
tecnologia para conectar os consumidores aos prestadores de serviço permitiu o
descortino da demanda latente, atraindo profissionais para a área, aumentando a
renda dos trabalhadores e reduzindo o desemprego. Nenhuma pessoa poderia defender seriamente que a atividade desses
profissionais deveria ser proibida antes da criação dos aplicativos, ao menos
não sem ferir de morte a garantia da livre iniciativa insculpida nos artigos
1o, IV, e 170 da Constituição. Não há motivos, portanto, para defender
semelhante proibição justamente quando a tecnologia permitiu sensível melhoria
de vida para os trabalhadores (e para os consumidores de serviços).
O
Juiz passa então a analisar a legislação infraconstitucional que regulamentaria
a utilização de táxi, que é uma permissão da administração pública. A primeira
legislação infraconstitucional trata sobre o regime de concessão e permissão da
prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, a
que estabelece o seguinte no seu artigo 16:
Art. 16. A outorga
de concessão ou permissão não terá
caráter de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou
econômica justificada no ato a que se refere o art. 5o desta Lei.
A
decisão a favor do UBER destaca que não há qualquer
obrigação de exclusividade, em respeito à previsão acima, além de não existir
inviabilidade técnica ou econômica no caso dos motoristas do UBER:
Sendo estreme de
dúvidas que não cabe ao Governo fornecer aos cidadãos serviço de veículo
particular com motorista, salta à vista o paradoxo que seria pretender um
regime de exclusividade para uma atividade econômica propriamente dita, quando
até mesmo nos casos de serviços públicos essa situação seria excepcionalíssima.
Não se verifica, em juízo de delibação, qualquer inviabilidade técnica ou
econômica que justifique a instituição de um monopólio ou oligopólio protegido
pelo Estado no que diz respeito à atividade de transporte individual de
passageiros, consoante argumentado acima, revelando-se perfeitamente possível a
convivência dos agentes cadastrados pelo Estado e de outros que atuam a título
privado.
Na
decisão em análise, o Magistrado informa que o legislador não pode fazer o que
quer, visto que a livre iniciativa é uma liberdade fundamental e, faz questão
de lembrar, que "compete ao Poder Judiciário atuar como limitador dos poderes
do Estado, impedindo a sua expansão desmesurada em desfavor dos indivíduos."
O
Juiz trata também dos benefícios recebidos por grupos de pressão, ou seja, que "há
forte desequilíbrio entre os grupos de interesse envolvidos, tornando o debate
no Legislativo ou perante o Executivo enviesado pelo amplo poder de pressão
daqueles que são protegidos pela regulação":
Sobre esse aspecto,
colho as precisas considerações de John Blundell e Colin Robinson:
"UM OUTRO MOTIVO
PELO QUAL A REGULAÇÃO É CRIADA e pelo qual tende a crescer é que os mais
diversos grupos de interesse podem se beneficiar consideravelmente dessa mesma
regulação. O processo de lobby, através do qual os grupos de pressão se
esforçam para mudar as políticas do governo a seu favor, explica o fato
comumente observado de que freqüentemente as políticas do governo parecem ser
mais dominadas pelos interesses de produtores e outros grupos organizados do
que pelo 'interesse público'.
O motivo subjacente
pelo qual os grupos organizados são tão influentes na regulação (e outros
setores de formadores de políticas) é de que o benefício potencial da regulação
se concentra nos seus membros, enquanto os custos da regulação são diluídos em
um grande número de consumidores ou até mesmo na totalidade da população.
(...) os
consumidores terão que arcar apenas com pequenos custos se a regulação for
implementada. Conseqüentemente, têm pouco incentivo para investir em tempo e em
outros custos em que incorreriam caso fizessem oposição à regulação. Muitos
consumidores podem não perceber que existem custos envolvidos. Assim, apesar de
existirem milhões de 'vitimas invisíveis' de uma regulação e de o total dos
custos estar muito acima dos benefícios obtidos pelo grupo organizado, na
prática as vitimas podem fazer uma oposição fraca ou até mesmo nenhuma oposição
à regulação." (BLUNDELL, John; ROBINSON, Colin. Regulação sem o Estado. Trad.
Vera Nogueira. Rio de Janeiro: IL, 2000. p. 24-25)
O
descrito acima é chamado de Teoria de Captura, que é uma forma de
corporativistas terem benefícios por meio da legislação, algo que, por conta do
poder que se dá a burocratas no Brasil, ocorre bastante. Tal situação deixa o
corporativista sem a preocupação de prestar um melhor serviço com um menor
preço, indo de encontro à lição de
Ludwig von Mises no livro As Seis Lições:
Certas
expressões usadas pelo povo são, muitas vezes, inteiramente equivocadas.
