A taxa de câmbio, ao lado da taxa de juros, é um dos
principais preços de toda a economia. A
taxa de câmbio é o preço da moeda de um país em termos de todas as outras
moedas do mundo.
Grosso modo, a taxa de câmbio representa, em tempo
real, a razão entre os preços gerais vigentes em dois países
distintos.
Sendo assim, se um país, por exemplo, tem uma taxa
de câmbio que se mantém inalterada em relação ao franco suíço, isso significa
que sua moeda se mantém tão forte quanto o franco suíço. Significa que sua
moeda mantém o mesmo poder de compra do franco suíço. Por definição, é
impossível este país vivenciar uma hiperinflação (a menos, é claro, que o
franco suíço entre em processo de hiperinflação).
É exatamente por isso que todos os planos de
estabilização econômica — países que estão vivenciando um processo de
hiperinflação e querem retornar à normalidade — necessariamente passam por
alterações no regime cambial adotado.
Ainda mais importante: no atual mundo globalizado em
que vivemos, a taxa de câmbio é muito mais efetiva em determinar a inflação de
preços do que as taxas de juros. A taxa
de câmbio afeta
praticamente todos os preços da economia, desde alimentos e remédios até
móveis (que são fabricados com commodities transacionadas em dólar), utensílios
domésticos (desde panelas de aço a aparelhos eletroeletrônicos), gasolina (o
petróleo é cotado em dólar) e eletroeletrônicos, passando por pequenas empresas
que utilizam produtos importados (uma simples firma que utiliza computadores e
precisa continuamente comprar peças de reposição) até grandes indústrias que
necessitam de importar máquinas e matérias-primas de várias partes do mundo.
Igualmente, a taxa de câmbio é crucial para o
crescimento de uma economia. Uma taxa de
câmbio estável pode
gerar um prolongado período de crescimento econômico, ao passo que uma taxa
de câmbio instável é capaz de reverter qualquer processo de crescimento.
Existem três tipos de regimes cambiais: taxa de
câmbio flutuante, taxa de câmbio fixa e taxa de câmbio atrelada. Cada uma dessas taxas possui características
diferentes e gera resultados distintos.
Taxa
de câmbio flutuante
A taxa de câmbio flutuante é a taxa vigente na maioria dos países do mundo (majoritariamente
em sua versão de "flutuação suja").
Mesmo os países que utilizam o euro possuem uma taxa de câmbio flutuante
em relação a todos os outros países que não utilizam o euro.
Nesse regime cambial, o Banco Central estipula apenas a política monetária,
ou seja, ele controla a taxa básica de juros e a base monetária. O Banco Central não possui nenhuma política
cambial explícita.
A taxa de câmbio varia diariamente ao sabor da oferta de moeda estrangeira,
da demanda de estrangeiros pela moeda nacional e, principalmente, da percepção
dos investidores estrangeiros e dos especuladores quanto à situação econômica e
política do país.
Nesse arranjo, a taxa de câmbio é um preço formado instantaneamente pela
interação voluntária de bilhões de agentes econômicos ao redor do mundo.
Se esses bilhões de agentes econômicos acreditam que a inflação de preços em um
determinado país será baixa ou que sua situação política e economia é boa, sua
moeda irá se valorizar em relação às outras. Se eles acreditam que a inflação
está alta ou que ela será alta, ou que a situação política e econômica do país
está ruim, sua moeda irá se desvalorizar em relação às outras.
Sob um arranjo de taxa de câmbio flutuante, não há crises no balanço de
pagamentos e, em tese, um país não
precisa deter reservas internacionais.
Caso haja uma fuga de capitais estrangeiros — causada, por exemplo, por
uma deterioração da economia ou da situação política do país —, a taxa de
câmbio imediatamente se desvaloriza e isso, em
teoria, tende a estancar importações, estimular exportações e baratear
investimentos em portfólio (por exemplo, compra de ações, de debêntures e
títulos do governo) para estrangeiros, fazendo com que o capital estrangeiro
retorne.
Isso tudo apenas na teoria.
A prática, no entanto, mostra que taxas de câmbio flutuante não funcionam
bem para países ainda em desenvolvimento que possuem um longo histórico de
instabilidade monetária ou política, e cujo Banco Central não é visto como
confiável. Nestes países, a qualquer
sinal de novas instabilidades, a taxa de câmbio não flutua; ela afunda.
E junto com a taxa de câmbio vão a inflação de preços e a queda no padrão de
vida dos cidadãos.
Nem
mesmo exportações são estimuladas, pois a inflação de preços resultante da
disparada cambial afeta severamente os custos do setor industrial, que tem
também de importar vários insumos e maquinários de qualidade (ver todos os
detalhes sobre isso neste
artigo). Consequentemente, não
apenas os preços dos produtos fabricados sobem (pois os custos de produção
subiram), como também a qualidade se deteriora (por agora utilizarem menos
insumos importados), o que não ajuda a aumentar as exportações.
E, além de nem sempre estimular exportações, a desvalorização da taxa de
câmbio também não traz nenhuma garantia de que os investidores estrangeiros
trarão de volta seus capitais para o país com o intuito de adquirir ações e
papeis agora mais baratos em moeda estrangeira.
Caso a instabilidade política e econômica seja grande, simplesmente não
haverá motivos para eles se arriscarem tanto e investir dinheiro no país.
Consequentemente, a taxa de câmbio irá se desvalorizar ainda mais.
Essa nova desvalorização deixará investidores estrangeiros ainda mais
arredios, pois ela afeta
totalmente qualquer chance de algum retorno positivo em suas eventuais
aplicações no país.
Essa perspectiva de perda real de dinheiro para os investidores estrangeiros
tende a reforçar ainda mais o ritmo da desvalorização da taxa de câmbio. No extremo, um país pode entrar em hiperinflação
em decorrência das contínuas desvalorizações cambiais geradas por instabilidades
políticas e econômicas, como aconteceu
com a Indonésia
em 1998.
Em um regime de câmbio flutuante, instabilidades políticas e econômicas são
imediatamente transferidas para a taxa de câmbio, intensificando ainda mais os
desarranjos da economia.
