quarta-feira, 13 jan 2016
Isso compra apenas 80 dólares
A Venezuela está passando pela pior crise econômica de
sua história, com uma lista aparentemente infindável de problemas, e lidando
com todos os tipos de desabastecimentos.
As principais são as severas escassezes de todos os tipos de bens de
primeira necessidade.
[N. do E.: A lista de itens básicos ausente das
prateleiras dos supermercados, que
começou com papel higiênico — o que levou o governo a ocupar
uma fábrica de papel higiênico, com o uso maciço de força militar, para
garantir uma "distribuição justa" dos estoques disponíveis —, foi
gradualmente se expandindo para abranger
também absorventes, xampu, farinha, açúcar, detergente, óleo de cozinhar,
pilhas, baterias e caixões. Um
venezuelano gasta, em média, 8 horas por semana na fila
de um supermercado para conseguir comprar itens essenciais.
O suprimento de remédios está
acabando. Salas de cirurgia estão fechadas há meses, não obstante centenas
de pacientes estejam na fila de espera para cirurgias. Algumas clínicas
privadas são capazes de manter a sala de cirurgias funcionando porque conseguem
contrabandear dos EUA, sem que o governo venezuelano possa interceptar,
remédios essenciais.
Com a falta de remédios, os venezuelanos estão
tendo, humilhantemente, de recorrer a medicamentos
para cachorro. Como consequência, os próprios cachorros também começaram a sofrer, já
que esse aumento da demanda por medicamentos veterinários está diminuindo a
oferta disponível de remédios para serem usados nos próprios cachorros.
Está havendo também uma escassez de
contraceptivos, o que vem aumentando a
taxa de gravidezes indesejadas no país. Para piorar, também
há escassez
de fraldas e leite, itens essenciais para os recém-nascidos.
À medida que a moeda foi se depreciando,
a carestia foi se acelerando de maneira galopante. Consequentemente, em
2011, o governo decretou um abrangente controle de preços por meio da Lei
de Custos e Preços Justos.]
Os economistas vêm utilizando esses casos de
desabastecimento como exemplos clássicos que ilustram os efeitos perniciosos
dos controles de preços.
Poucas pessoas, no entanto, sabem que vários dos
problemas do país são causados por um complexo arranjo monetário que utiliza, simultaneamente,
quatro taxas de câmbio distintas. O resultado
disso é que a Venezuela pode ser extremamente barata ou intoleravelmente cara, dependendo
da taxa de câmbio utilizada. Por exemplo, caso seja utilizado o valor
oficial do dólar (decretado pelo governo), uma batata
frita no Mc Donald's custaria inacreditáveis US$ 133.
O caos monetário começou em 2003, quando o já falecido
presidente Hugo Chávez impôs um controle de capitais para estancar uma fuga de
capital desencadeada por uma greve geral no setor petrolífero. À época, o dólar americano custava 1,6
bolívar venezuelano. Hoje, pouco mais de
dez anos depois, esse mesmo dólar pode comprar 200 bolívares, uma desvalorização
de mais de 99%! Obviamente, esse valor
ainda é o do mercado oficial (ou seja, o mercado regulado pelo governo). No
mercado negro, a taxa de câmbio está, atualmente, próxima
dos 900 bolívares por dólar. Isso,
obviamente, se você conseguir encontrar alguém vendendo dólares — ou, ainda
mais difícil, alguém querendo abrir mão de dólares para comprar a aviltada
moeda venezuelana.
Essa desvalorização é, por si só, um grande
problema, tanto para os consumidores — que têm de lidar com a alta taxa de inflação
de preços (estimada em
800%) gerada pela desvalorização cambial — quanto para os empreendedores,
que têm de tomar decisões de investimento de longo prazo utilizando uma unidade
monetária que está continuamente sendo desvalorizada.
No entanto, é a volatilidade da taxa de câmbio — gerada
pelas contínuas alterações feitas pelo governo tanto nas taxas oficiais quanto
nas restrições cambiais — que está se revelando o problema mais complicado.
Um
extremamente complexo sistema de taxas de câmbio
Atualmente, há quatro taxas de câmbio na Venezuela.
Primeiro, há a taxa oficial, chamada de CENCOEX, a
qual estipula que um dólar americano vale 6,30 bolívares. Ela é utilizada apenas para a importação de
alimentos e de remédios.
Há mais duas taxas, a SICAD 1 (12 bolívares por dólar)
e a SICAD 2 (50 bolívares por dólar). Estas
são atribuídas a empresas que importam todos os outros tipos de bens. Porém, como o dólar se tornou escasso no país
e as
reservas do Banco Central venezuelano estão em queda livre, cupons de
racionamento são leiloados esporadicamente — semanalmente no caso do SICAD 1 e
diariamente no caso do SICAD 2.
No entanto, devido à crise econômica, desde 18 de agosto
de 2015 nenhum dólar foi alocado para essas transações cambiais e, sendo assim,
não houve mais nenhum leilão desde então.