Assim, atribuem-se a capitães de indústria e a grandes empresários de nossos
dias epítetos como "o rei do chocolate", "o rei do algodão"
ou "o rei do automóvel". Ao usar essas expressões, o povo
demonstra não ver praticamente nenhuma diferença entre os industriais de hoje e
os reis, duques ou lordes de outrora. Mas, na realidade, a diferença é
enorme, pois um rei do chocolate absolutamente não rege, ele serve. Não reina sobre um
território conquistado, independente do mercado, independente de seus
compradores. O rei do chocolate - ou do aço, ou do automóvel, ou qualquer
outro rei da indústria contemporânea - depende da indústria que administra e
dos clientes a quem presta serviços. Esse
"rei" precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os
consumidores: perderá seu "reino" assim que já não tiver condições de
prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo que o
oferecido por seus concorrentes.
O Juiz Bruno Bodart fala expressamente dos indícios da Teoria da
Captura em sua decisão, já que a proibição beneficia tão somente os taxistas
que são beneficiados pelas escassas permissões outorgadas e prejudica toda a
população que passaria a contar com o UBER com uma opção para se transportar
por meio de um serviço melhor:
Na hipótese, há
indícios significativos de que a iniciativa estatal é fruto de captura
regulatória e não está voltada à promoção do melhor interesse público. A rigor,
a consistência jurídica da escolha proibitiva é frágil. De um lado, existe um
serviço bem qualificado e cada vez mais utilizado pela sociedade. De outro, há
a oposição ferrenha de governantes à atividade; oposição essa fomentada, é bom
que se frise, por grupos de interesse que, afortunados pelas escassas permissões
outorgadas, logram rendas extraordinárias na exploração do serviço.
Os
beneficiários dessas rendas extraordinárias geradas por conta das permissões
são os maiores interessados na impossibilidade de novos players entrarem no mercado, já que isso poderá quebrar esse
absurdo mercado de licenças que é descrito na decisão:
Recente
reportagem do jornal "O Globo" informou que apenas três grupos controlam
58% (cinquenta e oito por cento) dos táxis de empresas na cidade, enquanto o
periódico "Extra" denunciou
que um grupo de quinze empresas de aluguel de táxis fatura R$ 6.700.000,00
(seis milhões e setecentos mil reais) por mês com as chamadas "diárias". A
notória sobreposição do número de motoristas de táxi ao número de detentores de
permissões bem demonstra que a escassez artificial de licenças não é gerada nem
em benefício dos trabalhadores, subjugados pelo pagamento de "diárias", nem em
favor dos consumidores, muitas vezes reféns de serviços de baixa qualidade. Como bem alerta Thomas Sowell, "Government is neither
a monolith nor simply the public interest personified" (Basic Economics. 4a
ed. New York: Basic Books, 2011. p. 415).
Logo em seguida, o Juiz de Direito destaca que "não se pode jamais perder de mira
que, em um Estado de Direito, a regra é a liberdade individual e profissional;
a regulação é a exceção."
Essa
visão do Direito como garantidor de Liberdade precisa ser reiterada todos os
dias por quem defende a Liberdade no Brasil e no caso do UBER é claríssima:
Todo o expendido
conduz à inevitável conclusão de que o legislador ou o administrador não podem
editar norma jurídica que restrinja arbitrariamente ou proíba a atividade de
transporte privado de passageiros, sob pena de frontal ofensa ao postulado da
liberdade de iniciativa albergado como elemento fundante da nossa ordem
jurídica pela Constituição (artigos 1o, IV, e 170).
O
Supremo Tribunal Federal, instituição que deve ser a guardiã da Constituição
Federal de 1988, editou a Súmula Vinculante 89, que tem poder vinculante para
todo país, para que a livre iniciativa fosse preservada e o Juiz de Direito
Bruno Bardot fez a relação com o transporte de passageiros:
"Súmula Vinculante
89 - Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação
de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área". Pelos mesmos motivos, ofende o princípio da
livre concorrência (art. 170, IV, da Constituição) Lei ou Decreto de qualquer
dos entes da Federação que impeça a coexistência dos transportadores de
passageiros sob o controle do Estado e aqueles que exercem a mesma atividade em
caráter privado.
A
Lei Federal nº 12.468/2011 regula a profissão de taxista e estabelece que é
"atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo
automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual
remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete)
passageiros".
Todavia,
a legislação infraconstitucional não pode ir de encontro ao que a constituição expressa,
razão pela qual o Juiz de Direito Bruno Bodart faz a interpretação baseada no
princípio constitucional da Livre Iniciativa, bem como destaca que o transporte
público municipal não se confunde com o serviço privado de transporte:
A interpretação
pouco refletida do dispositivo conduziria à construção normativa de que tão
somente os sujeitos beneficiados com a outorga, pelo Poder Público, de um
número limitado (e escasso) de permissões seriam autorizados a trabalhar no
ramo do transporte urbano individual de passageiros. Ao criar um nicho de
mercado para a privativa atuação de determinados profissionais, vedando o livre
ingresso de agentes no setor, incorre a referida norma em grave e frontal
agressão a um dos fundamentos da República Brasileira: a livre iniciativa, com
o corolário da liberdade profissional. Desse modo, o diploma fere de morte as
garantias básicas albergadas nos artigos 1o, IV, 5o, XIII, e 170, caput e IV,
da Carta Magna.