Para piorar, nesse cenário de desvalorização cambial, a única maneira de o
Banco Central manter a inflação de preços relativamente tolerável é gerando uma
brutal recessão (por meio de juros crescentes) que eleve acentuadamente o
desemprego, reduza salários e acabe com a demanda.
Apenas com recessão, desemprego e queda na renda podem os preços se manter
relativamente estáveis em um cenário de rápida desvalorização cambial.
Apenas essa conjunção de fatores pode impedir um grande repasse cambial aos
preços.
Obviamente, nesse cenário, as empresas e os empreendedores ficam
asfixiados. Eles pagam cada vez mais caro pelas importações, mas não
podem repassar esses custos para os preços. Consequentemente, eles vão se
tornando cada vez mais descapitalizados, o que afeta sua capacidade de
investimento e de contratação de mão-de-obra.
Em suma, uma taxa de câmbio flutuante funciona bem para economias já
desenvolvidas e estáveis, e pode também funcionar bem para países ainda em
desenvolvimento que usufruem grande estabilidade política.
Mas seu histórico para países em desenvolvimento e que não usufruem
estabilidades políticas e econômicas não é dos melhores.
Taxa
de câmbio fixa
Sob um arranjo de taxa de câmbio fixa, a taxa de câmbio, obviamente, tem de
ser estritamente imutável ao longo do
tempo.
É comum confundir taxa de câmbio fixa com taxa de câmbio atrelada. Na taxa de câmbio atrelada, que foi a que
vigorou no Brasil durante os anos de 1995 a 1998, a taxa de câmbio varia diariamente, só que dentro de
bandas estritamente determinadas pelo Banco Central. Tal arranjo, que será estudado mais abaixo, é
inerentemente instável, ao contrário da taxa de câmbio fixa.
Um arranjo de taxa de câmbio fixa dificilmente pode ser implantado por um
Banco Central, pois a função clássica de um Banco Central é estipular juros e manipular
a base monetária.
Um arranjo de câmbio fixo só pode funcionar bem por meio de um Currency Board.
O que é um Currency Board
Um Currency Board — que pode ser traduzido como Agência de Conversão ou
Caixa de Conversão — já vigorou no Brasil no período de 1906 a 1920 (mais
detalhes sobre isso abaixo). Trata-se de
um dos arranjos monetários mais antigos e tradicionais do mundo, perdendo
apenas para o padrão-ouro. Aliás, era comum que o país que adotasse o
padrão-ouro o fizesse por meio de um Currency Board (como ocorreu com o Brasil
no período supracitado).
O Currency Board nada mais é do que, como o próprio nome em português deixa
claro, uma agência de conversão de moeda, cuja única função é converter a moeda nacional em uma moeda estrangeira
específica (chamada de moeda-âncora), e vice-versa, a uma taxa de câmbio fixa e imutável.
O Currency Board é meramente uma agência de conversão, e funciona
literalmente como se fosse uma casa de câmbio.
Ele não faz política monetária, ele não regula bancos, ele não controla
juros, ele não cria moeda para comprar títulos do governo ou papeis de empresas
nacionais. Ele só cria cédulas e moedas
metálicas quando recebe em contrapartida a moeda-âncora.
Nesse arranjo, juros, base monetária e crédito variam estritamente ao sabor
do mercado. Não há nenhuma política
monetária. A política monetária fica no
piloto automático.
O princípio de operação de um Currency Board é bastante simples e, quando
obedecido ortodoxamente, muito eficaz. O Currency Board é o arranjo que
se implanta quando se quer adotar uma genuína "âncora cambial", o que
faz com que a moeda de um país se torne um mero substituto de uma moeda
estrangeira. A única função de um Currency Board é trocar moeda nacional
(que ele próprio emite) por moeda estrangeira, e vice versa, a uma taxa fixa.
Caso um país adote o dólar como moeda-âncora, o Currency Board tem a função
de trocar, sem custo e sem demora, a moeda nacional pelo dólar à taxa de câmbio
fixada.
Para funcionar assim, o Currency Board, por definição, tem de manter
reservas internacionais em um volume que seja igual ou maior do que a base
monetária da moeda nacional.
Sob este arranjo, quando um empreendedor exporta produtos, ele recebe como
pagamento uma moeda estrangeira — no caso, o dólar. Ato contínuo, o
Currency Board emite moeda nacional a uma taxa de câmbio fixa em relação ao
dólar (aumentando a base monetária) e envia o montante para o banco deste
exportador (e o banco, obviamente, acrescentará os dígitos eletrônicos na conta
desse exportador). Os dólares ficam com o Currency Board.
Inversamente, quando um empreendedor importa produtos, a moeda nacional é
trocada por dólares a uma taxa fixa no Currency Board: o Currency Board fica
com a moeda nacional (o banco envia as cédulas para o Currency Board,
contraindo a base monetária) e o Currency Board envia os dólares (na forma de dígitos
eletrônicos) para a conta do exportador estrangeiro.
Note que, sob um Currency Board, a variação da base monetária é
completamente passiva. Ela aumenta e diminui estritamente de acordo com a
entrada e saída de moeda estrangeira. O Currency Board não faz política
monetária. Ele não pode criar moeda nacional e injetá-la na economia em
troca de um ativo qualquer. Ele só pode emitir moeda nacional se receber um
valor equivalente em moeda estrangeira.
Sob este regime de câmbio estritamente fixo e de política monetária
totalmente passiva, quando há um superávit no balanço de pagamentos, a base
monetária se expande e os bancos ficam com mais reservas. Isso gera uma
redução nos juros e, consequentemente, uma expansão no crédito e uma elevação
nos preços. Ato contínuo, as importações aumentam e tende a haver uma
saída de capital especulativo do país (por causa da redução dos juros), o que
gera uma saída de reservas do país. Essa saída de reservas reduz a base
monetária (mas não necessariamente a oferta monetária, pois os bancos continuam
operando normalmente com reservas fracionárias). Os juros sobem, isso
atrai capital estrangeiro (e a economia se desacelera) e o balanço de
pagamentos volta ao equilíbrio.
