Segundo Marx, o que determina a conduta dos
indivíduos é a consciência dos interesses de sua classe. Os indivíduos dariam aos interesses de sua
classe preferência em relação aos seus próprios interesses.
Como exatamente o indivíduo saberia quais são os genuínos
interesses de sua classe é algo que não foi respondido. O próprio Marx não pôde deixar de admitir que
existe um conflito entre os interesses de um indivíduo e os interesses da
classe a que ele pertence.
No Manifesto
Comunista ele diz que: "Essa organização dos proletários em classe e,
portanto, em um partido político é incessantemente abalada pela competição
entre os próprios trabalhadores."
Marx apenas faz uma distinção entre aqueles
proletários que possuem consciência de classe — isto é, que colocam as
preocupações de sua classe acima de suas preocupações individuais — e aqueles
que não possuem. Ele considera ser um
dos objetivos de um partido socialista despertar a consciência de classe
daqueles proletários que não possuem espontaneamente uma consciência de classe.
A consciência de classe, segundo Marx, produz
ideologias de classe.
A ideologia de classe fornece a uma determinada
classe uma interpretação da realidade e, ao mesmo tempo, ensina a seus membros
como agir de modo a beneficiar esta classe. O conteúdo da ideologia de classe é
determinado exclusivamente pelo estágio histórico do desenvolvimento das forças
materiais produtivas e pelo papel que a classe em questão desempenha neste
estágio da história.
Para o marxismo, a ideologia não é uma invenção arbitrária do cérebro;
ela é o reflexo da condição material da classe do pensador, a qual já está
enraizada em sua mente. Não é, portanto, um fenômeno individual que depende dos
caprichos do pensador. Ela é imposta à mente pela realidade, isto é, pela
situação de classe do homem que pensa.
Por consequência, a consciência de classe de um indivíduo
é idêntica à de todos os outros membros da mesma classe. Obviamente, nem todo
companheiro de classe é um escritor e publica aquilo que pensa. Mas todos os
escritores que pertencem à mesma classe pensam as mesmas ideias e todos os
outros membros da classe as aprovam.
Não há espaço no marxismo para a presunção de que os
diversos membros de uma mesma classe possam ter sérias discordâncias
ideológicas; para todos os membros de uma mesma classe existe apenas uma
ideologia.
Se um homem exprimir opiniões discordantes com a
ideologia de uma classe específica, isto significa que ele não pertence a esta
determinada classe. Não é necessário refutar suas ideias por meio do raciocínio
discursivo; basta desmascarar sua origem e sua afiliação de classe. Isto
resolve a questão.
No entanto, caso um indivíduo de inquestionáveis origens
proletárias e de impecáveis credenciais trabalhistas porventura se distancie do
credo marxista correto, ele é um traidor. É impossível presumir que ele seja
sincero em sua rejeição ao marxismo. Como proletário, ele deve necessariamente
pensar como um proletário. Uma voz interna lhe diz, de maneira inequívoca, qual
é a ideologia proletária correta. Ele está sendo desonesto se ignorar esta voz
e professar publicamente opiniões heterodoxas. Ele estará sendo um tratante, um
Judas, uma serpente na relva. No combate a um traidor como esse, tudo é
permitido.
Marx
e Engels, dois
homens de inquestionável origem burguesa, criaram a ideologia de classe da
classe proletária. Nunca se aventuraram a discutir sua doutrina com dissidentes,
como fazem, por exemplo, os cientistas, que discutem os prós e contras das
doutrinas de Lamarck, Darwin, Mendel e Weismann. Em
seu ponto de vista, seus adversários só poderiam ser idiotas burgueses ou
traidores proletários. Assim que um socialista se afastasse um centímetro
sequer do credo ortodoxo, Marx e Engels o atacavam furiosamente,
ridicularizando-o e insultando-o, representando-o como um patife e um monstro
perverso e corrupto.
Depois da morte de Engels, o cargo de árbitro
supremo do que é e o que não é o marxismo correto passou a ser ocupado por Karl
Kautsky. Em 1917, ele passou para as mãos de Lenin e se tornou uma função do
chefe do governo soviético.
Ao passo que Marx, Engels e Kautsky tinham de se
contentar em assassinar a reputação de seus oponentes, Lenin e Stalin podiam agora
assassiná-los fisicamente. Passo a passo, eles excomungaram todos aqueles que
outrora haviam sido considerados por todos os marxistas — mesmo Lenin e Stalin
— os grandes defensores da causa proletária: Kautsky, Max Adler, Otto Bauer,
Plechanoff, Bukharin, Trotsky, Riasanov, Radek, Sinoviev e muitos outros.
Aqueles que os "verdadeiros marxistas" conseguiram capturar foram presos,
torturados e, por fim, assassinados. Apenas aqueles que tiveram a felicidade de
morar em países dominados por "reacionários plutodemocráticos"
sobreviveram e puderam morrer em suas camas.
"Ditadura democrática"
Do ponto de vista marxista, há bons argumentos a favor
de uma decisão pela maioria. Se surgir uma dúvida a respeito do conteúdo
correto da ideologia proletária, as ideias sustentadas pela maioria dos
proletários são consideradas as que melhor refletem a ideologia proletária
genuína. Como o marxismo pressupõe que a imensa maioria das pessoas seja
formada por proletários, então não haveria, em tese, qualquer dificuldade para
os marxistas em atribuir as decisões finais em conflitos de opiniões a uma votação
popular.
