segunda-feira, 26 dez 2016
Um fiscal da Secretaria da Fazenda
de São Paulo recebe em sua sala um advogado que representa uma empresa. Esse
advogado está interessado em saber por que está demorando tanto tempo para que
a empresa que ele representa obtenha uma inscrição estadual.
O fiscal apenas responde que os trâmites
burocráticos são demorados assim mesmo.
Muito discretamente, o advogado — sem persuadir ou coagir de qualquer maneira
— coloca uma quantia em dinheiro vivo sobre a mesa. O fiscal confere o
montante, coloca-o em seu bolso e imediatamente libera a licença que estava há
meses travada sem razão.
Neste momento, porém, o advogado
revela o jogo: aquilo era uma cilada. Ele na realidade é um membro da
Corregedoria trabalhando sob disfarce, e o fiscal acabava de ser "reprovado" em um teste de integridade,
pela qual será investigado e punido.
Algumas semanas atrás, a Câmara dos
Deputados aprovou parte das 10 medidas propostas pelo Ministério Público Federal. A aprovação foi precedida de
alterações no projeto original feitas pelos deputados, o que desagradou
grande parte da mídia e da população. O temor é o de que estariam querendo
acabar com a Operação Lava Jato.
Especialistas do
Instituto Mises Brasil têm debatido as propostas, e um ponto de contenção se
deu em relação ao projeto de criar um "teste de integridade dos agentes
públicos".
Nas palavras da
proposta original, o objetivo era "testar sua conduta moral e predisposição
para cometer ilícitos contra a administração pública."
Art. 48. Fica
estabelecido o teste de integridade dos agentes públicos no âmbito da
Administração Pública.
Art. 49. A
Administração Pública poderá, e os órgãos policiais deverão, submeter os
agentes públicos a testes de integridade aleatórios ou dirigidos, cujos
resultados poderão ser usados para fins disciplinares, bem como para a
instrução de ações cíveis, inclusive a de improbidade administrativa, e
criminais.
Art. 50. Os
testes de integridade consistirão na simulação de situações sem o conhecimento
do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição
para cometer ilícitos contra a Administração Pública.
Trata-se da
possibilidade de armar uma possível situação em que o funcionário público possa
cometer um ato ilícito.
A seguir, as
opiniões de dois membros do IMB a respeito desta medida. Uma contra e outra a
favor.
Rodrigo Saraiva Marinho, professor de direito
À primeira vista,
essa medida parece uma boa ideia. O problema está nos detalhes.
Por exemplo, que
tipo de pessoa — ou qual grupo de pessoas — estará no comando destes "testes
de integridade"? Quem os elaborará? É inegável que tal grupo usufruirá poderes,
no mínimo, invejáveis.
E se a
"Administração Pública" estiver sob o comando de uma determinada corrente
ideológica que queira — por variados motivos — sabotar a entrada de
indivíduos que vejam como um risco à sua hegemonia? Quem, em suma, irá
supervisionar os supervisores?
Vamos a um
exemplo prático: suponha que o PSOL ascenda ao comando do país e que pessoas de
sua confiança passem a elaborar os "testes de integridade". O que os impede de
fazer com que apenas indivíduos de sua afinidade ideológica sejam aprovados? O
que realmente irá impedir que a burocracia seja aparelhada exclusivamente por
indivíduos fieis ao ideário do PSOL?
Tal projeto —
mesmo que essa não tenha sido a intenção — concede poderes ainda mais extremos
aos eventuais integrantes da "administração pública".
Mas há também um
problema de cunho filosófico. Essa proposta ignora por completo uma das lógicas
mais básicas da ação humana: o comportamento humano pode mudar. Uma simulação
para se verificar a pré-disposição de algum fato nunca poderia vincular alguém
ou servir de régua para determinado ato.
Esse
autoritarismo não passou no projeto aprovado na Câmara dos Deputados. Mas pode
voltar no projeto do Senado.
Geanluca Lorenzon, advogado
Discordo do professor
Rodrigo. Tal instrumento seria um avanço no controle das instituições estatais.
Para começar, o
teste não se aplica ao cidadão brasileiro comum, mas sim apenas aos
funcionários públicos, os quais devem estar sob um nível diferenciado de
escrutínio, dado que voluntariamente aceitaram esses cargos e serão muito bem
pagos com o dinheiro extraído via impostos da população.
Por isso, não se
pode falar que há uma inversão da presunção da inocência. Inclusive, seria
interessante que esse tipo de teste só se aplicasse aos funcionários que
ingressarem após a aprovação da lei, com
um efeito ex nunc. Creio que, quanto a isso, o
professor concorda comigo.
Também discordo
de que essa ferramenta possa funcionar como expansão do poder estatal ou que
ela seja (ainda mais) passível de abuso por grupos que assumam o poder. Os
testes de integridade estabelecem o mesmo ordenamento que a legislação normal,
uma vez que eles derivam de tipificações civis, criminais e administrativas que
já existem atualmente. Ou seja, os testes nada mais fariam do que aplicar uma
legislação ou regramento que já está em vigor.
Logo, a ideia de
que haverá um maior aparelhamento da burocracia somente por causa dessa
ferramenta não procede.
Nessa linha,
esse sistema poderia, isso sim, prover um forte desincentivo à corrupção e à falta
de ética na administração pública, uma vez que o servidor terá a sensação de estar
a todo o momento sob escrutínio: nada que o setor privado já não faça, sendo
inimaginável pensar que um patrão não 'teste' seus funcionários rotineiramente,
especialmente aqueles que lidam com montantes financeiros em suas atividades
diárias.
Ademais, quando
o indivíduo decidiu ser funcionário do estado voluntariamente, a corporação em que
ele trabalha — e sua relação com ela — não se encaixa no conceito tradicional
de relação entre estado-súdito, mas sim em um arranjo similar a um trabalho comum. Logo, ele ser submetido a esse tipo de
escrutínio é perfeitamente aceitável.
Finalmente, no
que tange a exemplos estrangeiros, vale dizer que esse tipo de instrumento é corriqueiro
e tem um papel fundamental para a resolução de crimes específicos ao redor do
mundo. Nos EUA, testes similares são inclusive aplicáveis a diversos tipos de
investigações criminais, desde que não haja uma persuasão ou coerção, e que a
pessoa testada tenha já demonstrado uma pré-disposição
para a prática de tal crime.
A linguagem adotada
pelo projeto brasileiro tenderia a indicar uma transposição desse instituto
americano para o nosso ordenamento.
Conclusão
Seria o projeto uma forma de
restringir o alcance do estado ou poderia ele em realidade se expandir? Qual a sua opinião
sobre o tema?
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