Esse arranjo funciona exatamente como funcionaria um padrão-ouro, com uma
moeda estrangeira fazendo o papel do ouro. (Com o tempo, o balanço de
pagamentos tende ao equilíbrio, de forma que tais flutuações econômicas sejam
mínimas.)
Ou seja, em vez de haver um Banco Central manipulando juros e base monetária
com o intuito (impossível) de fazer uma "sintonia fina" na economia, em um arranjo
de Currency Board juros, base monetária e crédito são determinados pelas forças
de mercado.
A estrutura de um Currency Board
O Currency Board é um empreendimento de baixíssimo custo, o qual pode
(aliás, deve) ser feito pela iniciativa privada, sem nenhuma participação do
estado.
Por definição, um Currency Board investe apenas em ativos de alta liquidez
no país da moeda-âncora. Ele não adquire
nenhum ativo do país em que opera — pois, para fazer isso, ele teria de criar
reais para comprar ativos, mas ele só pode criar reais se receber em
contra-partida a moeda-âncora.
No balancete do Currency Board, os passivos são as cédulas e moedas metálicas que
ele emite, e os ativos são aplicações de alta liquidez feitas na moeda-âncora.
Por exemplo, um Currency Board que utiliza o dólar como moeda-âncora, teria em
seus ativos aplicações em título do governo americano ou empréstimos no mercado
interbancário americano ou mesmo no mercado interbancário de Londres. Um
Currency Board que utiliza o ouro como moeda-âncora teria em seus ativos empréstimos
no mercado de ouro de Londres e Zurique.
E os passivos seriam exclusivamente os reais que ele emitiria a cada
recebimento de dólar ou ouro. Seu custo real seria apenas o de trocar cédulas
gastas e rasgadas por cédulas novas.
Ou seja, é um empreendimento de baixíssimo custo e não retira um único
centavo dos pagadores de impostos.
Para garantir que o Currency Board seja imune aos governos dos países em
desenvolvimento, recomenda-se que ele tenha sua sede
na Suíça, estando sujeito às leis suíças e a uma auditoria suíça (com
filiais nas principais capitais do Brasil, é claro). O governo do país em
desenvolvimento nada poderia fazer contra ele (como, por exemplo, obrigá-lo a
criar moeda para financiar seus déficits). Caso fizesse algo, seria uma
agressão internacional, pois estaria atacando uma instituição suíça.
Implantando um Currency Board
Por si só, o processo de implantação de um Currency Board é extremamente
simples e rápido, podendo ser feito em um dia.
O único desafio é estipular qual será a taxa de câmbio. Para isso, deve-se adotar o seguinte
procedimento:
a) Anuncia-se para o mundo todo que na data X — por exemplo, dia 1 de dezembro
daqui a dois meses — o país adotará um Currency Board estritamente ortodoxo,
com suas leis estabelecidas na Suíça, e à taxa de câmbio vigente no dia último
dia útil anterior. (Foi exatamente assim que foi feito com o
Plano Real).
b) Após o anúncio, libera-se absolutamente todo o mercado de câmbio. Não deve
haver nenhuma restrição à entrada e à saída de capitais. Nenhum imposto, nenhum
IOF, nenhum tipo de controle de capital. O objetivo é ter um mercado cambial
plenamente livre, justamente para que ele informe o real valor da sua moeda.
c) Dois meses é tempo mais do que suficiente (na verdade, não precisa de
mais do que um) para se estabelecer uma "verdade cambial".
d) Caso o plano seja crível, e os investidores e especuladores estrangeiros
realmente acreditem na seriedade da proposta, a tendência é que o câmbio se
aprecie até a data da adoção do câmbio fixo (medida essa essencial para a atual
situação brasileira). Vale ressaltar que investidores e especuladores
estrangeiros ganham com
uma moeda que está se apreciando, de modo que eles próprios irão se
encarregar de fazer essa apreciação.
e) Ou seja, paradoxalmente, para se adotar um câmbio fixo, é necessário
deixá-lo flutuar livremente por algum tempo.
f) A taxa de câmbio é muito influenciada pela confiança no governo e nas
políticas futuras, e o simples anúncio da implantação de Currency Board sério e
ortodoxo já faria o câmbio se valorizar fortemente. Em meados de 1998, quando a Indonésia
vivenciava uma grande turbulência em decorrência de uma crise econômica e das
tentativas do governo americano de depor o ditador Suharto — o que fez com que a
taxa
de câmbio disparasse, colocando o país à
beira de uma hiperinflação —, um simples boato de que o país estava
estudando implantar um Currency Board fez com
que a rúpia se valorizasse 16% em um único dia.
g) Detalhes sobre o processo de dissolução do Banco Central, bem como o
cancelamento dos títulos do Tesouro que estão em sua posse (o que reduziria a
dívida pública em aproximadamente
R$ 1 trilhão) estão fora do escopo deste
artigo. Basta dizer que os atuais prédios
do Banco Central (sede em Brasília e suas sucursais nas outras nove capitais)
podem ser integralmente transferidos à empresa que gerenciará o Currency Board,
bem como a totalidade de suas reservas internacionais (as quais também podem ser convertidas gradualmente em ouro). As cédulas e moedas metálicas de reais
existentes se tornam um passivo do Currency Board. Pode-se também colocar na cláusula de contrato que os lucros do Currency Board obtidos com esse excesso de reservas internacionais — que superam em muito a base monetária — podem ser revertidos para o Tesouro com a condição de que este utilize o dinheiro para amortizar a dívida.
As liberdades permitidas por um
Currency Board
Imagine que a moeda-âncora seja o dólar.
