A história da ética tem sido uma história de
exploração. Os indivíduos, desde sempre, foram separados em dois grupos: aqueles
que devem
sempre obedecer às regras
"éticas", e aqueles que estão isentos de obedecê-las.
O povo deve cumprir a ética e a moral; os
governantes, não.
A ética que eu e você devemos obedecer corretamente
advoga que não se pode roubar a propriedade de terceiros, não se pode matar
inocentes e não se pode obrigar alguém a fazer algo à força.
No entanto, tais regras éticas não valem para o
governo. O governo é a entidade que pode
legalmente fazer tudo aquilo que cidadãos privados são corretamente proibidos
de fazer.
Aquilo que para nós é sequestro, para o governo é "alistamento
militar obrigatório". Aquilo que para nós é roubo, para o governo é
"tributação". Aquilo que para nós é privilégio para grandes
empresas, para o governo é "política industrial". Aquilo que
para nós é uma clara destruição do poder de compra da moeda, para o estado é
"política monetária". Aquilo que para nós é uma clara restrição
à liberdade de empreendimento, para o estado "regulamentação". Aquilo
que para nós é parasitismo, para o estado é "política de bem-estar
social". Aquilo que para nós é uma prisão injusta (ser preso por ter
ingerido ou vendido uma substância não-aprovada), para o governo é "guerra contra as
drogas".
Há trezentos anos, boa parte da população nas
Américas era formada por escravos. Cem por cento dos frutos do trabalho
dos escravos eram de propriedade de seus donos. Hoje, legalmente não
somos mais escravos. No entanto, 40% do resultado do seu esforço e talento
não são seus, mas de seus senhores: os governantes e seus amigos. Isso é
o que o estado confisca diretamente da sua fonte de renda e o que você paga,
queira ou não, embutido nos preços dos produtos e também na forma de taxas e "contribuições".
Ou seja, podemos não ser mais escravos, mas ainda
somos servos.
Antes, caso os escravos se recusassem a trabalhar,
seus donos lhes ameaçavam punir com a chibata. Hoje, se você oferecer resistência
a entregar ao governo quase a metade da sua renda, será ameaçado com
notificações e processos, podendo ter seus ativos confiscados e sua conta
bancária congelada, até finalmente acabar sendo preso. E, se você oferecer resistência a essa prisão,
poderá ser assassinado.
Em todos os casos, a violência é do mesmo
tipo. Similarmente a um ladrão de rua, a arma nem precisa ser mostrada.
A simples ameaça basta. Mas a arma está lá, no bolso do ladrão, e no
paletó do governante.
Ainda que sancionado pela maioria, roubo ou
escravidão continuam sendo crimes. Este roubo do governo, pelo governo e
para o governo (e seus amigos) é estranhamente aceito, e racionalizado pela
maioria. E por que a maioria concorda com esse roubo?
É importante analisar o conceito mais deturpado hoje
em dia: o conceito de
democracia.
Existe certo desrespeito à semântica quando nos
referimos à "democracia". A maior parte de nós usa a expressão
"democracia" quando na verdade quer se referir a outros conceitos,
como "estado de direito", "igualdade perante a lei,
"liberdade, "direitos individuais", "instituições
fortes", "justiça", e outros conceitos que possuem palavras
específicas para designá-los.
Democracia é formalmente o regime de voto da
maioria, ou seja, a maioria entre os votantes decide o que o governo deve fazer.
Ou, como se costuma dizer, a tirania da maioria — que, na prática, é a tirania
da minoria: a minoria de políticos que mandam em nossas vidas e em nossa
propriedade.
Essa mistura de significados tem consequências
práticas, não apenas de semântica, mas especialmente no mundo real.
Quando se diz que no Brasil há
"democracia", é comum crer que nós sejamos "governantes de nós
mesmos". A verdade, no entanto, é
que continua havendo soberanos de um lado e cidadãos-súditos de outro. O
conceito de democracia é usado para ofuscar e confundir, de forma a nos fazer
acreditar que há igualdade entre todos.
Mas ainda que sejamos ofuscados por este jogo de
espelhos, por que sofremos tanto nas mãos desses soberanos-governantes, uma vez
que somos muitos e eles são poucos? Por que nos encantamos com a crença
de que nossos soberanos-governantes são justos e bondosos, quando temos
evidências em contrário todos os dias, e em todos os lugares? Por que
permitimos tantos abusos à liberdade e propriedade se os poderes que eles
possuem são somente aqueles que nós lhes outorgamos? Por que deixamos que
nos tratem como gado?