A única
interpretação compatível com a Constituição consiste em extrair do art. 2o da
Lei Federal no 12.468/2011 o mero reconhecimento de que determinados
profissionais, os taxistas, atuam sob credenciamento do Poder Público, com
todas as benesses que essa condição oferece (lastro oficial, obtenção de
clientela em logradouros públicos, utilização de faixas exclusivas,
desonerações tributárias etc.) — e, por isso, são caracterizados como
transportadores públicos de passageiros. Contudo, deve ser resguardada a
coexistência de atuação no mercado entre esses profissionais e aqueles que
atuam sem os benefícios conferidos pela chancela do Governo, exercendo o
transporte privado individual de passageiros. O mesmo ocorre em diversos outros
setores: há os educadores públicos e os privados; os médicos públicos e os
privados; os advogados públicos e os privados etc.
A mera oferta ao público não é a característica que distingue esses
profissionais, motivo pelo qual semelhante critério é inservível para a
distinção entre os transportadores públicos e os particulares. Entendimento
diverso equivaleria a qualificar como "públicos" todos os profissionais
conhecidos: "eletricistas públicos", "chaveiros públicos", "encanadores
públicos"...
Idêntica
interpretação deve ser conferida ao art. 12 da Lei no 12.587/2012, segundo o
qual os "serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros
deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público
municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de
higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das
tarifas a serem cobradas".
A disciplina do Poder Público municipal deve ser
dirigida apenas àqueles que desejam auferir os benefícios da prestação do
serviço de transporte em caráter público, sem qualquer tipo de restrição aos
que se dedicam à atividade em caráter privado. Nesse sentido, o próprio art. 3o da Lei no 12.587/2012 esclarece que o
transporte público convive em harmonia com a existência do transporte urbano
privado de passageiros.
Por
fim, passa a tratar do Decreto Municipal no 40.518/2015 do Rio de Janeiro, que
"dispõe sobre as penalidades para o transporte remunerado irregular de
passageiros no âmbito municipal"
Tal
decreto, segundo o Magistrado — e compartilho desta opinião —, é
"manifestamente inconstitucional e ilegal":
O art. 1o do
aludido ato normativo do Executivo fixa punições (multa e apreensão do veículo)
para todos aqueles que "estiverem explorando a atividade de transporte de
passageiros sem a prévia autorização, concessão ou permissão do Poder Público Municipal".
Ao fazê-lo, cria odiosa restrição de
mercado, já que sabidamente não há emissão de "autorização, concessão ou
permissão" para qualquer indivíduo interessado em trabalhar no ramo.
Evidente, por conseguinte, a ofensa aos princípios da livre iniciativa, da
liberdade profissional e da livre concorrência (artigos 1o, IV, 5o, XIII, e
170, caput e IV, da Constituição). Deve-se recordar, quanto ao ponto, que a
Constituição da República estabelece como regra ser "assegurado a todos o livre
exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de
órgãos públicos" (art. 170, parágrafo único).
Na hipótese, não há qualquer
"inviabilidade técnica ou econômica" que justifique a exclusividade dos
autorizatários, concessionários ou permissionários na prestação do serviço,
pelo que o ato do Prefeito Municipal descumpre manifestamente o preceito
previsto no art. 16 da Lei Federal no 8.987/95, dispositivo que assegura a
atuação concorrente da iniciativa privada mesmo nos casos de delegação de serviços
públicos.
Quanto ao transporte
individual de passageiros, que sequer caracteriza serviço público, a
exclusividade é ainda mais aviltante às liberdades asseguradas
constitucionalmente.
Além
disso, a forma usada, Decreto Municipal, pelo chefe do executivo do município
do Rio de Janeiro, viola o princípio da legalidade (art. 84, IV, da Constituição
da República e art. 107, IV, da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro),
ou seja, seria preciso que a lei fosse criada pelo poder legislativo. Contudo,
ainda que houvesse uma lei nesse sentido, seria completamente inconstitucional.
A
Constituição Federal de 1988 está longe de ser a ideal para quem acredita na
Liberdade. Ao mesmo tempo, essa mesma constituição possui uma série de
ferramentas que podem ser usadas na defesa dessa palavra tão bela. Precisamos
de cada vez mais juristas pensando e defendendo a Liberdade, algo que já vem
ocorrendo em todo Brasil e esta decisão analisada é só mais uma prova disso.
[1] Hayek, Friedrich August von.
Direito, Legislação e Liberdade. Ed: Visão, ano 1985, p. 408. Link https://eplsanta.wordpress.com/direito-legislacao-e-liberdade/. Acessado em 22/8/2015.
[2]Hayek, Friedrich August von.
Direito, Legislação e Liberdade. Ed: Visão, ano 1985, p. 174. Link https://eplsanta.wordpress.com/direito-legislacao-e-liberdade/. Acessado em 22/8/2015.
[3]Nota do Autor: É óbvio que não se
deve impedir a entrada de novos players
no mercado, todavia o juiz usa de "armas" que estão na Constituição para
limitar o poder do estado.