Como funcionaria o Currency Board?
a) Um exportador vende soja e recebe US$ 1.000 — na prática, ele se torna
proprietário de uma conta no exterior no valor de US$ 1.000;
b) Ele agora tem três opções: 1) ele pode manter os US$ 1.000 nessa conta estrangeira
durante o período de tempo que ele quiser; 2) ele pode vender esses US$ 1.000
para qualquer banco; 3) ele pode entregar esses US$ 1.000 para o Currency Board
e receber reais em troca (o CB irá enviar as cédulas para o banco desse
exportador).
c) Caso opte pela opção 2, o banco ficará com os US$ 1.000, e criará reais
na conta do exportador. Ato contínuo, o
banco pode optar por ficar com os US$ 1.000 aplicados lá fora ou trocá-los por reais
no Currency Board, ganhando cédulas de reais.
d) Caso opte pela opção 3, o Currency Board simplesmente enviará as cédulas
de reais para o banco do exportador e este acrescentará dígitos eletrônicos na
conta bancária do exportador.
Agora imagine que a moeda-âncora seja o ouro. Nesse caso, vale enfatizar que a taxa de
câmbio fixa é aquela entre reais e ouro.
A taxa de câmbio entre real e dólar é flutuante e varia de acordo com o
câmbio entre dólar e ouro. Como
funcionaria? Da mesma maneira:
a') Um exportador vende soja e recebe US$ 1.000 (na prática, ele se torna proprietário
de uma conta no exterior no valor de US$ 1.000);
b') Ele agora tem três opções: 1) ele pode manter os US$ 1.000 nessa conta
durante o período de tempo que ele quiser; 2) ele pode vendê-los para qualquer
banco no Brasil em troca de reais à cotação do dia; 3) ele pode vendê-los por
ouro e então trocar por reais no Currency Board.
c') Caso opte pela opção 2, o banco ficará com os US$ 1.000, e criará reais
na conta do exportador à taxa de câmbio do dia.
Ato contínuo, o banco pode optar por ficar com os US$ 1.000 aplicados lá
fora ou trocá-los por ouro, revender o ouro ao Currency Board e ganhar reservas
em reais (a taxa de câmbio entre ouro e reais é fixa).
d') Caso opte pela opção 3, o Currency Board simplesmente enviará as cédulas
de reais para o banco do exportador e este acrescentará dígitos eletrônicos na
conta bancária do exportador.
Mas é no processo de importação que o Currency Board se revela
essencial. Com um Currency Board, nunca
há risco de não se poder importar.
No processo de importação tradicional, o importador tem de conseguir alguém
disposto a vender moeda estrangeira em troca da moeda nacional. Caso ninguém esteja disposto a isso (como está acontecendo na
Venezuela neste momento; e em menor grau na
Argentina), simplesmente não há importação.
Já com um Currency Board, a moeda nacional se torna automaticamente
conversível. Não há risco de ela não ser
aceita e de ela não conseguir comprar bens estrangeiros.
Com um Currency Board, basta o importador vender seus reais para o CB. Ele
conseguirá dólares (ou ouro) em troca e então poderá trocar esses dólares (ou
ouro) por qualquer moeda estrangeira que queira, podendo então fazer sua
importação.
As vantagens de um Currency Board
1) Uma das grandes atratividades de um Currency Board é que, como dito logo
acima, ele gera conversibilidade imediata para a moeda nacional.
Conversibilidade, em termos bem práticos, é quando um pipoqueiro tem
liberdade para trocar reais por dólares (ou outra moeda estrangeira) em
qualquer banco. Conversibilidade é
quando você tem liberdade para converter reais em libras e aplicar no mercado
interbancário de Londres. Atualmente,
apenas fundos de investimento que operam volumosas quantias têm essa autorização.
Aqui no Brasil, você não pode chegar a um banco ou a uma casa de câmbio e
trocar reais por moeda estrangeira na quantia que quiser. No máximo, você consegue trocar uns R$ 3.000
por alguns dólares em uma casa de câmbio, mas pagando o valor do dólar turismo,
IOF e outras taxas. Acima de determinado
valor, o governo exige que você se justifique, mostrando uma passagem
aérea. Isso não é conversibilidade.
Já sob um Currency Board, uma moeda estraçalhada se transforma em uma moeda
confiável, conversível e demandada. Do
dia para a noite. Por isso que os países da ex-URSS que adotaram esse sistema
(Estônia, Letônia, Lituânia e, em menor escala, Bulgária) prosperaram.
2) Um Currency Board gera estabilidade de longo prazo para os investimentos
(os investidores sabem exatamente qual será o valor da moeda nos anos
vindouros), acaba com as especulações e retira completamente das autoridades
políticas do país a capacidade de fazer política monetária — e,
consequentemente, de desvalorizar a moeda, o que afeta sensivelmente a taxa de
retorno dos investidores estrangeiros.
O Currency Board gera confiança imediata na moeda doméstica justamente
porque ele mantém reservas internacionais em um volume igual ou maior que a
base monetária da moeda nacional (no caso do Brasil, que tem US$ 370 bilhões em
reservas, há dólares de sobra). Em teoria, quando a operação do Currency
Board é obedecida ortodoxamente, ataques especulativos não geram resultados —
afinal, seria impossível exaurir as reservas internacionais (a base monetária
teria de ser toda mandada pra fora, algo por definição impossível).
Essa é a principal atratividade do sistema: ele gera segurança aos
investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da
moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem
repatriar seus lucros.
3) Além de estabilizar a moeda, um Currency Board impõe forçosamente uma
disciplina às políticas fiscais do governo.
Por exemplo, mesmo sendo um país notoriamente formado por políticos
corruptos, o governo da Bulgária, cujo Banco Central opera de acordo com
princípios de Currency Board, reduziu
sua dívida de 80% do PIB para apenas 30% do PIB. O governo da Bulgária é um dos menos
endividados da Europa.
Já o governo da Estônia, outro país que adotou um Currency Board (ancorado
ao marco alemão), é um dos menos endividados do mundo. Antes da crise financeira mundial, a dívida do
governo era de meros 4% do PIB.
E o motivo é óbvio: dado que um Currency Board não pode manipular juros e
base monetária, todo e qualquer déficit orçamentário do governo gera aumento de
juros: afinal, o governo tem de tomar empréstimos para se financiar, e dado que
não há um Banco Central para dar dinheiro ao bancos e aumentar as reservas bancárias,
os empréstimos contraídos pelo governo reduzem a oferta de crédito para o setor
privado, gerando um imediato aumento dos juros.