No entanto, embora recusar-se a fazê-lo equivaleria a destruir por
completo a doutrina de ideologia, nem Marx nem seus sucessores estiveram
preparados para submeter suas opiniões ao voto da maioria. Afinal, mesmo se, pelo bem da argumentação,
admitíssemos que os trabalhadores são induzidos à rebelião, por que seu motim
revolucionário almejaria apenas o estabelecimento do socialismo?
A
verdade é que o conceito de socialismo não se originou da "mente
proletária". Nenhum proletário ou filho de proletário contribuiu com
qualquer ideia substantiva para a ideologia socialista.
Os pais intelectuais do socialismo eram membros da intelligentsia,
descendentes da "burguesia". O próprio Marx era filho de um advogado
abastado. Ele estudou no Gymnasium alemão,
a escola que todos os marxistas e outros socialistas denunciavam como sendo o
principal braço do sistema burguês de educação, e sua família o sustentou ao
longo de todos os anos de seus estudos; ele não teve de trabalhar para chegar à
universidade. Ele se casou com a filha de um membro da nobreza alemã; seu
cunhado era Ministro do Interior prussiano e, como tal, líder da polícia da
Prússia. Em sua casa trabalhava uma governanta, Helene Demuth, que nunca
se casou e que seguia a família Marx em todas as suas trocas de residência, o
modelo perfeito da empregada doméstica explorada cuja frustração e atrofiada
vida sexual já foram repetidamente retratadas nas ficções realistas
"sociais" da Alemanha.
Friedrich Engels era filho de um
industrial rico, e ele próprio era um industrial; ele se recusou a se casar com
sua amante Mary porque ela era inculta e de origem "baixa"[1] e ele
apreciava as diversões propiciadas pela alta classe britânica, como, por
exemplo, caçar a cavalo junto com cães de caça.
Os trabalhadores nunca foram entusiastas do
socialismo. Eles apoiavam o movimento sindical cuja luta por maiores
salários Marx desprezava como inútil.[2] Eles
pediam por todas aquelas medidas de interferência do governo nas empresas,
medidas essas que Marx rotulava como tolices pequeno-burguesas. Eles se
opunham ao progresso tecnológico — nos primórdios, destruindo as novas
máquinas; mais tarde, utilizando os sindicatos para, por meio da coerção,
forçar o empregador a contratar mais operários do que o necessário.
O sindicalismo — apropriação das empresas pelos
trabalhadores que nela trabalham — é um programa que os trabalhadores
desenvolveram espontaneamente. Já o socialismo foi trazido para as massas
por intelectuais de procedência burguesa. Jantando e tomando vinhos
conjuntamente nas luxuosas mansões londrinas e nas mansões rurais da
"sociedade" vitoriana, damas e cavalheiros com trajes elegantes
planejavam esquemas para converter o proletariado britânico ao credo
socialista.
Ao longo de sua carreira, Marx jamais confiou no
povo e jamais acreditou que este pudesse espontaneamente exigir alterações no "arranjo
burguês" e implantar o arranjo que Marx defendia. Ele foi um grande entusiasta
da revolução
ocorrida em Paris, em junho de 1848, na qual uma pequena minoria de
parisienses se rebelou contra o governo, que tinha o apoio de um parlamento
eleito por meio do sufrágio universal masculino.
A Comuna de Paris, da
primavera de 1871, na qual os socialistas parisienses novamente combateram o
regime devidamente estabelecido pela imensa maioria dos representantes do povo
francês, foi ainda mais de seu agrado. Nela, ele viu realizado o seu ideal de
ditadura do proletariado, a ditadura de um grupo de líderes autonomeados.
Tentou então convencer os partidos marxistas de todos os países da Europa
Central e Ocidental a depositar suas esperanças nos métodos revolucionários.
Neste ponto, os comunistas russos foram seus discípulos fiéis.
Menos de 25% dos integrantes do parlamento russo,
eleito em 1917 sob os auspícios do governo de Lenin — apesar da violência
imposta sobre os eleitores pelo partido governista —, eram comunistas. Três
quartos da população havia votado contra os comunistas. Lenin, no entanto, dissolveu à força o
parlamento e estabeleceu firmemente o governo ditatorial de uma minoria. O
chefe de estado soviético tornou-se o sumo pontífice da seita marxista; seu
título para este cargo derivou a partir da derrota de seus rivais numa
sangrenta guerra civil.
Como os marxistas não admitem que diferenças de
opinião possam ser resolvidas por meio da discussão e da persuasão, nenhuma
solução pode existir além da guerra civil. O traço característico da "boa
ideologia" — isto é, da ideologia adequada aos genuínos interesses de classe dos proletários — é o fato de que seus defensores foram bem-sucedidos em
subjugar e liquidar seus oponentes.
[1] Após
a morte de Mary, Engels pegou a irmã dela, Lizzy, para ser sua amante.
Ele se casou com ela em seu leito de morte "para poder lhe propiciar seu
último prazer". Gustav Mayer, Frederick Engels (The
Hague, Martinus Nijhoff, 1934), 2, 329.
[2] Marx, Value, Price
and Profit, ed. E. Marx Aveling (Chicago, Charles H. Kerr & Co. Cooperative),
pp. 125-6.
O artigo acima contém excertos do livro Teoria e História, de 1957.