terça-feira, 31 0aio 2016
Mesmo quem aceita uma boa dose de mercado nas
atividades humanas tende a torcer o nariz quando se trata de cultura.
Especialmente os artistas.
Lembro de ver Vaclav Havel — o escritor,
intelectual e dramaturgo que se tornou o primeiro presidente Tchecoslováquia
pós-comunismo — em um debate com o Bill Clinton fazer os elogios de costume ao
mercado, para depois explicar que, em se tratando de arte, a mão invisível não
bastava. Era necessário algum tipo de controle do governo.
A produção do artista, seja ele um cineasta, um
músico, um pintor ou um diretor de teatro, por algum motivo obscuro, já nasce
com uma distinção moral. Parece suja quando feita por dinheiro, para ser
comercializada, trocada por outra coisa. O grande artista faz a arte pela arte,
não a arte por um carro ou uma passagem de avião.
Mas a comercialização da arte não necessariamente
diminui sua autenticidade. Pelo contrário, as possibilidades comerciais de uma
obra de arte costumam conferir mais valor ao trabalho genuíno. Não só isso: o
comércio da arte permite que artistas sejam mais independentes, mais
recompensados pelo seu trabalho e, no final, faz com que a cultura de uma
sociedade seja mais diversa e de melhor qualidade.
Esse é o argumento de Tyler Cowen em seu livro In
Praise of Commercial Culture [Em
defesa da cultura comercial]. Conforme
explica Cowen, grandes nomes que hoje são marcos da história da arte, música,
literatura e cinema foram na verdade empreendedores artísticos.
Michelangelo não deixava de lucrar com a venda do
seu trabalho. Beethoven admitia a necessidade de comercializar sua música: "Eu
amo uma vida independente, e isso eu não posso ter sem um pequeno salário".
Shakespeare levava uma boa vida com a renda que recebia do seu trabalho como
ator e dramaturgo. O próprio Charles Chaplin confessou:
"Eu entrei nessa ocupação por dinheiro, e a arte brotou daí. Se as pessoas
ficam desiludidas com essa afirmação, não há nada que eu possa fazer. É a
verdade".
De fato, com o advento do capitalismo, os artistas
se tornaram mais autônomos e menos submissos a caprichos particulares. É melhor
ter uma multidão de clientes a ter um mecenas. No século XVIII, Samuel Johnson
se referia a um mecenas como alguém "que apóia com insolência, e é pago com
vaidade".
A possibilidade de vender arte para o mercado
possibilitou aos artistas serem mais experimentais e desenvolverem seus
próprios nichos. A explosão artística da Amsterdam do início do século XVII
ocorreu pela emergência de uma classe urbana consumidora de arte. E a
diversificação de nichos sem equivalente na história que vemos hoje ocorre
porque a capacidade de distribuição e penetração do mercado chegou a patamares
impensáveis com a internet.
A cultura comercial também nos dá maior acesso a
obras do presente e do passado. Não é preciso embarcar para a Inglaterra para
ter acesso à melhor atuação do mundo atual. Basta ir até o cinema mais próximo,
ou ver um filme na tela do seu computador.
Se quisermos experimentar os
clássicos, a música e a literatura do passado jamais foram tão acessíveis.
Qualquer pessoa que queira ouvir Haydn ou ler Goethe pode comprar um CD e um
livro de bolso pelo preço de uma refeição.
Os críticos da cultura comercial desprezam esse
aumento de acesso e variedade alegando que o comércio destrói a qualidade.
Normalmente, esse raciocínio se baseia numa visão romantizada do passado, na
qual o cidadão comum da metade do século XVIII apenas ouvia Bach e lia Milton.
Em qualquer período da história, as mais geniais produções artísticas nasciam
em meio a uma abundância de mediocridade. Apenas as pérolas resistem o teste do
tempo e chegam até nós, passando uma visão distorcida do passado.