Consequentemente, o governo tem de manter seu orçamento equilibrado,
caso contrário asfixiará a economia.
4) Um Currency Board também impõe forçosamente uma disciplina ao sistema
bancário.
Havendo um Banco Central, que sempre atuou como o "emprestador de última
instância", este sempre estará pronto para socorrer todo e qualquer banco que
apresente dificuldades. A função
precípua de um Banco Central é, ao contrário do que dizem os manuais de
macroeconomia, proteger
o cartel dos bancos, evitando que eles passem por qualquer tipo de
dificuldade.
Já em um arranjo de Currency Board, se um banco emprestar muito e se tornar
muito alavancado, ele precisará de mais reservas bancárias. Como o Currency Board não pode simplesmente imprimir
dinheiro para capitalizar este banco, nem emprestar dinheiro para ele, e nem
comprar ativos dele (como faz o Banco Central), tal banco tem três opções:
a) Recorre ao mercado interbancário — onde os juros agora são livres e não são
manipulados por um Banco Central — para pedir reservas emprestadas para outro
banco;
b) Eleva os juros que ele paga para seus correntistas (como forma de atrair
novos depósitos, e também de dissuadir que seus correntistas saquem dinheiro);
c) Atrai dólares de investidores estrangeiros (os quais, estes sim, podem ser
levados ao Currency Board e convertidos em moeda nacional).
Agora, caso todos os bancos estejam alavancados — o que seria
raro em um cenário no qual não há um emprestador de última instância, mas que
pode acontecer —, sobram apenas as opções b e c.
Ou seja, em um cenário de Currency Board, os bancos têm necessariamente de ser
mais prudentes, e podem inclusive remunerar melhor seus correntistas, pois não
há tabelamento de juros (como há em um cenário com Banco Central).
O Currency Board, a hiperinflação e
os juros
Um Currency Board não apenas é o arranjo mais eficiente para se aniquilar
rapidamente uma hiperinflação e uma instabilidade cambial, como também é o
arranjo que realiza tal feito com o mínimo de efeitos colaterais: ele aniquila
uma hiperinflação e uma instabilidade sem deixar de herança juros
estratosféricos, como
ocorreu no Brasil (que adotou um sistema de câmbio atrelado, como será visto
mais abaixo). Um país que adota um Currency Board passa a operar com
juros semelhantes aos juros vigentes no país emissor da moeda utilizada como
âncora.
O melhor exemplo histórico deste fenômeno é fornecido pela Bulgária.
Em 1996, sucessivas trapalhadas econômicas fizeram com que o país decretasse
moratória em sua dívida externa. Em 1997, o país entrou em hiperinflação
e vários protestos nas ruas quase levaram o país a uma revolução social.
Em março de 1997, o país apresentava uma inflação anual de 2.019%. A
legislação para a transformação do Banco Central em um Currency Board foi então
apresentada. No dia 1º de julho de 1997,
o "Currency Board" búlgaro, que teria marcos alemães como reserva, foi criado.
Em um ano e meio, a inflação de preços acumulada em 12 meses caiu de 2.000%
para 1,4%.
Gráfico 1: taxa de inflação de preços na
Bulgária, janeiro de 1997 a dezembro de 1998
Ainda mais espantosa foi a queda dos juros do mercado interbancário
(equivalente à nossa SELIC): de 555% no auge da hiperinflação para apenas 3,56%
no mesmo mês em que o Currency Board passou a operar.

Gráfico 2: taxa de juros do mercado interbancário na Bulgária, janeiro de
1997 a janeiro de 1998.
A Bulgária foi apenas o mais extremo dos exemplos. Mas todos os outros
países que também adotaram versões próprias de Currency Board — Hong Kong (ancorado
ao dólar americano), Estônia, Letônia e Lituânia (ancorados ao marco alemão), e
a Argentina —
vivenciaram este mesmo fenômeno: queda abrupta na inflação de preços e,
principalmente, drástica redução nas taxas de juros, que caíram para apenas um
dígito.
E isso vale ser ressaltado: com a exceção de Hong Kong, todos os países
acima citados estavam na mais completa baderna. Não obstante, a transformação
de seu Banco Central em um "Currency Board" (coloco entre aspas porque Currency
Board genuíno não pode ser um Banco Central) logrou fazer com que suas
economias — até então completamente bagunçadas — se tornassem repentinamente
civilizadas, com inflação de preços e taxas de juros iguais às de países
desenvolvidos.
Alguns mitos sobre a Argentina
É comum os críticos atribuírem o colapso econômico argentino em 2002
(narrado em detalhes cronológicos neste artigo) ao pseudo-Currency
Board adotado pelo país no período de 1991 a 2001. Nada mais falso e mentiroso.
Em primeiro lugar, nunca houve um Currency Board genuíno na Argentina; o
Banco Central argentino, por estar com muitas reservas em dólares, passou a
operar como se fosse um Currency Board, mas
apenas no quesito câmbio fixo.
De início, os resultados foram impressionantes. A inflação de preços, que havia sido de
1.344% em 1990, caiu para 84%
em 1991, para 17,5%
em 1992, para 7,4%
em 1993, para 3,9%
em 1994, para 1,6%
em 1995 e, de 1996 até o final de 2001, a média
foi de praticamente 0%.
Para um país que havia se acostumado a ter uma inflação de preços média maior do que 250% de 1970
até 1990, e que havia vivenciado valores
de até 20.000% em 1990, a queda de preços foi extremamente rápida.
Já o governo conseguiu baixar o
gasto público de 35,6% do PIB em 1989 para 27% do PIB em 1995.
Igualmente, o déficit fiscal saiu de 7,6% do PIB em 1989 para 2,3% em 1990 e,
de 1991 até o final de 1994, ficou próximo de 0%.
As taxas de juros, que chegaram
a 1.500% em 1990, caíram para um intervalo
entre 5% e 9%.