Dado que nossos soberanos-governantes são muito
menos numerosos que nós, fica evidente que, para reconquistar nossos
direitos, não é necessário pegar em armas; não é necessário fazer passeatas, e
tampouco é necessário votar. Pois em um duelo frente-a-frente de muitos
contra poucos, no qual os numerosos lutam pelo grande prêmio que é a liberdade,
ao passo que os poucos lutam apenas pela possibilidade de escravizar o inimigo,
é provável que nem sejam necessários disparos para que os numerosos sejam
declarados vencedores.
Chegamos, portanto, à paradoxal conclusão de que
somente não retomamos nossos direitos porque não queremos; porque apoiamos,
implícita ou explicitamente, a tirania dos soberanos-governantes.
O famoso filme Matrix ilustra o que quero
dizer. Em um futuro distópico, os seres humanos são escravizados por
máquinas e, embora permaneçam em sono hipnótico, suprindo energia para as
máquinas, são levados a crer que levam uma vida normal. A ilusão é
virtualmente perfeita — os indivíduos realmente creem que estão andando livres
pelas ruas, ou comendo um
delicioso bife — mas é apenas uma realidade virtual, chamada de Matrix,
que as máquinas produzem por estímulos nos cérebros dos seres humanos. As
máquinas, que foram criadas para servir, se voltaram contra os seres humanos e
os escravizaram.
No filme, alguns indivíduos — aqueles que tomam a pílula
vermelha — conseguem ver a realidade como ela é: que a Matrix é de fato
uma prisão, fruto de uma ilusão bem planejada, e que seus corpos estão em
cativeiro sem que se dêem conta. Ainda assim, mesmo aqueles que tomaram a
pílula vermelha não escapam das amarras da realidade virtual. Alguns não
querem refletir sobre o que se passa; outros sabem que vivem uma ilusão, e
racionalizam sua situação — julgam que é difícil mudar as coisas, que sempre
foi assim, e preferem viver no conforto da escravidão.
Mas, como dito, não é necessário tirar nada dos
tiranos — é apenas necessário deixar de dar a eles aquilo que é nosso.
No filme, isso é equivalente a querer acordar de seu sono hipnótico, romper os
fios elétricos que alimentam o cérebro com a Matrix, e sair caminhando, livre.
Fora das telas de Hollywood, é mais simples do que
se imagina acabar com a servidão. Basta ter a consciência de que ninguém
pode mandar em sua vida, sob desculpa ou argumento algum, sem seu
consentimento; com ou sem jogo de espelhos. Basta reconhecer que ninguém
sabe melhor que você o que é melhor para você próprio. Basta reconhecer
que não há autoridade alguma acima de você — que você não tem nenhum dono, e
que, portanto, não deve pagar tributos para obter sua tranquilidade ou
liberdade. E quando houver esse reconhecimento, você dirá a si mesmo: eu
sou soberano!
Em Matrix,
esse momento de soberania se
dá em uma cena, na realidade virtual, na qual inúmeras armas são disparadas
contra Neo. Ele olha para as armas e percebe que a violência explicitada
não tem eficácia sem seu consentimento — as balas se dissolvem em zeros e
uns. Neo segura no ar uma das balas virtuais e todo o aparato do inimigo
tomba impotente.
A tirania cessa quando deixamos de apoiar
voluntariamente nossa própria servidão.
Não é necessário mudar o mundo ou criar um país de
soberanos individuais. O que importa — e o que se pode fazer agora — é:
viver como soberano, estando próximo daqueles que o respeitam como tal, e se
afastando dos manipuladores e daqueles que querem parasitar na sua energia,
talento e virtudes. A liberdade pode, em grande medida, ser alcançada em
nossas vidas, ainda que não consigamos extinguir a servidão estatal.
Se você se mostrar soberano em seus
relacionamentos pessoais, estará contribuindo para sua própria felicidade e
também para a transmissão adiante do conceito de soberania
individual. Essa cadeia do bem é a única que poderá abolir a cadeia
do mal.
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O
texto acima foi uma adaptação deste discurso proferido durante o XXIII Fórum da
Liberdade, realizado em Porto Alegre nos dias 12 e 13 de abril de 2010.
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O que os amantes da liberdade devem fazer