Esse mercado está suspenso. Em novembro
de 2015 (últimos dados divulgados), o Banco Central da Venezuela tinha
apenas US$ 16 bilhões em reservas internacionais, o menor nível em 10 anos,
volume esse que irá zerar em quatro anos caso a atual taxa de esgotamento se
mantenha.
A última e mais recentemente criada taxa de câmbio é
a SIMADI, atualmente em 200 bolívares por dólar. Essa taxa é reservada para a compra e venda
de dólares por indivíduos e empresas.
Há vários problemas resultantes desse complexo
sistema. O mais óbvio é a quase
impossibilidade de se realmente conseguir dólares a qualquer uma dessas taxas
devido ao complicado processo burocrático que um venezuelano tem de enfrentar apenas
para solicitar dólares. Por causa dessas
dificuldades, os venezuelanos têm de recorrer ao mercado negro para satisfazer
suas demandas por moeda estrangeira.
Consequentemente, os venezuelanos naturalmente se
tornaram dependentes da taxa utilizada no mercado negro, a qual, embora seja
muito menos vantajosa (900 bolívares por dólar contra de 6,3 a 200 bolívares por
dólar no mercado "oficial"), ao menos oferece a possibilidade de realmente
conseguir a tão demandada e necessitada moeda estrangeira.
A
regulação pavimenta o caminho para a corrupção
A corrupção, que é uma característica inerente ao
regime político venezuelano, é outro problema gerado por esse complexo sistema monetário. Funcionários do governo e outras pessoas
ligadas ao governo se aproveitam de sua posição de poder e influência para se
locupletar com os dólares que deveriam ser destinados para as instituições
mais produtivas e importantes. Consequentemente,
indivíduos com amigos no alto escalão conseguem dólares americanos por meio dos
canais legais e, em seguida, os revendem no mercado negro a preços muito mais
altos.
Essa atividade se tornou uma das únicas maneiras de
se conseguir altas taxas de lucro na economia venezuelana, e só é acessível para
os poucos privilegiados que possuem ligações com o alto escalão do regime.
Esse ponto é especialmente importante para se
entender todas as escassezes que afligem a economia venezuelana. Essa apropriação indevida de moeda
estrangeira que seria utilizada para importar produtos básicos — ou seja, os dólares
que deveriam estar indo para as taxas CENCOEX e SICAD — faz com que os dólares
não cheguem aos empreendedores legítimos que querem apenas importar seus bens,
intensificado o desabastecimento. E por
causa da contínua e intensa desvalorização do bolívar, os dólares são "entesourados"
(ou seja, guardados embaixo do colchão), pois são a única forma de poupança viável. Isso, por sua vez, acentua a escassez de
divisas para as importações.
Consequentemente, não há dólares para se importar
bens de primeira necessidade, gerando todas aquelas escassezes listadas no
início do artigo. Para piorar, essas
escassezes geradas pela falta de dólares são acentuadas pelos outros
desabastecimentos causados pelo abrangente
controle de preços decretado pelo governo.
Quem
mais sofre são os pobres
Esses problemas afetam diretamente todos os cidadãos
venezuelanos, mas são particularmente mais perniciosos para os indivíduos de
baixa renda.
Vários fornecedores só aceitam abrir mão dos poucos
bens que possuem se forem pagos em dólar; raramente aceitam o depreciado bolívar. Consequentemente, os cambistas normalmente se
aglomeram nas portas dos supermercados para saciar essa demanda. No entanto, somente as pessoas de alta renda
conseguem pagar as taxas de câmbio do mercado negro. O resultado é que o segmento de baixa da
sociedade venezuelana, aqueles a quem os controles de preço e de câmbio supostamente
deveriam ajudar, não conseguem obter o dinheiro necessário para comprar bens e serviços
básicos (e os ricos só conseguem a um preço bem alto).
Embora o fato de a grande maioria dos comerciantes exigir
pagamento apenas em dólares seja um atitude que prejudique injustamente os mais
pobres, trata-se de uma reação completamente racional. Se os empreendimentos continuassem vendendo sua
escassa oferta de bens em troca de bolívares depreciados — os quais só poderão
ser trocados por dólares à taxa de câmbio oficial, e ainda assim sem garantia
de que conseguirão efetuar o câmbio —, as prateleiras dos supermercados e
mercearias iriam se esvaziar ainda mais rapidamente.
O complexo sistema cambial vigente na Venezuela não apenas
é um bom exemplo das consequências da intervenção estatal na economia, como também
explica por que um regime político corrupto consegue manter seu poder por tanto
tempo não obstante a década de penúrias impostas ao povo. O uso de várias taxas de câmbio possibilitou
aos governos de Chávez e Maduro, e a seus aliados que lhes dão sustentação, obterem
facilmente enormes lucros ao se apropriarem indevidamente dos dólares que
deveriam ser direcionados para empreendedores e indivíduos e os revenderem no
mercado negro.
Ao fazerem isso, eles destruíram completamente o bolívar
e empobreceram aquele que já foi um dos mais ricos países do mundo.
Emiliana
DiSilvestro, que estuda comércio estrangeiro em
Madri, no campus da Universidade Saint Louis, participou deste artigo.