O principal efeito desta política de abolição da inflação e de redução do
estado foi a perceptível queda nos
índices de pobreza. Em outubro de 1989, o percentual de pessoas
abaixo da linha de pobreza em Buenos Aires e adjacências era de 47,3%. Em
maio de 1994, tal valor já havia caído para 16,1%.
Porém, com o passar do tempo, sendo a Argentina a Argentina, o governo foi
adulterando o funcionamento do Currency Board — que nada mais era do que seu
próprio Banco Central atuando como Currency Board —, e isso realmente foi
fatal em termos de confiança dos investidores estrangeiros.
Por exemplo, o governo determinou, contrariamente a como seria um Currency
Board tradicional, que o Banco Central poderia comprar títulos do governo e
poderia fazer injeções de dinheiro no mercado interbancário. Isso vai
totalmente contra ao funcionamento de um Currency Board, que não apenas não
cria dinheiro para intervir no mercado interbancário, como também só pode ter
como ativos títulos denominados na moeda-âncora, e nunca na moeda nacional.
Depois — tudo isso está narrado em detalhes aqui
—, o governo alterou a âncora. Em vez
de apenas em dólar, a âncora passou a ser em relação a uma cesta formada por
dólar e euro, na proporção de 50% para cada. Neste arranjo, o peso
flutuaria dentro de uma banda definida pelo valor do dólar e do euro. Se
o euro estivesse valendo menos que o dólar (como estava na época), o peso se
desvalorizaria até ficar em paridade com o euro. Se o euro passasse a
valer mais que o dólar, o peso voltaria a ficar em paridade com o dólar.
A intenção deste arranjo era a de sempre: estimular as exportações.
Posteriormente, o governo adotou um regime de câmbio preferencial para as
exportações — o que na prática significava que agora o câmbio teria duas taxas
paralelas.
Todas essas medidas eram totalmente contrárias ao funcionamento de um regime
de conversibilidade e à ortodoxia de um Currency Board. As medidas
deixaram óbvio que o governo estava totalmente propenso a alterar o regime de
conversibilidade, algo que poderia ocorrer a qualquer momento.
A consequência foi uma feroz fuga de capitais e ataques especulativos, o que
levou o governo a abandonar de vez o regime de câmbio fixo e adotar o câmbio
flutuante.
Aí, sim, a tragédia se consumou. Ao
adotar o câmbio flutuante, o dólar
saltou de 1 para 4 pesos e a taxa de inflação de preços, que havia sido de
0% nos últimos 6 anos, disparou
para 40%. E, para completar, o
governo não só instituiu um corralito
que simplesmente proibiu as pessoas de utilizar o dinheiro que tinham nos bancos,
como ainda converteu compulsoriamente em pesos os dólares que os argentinos
tinham nos bancos a uma taxa de 1,40 peso por dólar, sendo que o dólar havia
ido para quase 4 pesos.
Não bastasse o dinheiro confiscado, a desvalorização cambial fez com que
tudo encarecesse, gerando a inflação de 40%. Todos os importados se
tornaram virtualmente inacessíveis. Pouco dinheiro e moeda sem nenhum
poder de compra.
Ainda mais impressionante foi a evolução — ou, mais apropriadamente, a
involução — da porcentagem
de pessoas abaixo da linha de pobreza na grande Buenos Aires. Uma
cifra que chegou a ser de 16,1% em maio de 1994 saltou para 54,3% em outubro de
2002, um valor ainda maior do que o do ano de 1989 (47,3%), quando o país vivia
sob hiperinflação. Em nível nacional, a pobreza chegou a 57,5% da
população, a indigência a 27,5% e o desemprego a 21,5%, todos níveis recordes
para o país.
Ou seja, não foi o regime de câmbio fixo o culpado pelo colapso econômico
argentino; foi o governo que destruiu o regime de conversibilidade e,
consequentemente, levou o país para o buraco.
O regime cambial argentino funcionou perfeitamente — até que o governo
argentino resolveu destruí-lo, o que, aí sim, gerou os problemas.
O governo destruiu a lei de conversibilidade justamente porque ela o amarrava,
disciplinando seus gastos e sua expansão. Como consequência, imediatamente após
a destruição da conversibilidade, a Argentina mergulhou no caos, na miséria e
na depressão.
Ou seja, um sistema foi implantado, funcionou como o esperado, o governo não
gostou (porque o sistema lhe amarrava), destruiu o sistema, o país mergulhou no
caos como consequência disso, e aí algumas pessoas dizem que a culpa de tudo é
do sistema que foi destruído. Beira o surreal.
O Currency Board no Brasil
O Brasil operou um
Currency Board no início de 1906 a 1920, durante um de nossos efêmeros
experimentos com o padrão-ouro.
As fotos abaixo mostram duas cédulas emitidas pela Caixa de Conversão que
operava no Brasil à época:

Na parte inferior da cédulo está escrito que "A Caixa de Conversão pagará ao
portador, à vista, no Rio de Janeiro, a importância deste bilhete em ouro."
Eis outra cédula:

Segundo Gustavo Franco,
que não é muito fã nem de
Currency Boards nem de
padrão-ouro:
De uma maneira geral, de 1906 até as
vésperas da Primeira Guerra, o país viveu em ritmo de abundância cambial e de
crédito. O programa de valorização e a Caixa de Conversão resultaram em maior
disponibilidade de divisas, inclusive para a importação de equipamentos pela
indústria, e os embarques de café aumentavam sem prejudicar os preços.
De 1911 a 1913, o valor dos embarques
de café foi o dobro do observado nos três anos anteriores e o triplo do valor
dos anos desfavoráveis, de 1902 e 1904. Até 1908, os preços do café
efetivamente não recuam, e a partir de 1909 aumentam significativamente.
[...]
A trajetória da economia nos anos que
se seguem é de vigorosa expansão.
Já uma fonte de esquerda também admite que foi justamente durante esse
período que o país vivenciou um grande
período de prosperidade:
No terreno econômico pode-se observar a
eclosão de um espírito que se não era novo, se mantivera na sombra ou em plano
secundário no Império: a ânsia de enriquecimento, de prosperidade material que
na Monarquia não era tido como um ideal legítimo e plenamente
reconhecido.