Além do mais, não há razões para se acreditar que
grandes produtos culturais deixam de ser produzidos hoje. O cinema, o principal
meio de comercialização artística do século XX, tem produzido roteiros de
fantástica originalidade e profundidade. Grandes sucessos comerciais de
Hollywood como O Senhor dos Anéis e A Lista de
Schindler oferecem uma experiência cultural dificilmente igualada em
qualquer outro momento da história.
A existência de bandas que apelam para o mínimo
denominador comum não impede a existência das composições elaboradas do jazz ou
até do rock eletrônico. Mesmo a televisão hoje oferece séries com enredos
complexos. Os Sopranos, por exemplo, combinava várias vezes
diferentes tramas em uma mesma cena envolvendo uma dezena de personagens
recorrentes.
Mesmo que o crítico da cultura comercial aceite a
vitalidade dos produtos culturais contemporâneos, ele pode contestar o
significado social de tratar a arte como mercadoria. Críticas nesse sentido vêm
tanto da direita quanto da esquerda.
A esquerda progressista acredita que cabe ao governo
determinar o sucesso de diferentes empreendimentos culturais porque é
necessário priorizar o vanguardismo, mesmo que este não tenha apelo comercial. Artistas querem que a produção de arte não
seja influenciada pelos consumidores, mas por um comitê central. É difícil imaginar algo mais conservador e
reacionário do que um comitê de burocratas comandando a produção cultural, como
se fosse um mecenas atualizado.
[N. do E.: na prática, toda
a gritaria da classe artística brasileira contra o fim do Ministério da Cultura
era uma admissão explícita de que sua "arte", sem subsídios, é inviável. E é inviável porque o público consumidor
simplesmente não se interessa por consumi-la.
E esse desprezo do público fere os brios da classe, que então recorre ao
governo para se manter.
Uma regra econômica básica diz que, se algo só se
mantém se receber dinheiro do governo, então é porque o povo está demonstrando,
de forma clara e voluntária, que não quer sustentar espontaneamente essa atividade. Se algo é realmente bom e é demandado, não precisa
de subsídios. Se algo só se sustenta com subsídios, então é porque ou é ruim ou
não é demandado. E se é ruim ou não é demandado, então não merece subsídios.]
O interessante é que grandes gênios costumam não ser
reconhecidos como tais enquanto ativos. Alfred Hitchcock, por exemplo, caso a
cultura fosse controlada pelo governo, não teria atingido o mesmo sucesso e
volume de produção. Seria provavelmente desprezado por um comitê das artes por
ser popular e comercial demais. Se Van Gogh houvesse vivido em um país
socialista, lembrava Mises, o tirariam do ateliê para colocá-lo num hospício.
Já a direita conservadora equipara cultura popular
com insalubridade cultural. Os mitos e símbolos clássicos são superiores às
suas imitações contemporâneas e, portanto, a cultura popular moderna deve ser
rejeitada em favor do bem de nossa civilização. Mas pense nos grandes inimigos
da nossa civilização. Tanto o comunismo quanto o nazismo prezavam pela arte
clássica. Era a cultura popular que eles detestavam.
Como lembra Tyler
Cowen, "Bach, Mozart e Beethoven eram permitidos na União
Soviética. Jazz, swing e blues eram proibidos". O Rock and Roll e o cinema hollywoodiano foram aliados civilizacionais na
derrota dos totalitarismos do século XX. A peça de Tom Stoppard Rock'n'Roll ilustra essa
insurreição artística.
A arte como mercadoria, portanto, enriquece nossa
vida com mais acesso às culturas do passado e do presente, dá aos artistas mais
independência, diversifica e amplia as criações culturais e, last but
not least, é uma arma contra aqueles que querem destruir as instituições
que permitem o florescimento do espírito humano.
Deixe que ela seja livremente demandada pelos
consumidores e financiada espontaneamente por esses consumidores
desejosos. O instrumento para isso se
chama livre mercado.