O novo regime fez despontar o homem de negócios, isto é, o indivíduo inteiramente
voltado para o objetivo de enriquecer. A transformação foi tão brusca que
classes e indivíduos dos mais representativos da Monarquia, antes ocupados
unicamente com política e funções similares, que no máximo se preocupavam com
suas propriedades rurais, se tornaram ativos especuladores e negocistas, com o
total consentimento de todos.
As atividades brasileiras foram estimuladas por finanças internacionais mais
multiformes e ativas que as inversões esporádicas de capital que antes se
fazia, mas que passaram a ter participação efetiva, constante e crescente em
diversos setores que ofereciam oportunidades de bons negócios. A produção
cafeeira, a grande atividade econômica do país, foi naturalmente atingida e em
torno dela se travou uma luta internacional, boa parte dos fundos necessários
ao estabelecimento das plantações e custeio da produção foi proveniente dos
bancos ingleses e franceses, ou então de casas exportadoras estrangeiras ou
financiadas com capitais estrangeiros.
O Brasil tornou-se neste momento um dos grandes produtores mundiais de
matérias-primas e gêneros tropicais e ao café foi acrescentada na lista dos
grandes produtos exportáveis, a borracha, que chegou quase a emparelhar-se a
ele, o cacau, o mate, o fumo. A produção de gêneros de consumo interno, no
entanto, diminuiu e se tornou cada vez mais insuficiente para as necessidades
do país obrigando a importar do estrangeiro a maior parte até dos mais vulgares
artigos de alimentação. As exportações maciças compensavam estas grandes e
indispensáveis importações levando os saldos comerciais a patamares
apreciáveis.
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e a abolição da Caixa de Conversão,
houve vários desarranjos, e a inflação de preços, até então imperceptível,
passou a crescer 8% ao ano. E então a
coisa degringolou.
Taxa
de câmbio atrelada
Uma taxa de câmbio atrelada é aquela que tenta ser fixa e flutuante ao mesmo
tempo — e obviamente não consegue ser nenhuma das duas.
Na prática, uma taxa de câmbio atrelada ocorre quando o Banco Central faz intervenções
diárias no mercado cambial para manter a moeda nacional flutuando dentre de
bandas arbitrariamente determinadas pelo próprio Banco Central.
Ao contrário do que é dito até hoje com muita frequência, o Plano Real nunca
se baseou um uma "âncora cambial" ou em um "câmbio
fixo". Desde que o real foi introduzido no dia 1º de julho de 1994,
o câmbio nunca foi fixo, nem sequer por um dia. O Brasil adotou o regime
de "câmbio atrelado ao dólar". Neste sistema, o Banco Central
faz intervenções diárias no mercado de câmbio (comprando ou vendendo dólares)
com o intuito de manter a cotação do dólar próxima a um valor por ele
estipulado.
Veja a evolução da taxa de câmbio de julho de 1994 até dezembro de 1998,
último mês antes da alteração do regime cambial.

Gráfico
3: evolução da taxa de câmbio durante a primeira fase do real, julho de 1994 a
dezembro de 1998
O principal problema em se utilizar um câmbio atrelado é que há uma
contradição entre a política monetária e a política cambial. Com uma taxa
de câmbio fixa — no caso, um Currency Board —, não há política monetária; as
variações no balanço de pagamento determinam as variações da base monetária da
economia. Com uma taxa de câmbio flutuante, não há política cambial; o
Banco Central se preocupa apenas em fazer política monetária.
Já com um câmbio atrelado, o Banco Central tenta fazer as duas coisas ao
mesmo tempo: determinar uma política monetária e uma política cambial, sendo
que ambas são mutuamente excludentes, impossíveis de serem efetuadas
simultaneamente.
Inevitavelmente, a política cambial acaba entrando em choque com a política
monetária, e os ataques especulativos são a consequência inevitável.
Quando se trabalha com um câmbio atrelado, o Banco Central tem de, diariamente,
fazer intervenções no mercado de câmbio para fazer com que o dólar fique
próximo à cotação determinada pelo Banco Central. Sendo assim, quando
ocorre uma entrada "excessiva" de dólares no país, há uma tendência
de apreciação do câmbio. Para evitar isso, o Banco Central compra estes
dólares criando reais, o que gera um aumento da base monetária. Ato
contínuo, para evitar este súbito aumento da base monetária, o Banco Central
vende títulos públicos para retirar da economia os reais que ele próprio acabou
de criar quando fez a conversão de dólares para real (esse processo é
tecnicamente chamado de "esterilização").
Já quando ocorre uma saída de dólares, o fenômeno inverso é observado: há
uma tendência de depreciação do câmbio devido à maior procura por
dólares. Para evitar isso, o Banco Central vende dólares para satisfazer
esse aumento da demanda por dólares. Essa venda de dólares pelo Banco
Central gera uma redução da base monetária. Para evitar essa redução,
algo que tende a gerar uma recessão, o Banco Central cria reais e compra
títulos públicos em posse dos bancos.
Ou seja, neste arranjo, ao contrário de um Currency Board, há um total
descasamento entre a variação da base monetária e a variação das reservas
internacionais. Quando há uma saída de
capitais, as reservas tendem a cair — pois o Banco Central faz de tudo para
segurar o câmbio — ao passo que a base monetária tende a subir (pois o Banco
Central também faz política monetária).
Sendo assim, para evitar que as reservas caiam muito além da base monetária,
o Banco Central tem de manter juros bastante altos para continuamente atrair
dólares
Observe que este comportamento ativo do Banco Central é totalmente distinto
do comportamento de um Currency Board, que permite que a base monetária varie
automaticamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos.
E é exatamente por isso que a opção por um regime de câmbio atrelado custa
caro: como o regime não inspira confiança nos investidores internacionais —
pois uma desvalorização pode ocorrer a qualquer momento — e dada a contínua
necessidade de estar sempre atraindo dólares para manter as reservas
internacionais em níveis minimamente confortáveis para manter o câmbio dentro
do intervalo especificado pelo Banco Central, as taxas de juros têm de
ser bastante elevadas.
Esse foi o modelo escolhido pelo Brasil, e esses foram os juros colhidos. O
gráfico abaixo mostra a evolução da SELIC de agosto de 1994 até o março de 1999.
Compare com os juros da Bulgária no gráfico 2, e com os da Argentina
aqui.

Gráfico 4: evolução dos juros do mercado interbancário brasileiro (taxa
SELIC), de agosto de 1994 a março de 1999.
O que vale ser ressaltado é que esta postura do Banco Central — de ficar
vendendo e comprando dólares para manter o câmbio dentro de um intervalo
especificado e de ficar arbitrando juros para atrair dólares para fechar o
balanço de pagamentos — gera um descasamento entre a quantidade de dólares nas
reservas internacionais e a base monetária do país: haverá um momento em que a
quantidade de dólares nas reservas internacionais será bem menor do que a base
monetária.
Quando isto ocorre, é apenas uma questão de tempo para que os especuladores
descubram esta contradição entre política cambial e política monetária e forcem
uma desvalorização da moeda — ou a imposição de controle de capitais.
Este tipo de ataque especulativo varreu a América Latina e o sudeste
asiático ao longo da década de 1990. A crise do México em 1994, a crise
asiática em 1997 e 1998 (Tailândia, Taiwan, Indonésia, Malásia, Filipinas —
apenas Hong Kong e seu Currency Board escaparam), o colapso do
rublo em 1998, a
crise do real em janeiro de 1999 e a crise da Argentina em dezembro de
2001 (cujo pseudo-Currency Board havia sido praticamente abolido em junho daquele ano) —
todas ocorreram de acordo com este mecanismo.
Com efeito, até mesmo o ataque perpetrado
por George Soros à libra esterlina em 1992 se deu por causa deste arranjo,
uma vez que o Banco Central da Inglaterra vinha mantendo a libra atrelada ao
marco alemão.
Por outro lado, no caso do arranjo brasileiro, houve um fator positivo: o
comportamento da inflação de preços. Com uma taxa de câmbio estável (em
uma época em que o dólar era mundialmente forte) e com o Banco Central tendo de
manter a expansão monetária contida e a taxa de juros alta para evitar uma
súbita desvalorização do real perante o dólar, a inflação de preços apresentou
um continuado declínio. Não tão súbito quanto o da Bulgária e da
Argentina, mas ainda assim substancial.

Gráfico 6: evolução da inflação de
preços acumulada em 12 meses durante a primeira fase do real, junho de 1995 a
dezembro de 1998
Conclusão
Um câmbio flutuante funciona muito bem para países
de economia desenvolvida e com grande estabilidade política. Mas seu histórico para países que têm de
lidar com governos bagunçados e imprevisíveis não é animador. Nesse arranjo, o câmbio não flutua; ele
afunda.
Um câmbio atrelado é utilizado quando o Banco
Central quer controlar a inflação majoritariamente por meio do câmbio, mas sem
abrir mão de fazer política monetária.
Tal arranjo é totalmente instável e sujeito a ataques
especulativos. Todos os países em
desenvolvimento que adotaram esse arranjo — embora tenham sido bem sucedidos
em controlar a inflação de preços — quedaram vítimas de ataques especulativos,
e o arranjo se esfacelou.
Já um câmbio fixo não funciona quando há um Banco
Central no comando e este está sujeito a pressões políticas, como ilustra bem o
caso argentino.
A opção mais vantajosa — e de longe — para um país
em desenvolvimento e com um governo bagunçado seria a adoção de um Currency
Board privado com sede na Suíça, seguindo os passos delineados no artigo. No mínimo, a moeda voltaria a inspirar
confiança, e a inflação de preços e as taxas de juros cairiam a níveis próximos
dos vigentes no país da moeda-âncora.
No caso específico do Brasil, a opção pelo Currency
Board é ainda mais premente.
Na nossa atual situação — de descontrole fiscal,
taxa de câmbio instável e inflação de preços perto de 10% —, novas elevações graduais
na taxa básica de juros não apenas não gerarão efeitos sobre a inflação de preços
(majoritariamente causada pela forte desvalorização cambial e pelos reajustes
de preços administrados pelo governo), como também podem até acabar estimulando
ainda mais a carestia.
O grande problema é que um aumento de juros tende a
gerar um ciclo vicioso: a subida dos juros encarece o serviço da dívida (como há
emissões quase que diárias de títulos, quanto maiores os juros, maior o serviço
da dívida a ser paga sobre esses novos títulos emitidos); consequentemente, o
Tesouro tem de se endividar (lançar mais títulos) apenas para pagar o serviço
da dívida; consequentemente, a dívida do governo aumenta; consequentemente, a
relação dívida/PIB, já alta, se deteriora ainda mais; consequentemente, o
risco-país aumenta e o grau de investimento da Moody's e da Fitch ficam ainda mais em
risco. E tudo isso gera ainda mais desvalorização cambial, o que
pressiona ainda mais inflação de preços.
Conclusão: elevar juros tendo uma política fiscal
frouxa e trabalhando com câmbio flutuante é quase um suicídio. Daí a premência
de um Currency Board. Um Currency Board
resolve três problemas de uma só vez: câmbio, juros e inflação de preços. E, de quebra, ainda pode aumentar a confiança
dos investidores estrangeiros, estimulando-os a trazer para cá o seu capital
produtivo, algo de que o país tão desesperadoramente precisa.
Liberar a circulação de
moedas estrangeiras em paralelo à moeda nacional — que agora estaria
ancorada ao dólar ou ao ouro por meio do Currency Board — melhoraria ainda
mais a situação. Essa liberação de
moedas estrangeiras facilitaria enormemente os investimentos estrangeiros.
Não há recuperação e crescimento econômico sem
investimentos. E como no Brasil o investimento
está em queda livre e as empresas estão ou arredias ou descapitalizadas,
por causa do cenário de destruição criado pelo governo, a salvação terá de vir
do investimento estrangeiro. E isso
passa pelo regime cambial.