No Brasil, não há o direito de firmar contratos
livremente. E isso emperra toda a nossa economia, afetando o empreendedorismo,
a livre iniciativa e a criação de riqueza.
Foi isso o que o professor André
Luiz Santa Cruz Ramos, especialista, mestre e doutor em Direito, professor
de Direito Empresarial e Econômico do Centro Universitário IESB e autor de diversos
livros jurídicos mostrou em sua palestra proferida na V Conferência de Escola
Austríaca, realizada pelo Instituto Mises Brasil nos dias 12 e 13 de maio
de 2017.
Em toda a sua apresentação, André apresentou suas
ideias sobre a cultura do intervencionismo no ensino
jurídico brasileiro e o dirigismo contratual, elencando diversas
críticas sobre suas consequências, como o risco moral, a criação de um
paternalismo judicial e de incentivos à litigiosidade.
E mostrou como o ensino jurídico no Brasil é viciado
e eivado de apologias ao intervencionismo e à onisciência de burocratas e
reguladores. Material altamente recomendado para todos os estudantes de
direito. Você pode
conferi-la abaixo:
Abaixo, segue uma entrevista concedida ao Students For Liberty Brasil. Nela, André conta mais sobre essa cultura, além de expor suas ideias
sobre propriedade intelectual, externalidades negativas e sobre a função
social, um dos princípios norteadores do Código Civil vigente no Brasil. A entrevista foi conduzida pelo sempre brilhante Luan Sperandio.
Você tem dito que há uma cultura do
intervencionismo no ensino jurídico brasileiro. Podemos dizer que os acadêmicos
de direito são submetidos a uma doutrinação estatista? Há na academia jurídica
brasileira pluralidade de ideias? Isso tem avançado?
Não diria que há uma doutrinação, pois não creio que
em todos os casos seja algo intencional por parte dos professores.
O fato é que nosso país tem uma Constituição de viés
claramente socialista, que criou uma máquina estatal enorme. Isso não apenas
exige um forte aparato burocrático e uma tributação exorbitante, mas
também acaba refletindo na própria conformação do ordenamento jurídico, que
decorre direta ou indiretamente da Constituição.
Outros fatores que contribuem para essa cultura do
intervencionismo no ensino jurídico são os seguintes:
(i) o controle do MEC sobre os currículos das
Faculdades de Direito no país (certa vez me pediram para inserir em meu plano
de ensino da disciplina Direito Empresarial algo relacionado a
questões étnico-raciais e indígenas, e disseram que era "para atender uma
exigência do MEC"!); e
(ii) a transformação das Faculdades de
Direito em cursos preparatórios para o Exame da OAB e concursos públicos.
Como a doutrina justifica o dirigismo
contratual e a relativização da autonomia da vontade? E quais as consequências
que se verificam a partir desse intervencionismo aqui no Brasil?
Resumidamente, alega-se que as relações contratuais,
atualmente, tendem a ser assimétricas, especialmente em certos tipos de
contratação. Contrato de emprego e contrato de consumo são os exemplos mais
sintomáticos. Essa assimetria exigiria uma intervenção estatal para proteger as
partes contratantes mais fracas, as quais o direito normalmente classifica com
termos técnicos como 'vulneráveis' ou 'hipossuficientes'.
Grosso modo,
pode-se dizer que é uma forma vulgar de aplicação da velha e
falaciosa teoria das falhas de mercado.
Algumas consequências que apontei em meu estudo são:
(i) risco moral: essas
partes protegidas pelo estado tendem a perder a noção de responsabilidade ao
assinar um contrato, já que 'contrato não vale mais nada mesmo'.
(ii) paternalismo judicial: cria-se
uma jurisprudência extremamente protetiva que exacerba o risco moral já
referido e torna os litígios contratuais uma espécie de novela mexicana do mocinho
contra bandido; outras vezes, cria-se um antipaternalismo também
pernicioso, quando juízes não-simpatizantes do dirigismo acabam ignorando
problemas contratuais sérios, como fraude etc.;
(iii) incentivos à litigiosidade:
afinal, já que 'contrato não vale mais nada mesmo', por que vou cumprir
voluntariamente um acordo se posso ir a juízo e me livrar da obrigação
assumida sob as mais variadas e abstratas alegações, como abusividade da
cláusula ou descumprimento da 'função social do contrato'?;
(iv) ciclo vicioso intervencionista:
o excesso de dirigismo contratual gera problemas contratuais que acabam gerando
mais intervenção. Não é à toa que os setores de mercado que mais abarrotam o
Judiciário com litígios contratuais são aqueles mais regulados — financeiro, telecomunicações, seguros e planos de saúde
etc. —, cujos contratos são fortemente dirigidos pela lei e por normais
infra-legais das respectivas autoridades regulatórias.
No direito comparado, por acaso ainda há
países em que o pacta sunt servanda predomina sobre essa
ideia de relativização dos contratos?
Sinceramente, não conheço a situação de cada país,
mas posso garantir que o Brasil não é o criador dessa ideia. Trata-se, como de
costume, da importação de uma teoria de países com tradição intervencionista
como a nossa.
Em países com uma maior tradição liberal, parece-me
que os contratos ainda são respeitados, como demonstram alguns índices de
liberdade econômica publicados anualmente (Heritage Foundation e Doing Business, por exemplo).
Qual seu posicionamento em relação à
função social (do contrato, da propriedade e da empresa)?
Função
social é apenas mais um 'conceito jurídico indeterminado' que serve para a
legitimação de decisões intervencionistas, gerando insegurança jurídica. O
ordenamento jurídico está abarrotado de expressões desse tipo.
Vivemos, diz-se, a era pós-positivista do
Direito (ou a era do neoconstitucionalismo), na qual predominam os
conflitos principiológicos, que reclamam solução pela via da 'ponderação de
interesses'.
Essa técnica de decisão, alega-se, não exclui um
princípio em detrimento de outro, mas apenas reconhece sua maior preponderância
num determinado caso concreto.
Ocorre que, no final, os princípios acompanhados da
expressão 'social' quase sempre predominam. É por isso que nossa
Constituição está repleta de princípios liberais — como livre iniciativa,
livre concorrência, propriedade privada etc. — que possuem uma carga
normativa fraquíssima, tendendo a perder eventuais disputas pela via da
ponderação de interesses quando confrontados com princípios sociais.
Enfim, é mais um sintoma dessa cultura do
intervencionismo no Direito.
Muitos defensores de uma sociedade de
mercado acreditam que é preciso haver intervenção do estado no que diz respeito
aos "monopólios naturais". Como você enxerga isso?
Thomas
DiLorenzo, economista da nova geração da Escola Austríaca, termina um
texto intitulado "O mito
do monopólio natural" com a seguinte frase: "A teoria do monopólio natural
é uma ficção econômica do século XIX criada para defender privilégios monopolísticos
do século XIX, e não possui lugar em economias modernas do século XXI".
E ele tem razão.
Um monopólio natural, apenas para esclarecer, é
aquele setor considerado fundamental para o bem-estar e para a vida econômica e
social de uma sociedade, e cujas principais características são: apresentar
significativas "externalidades" (uma transação qualquer feita entre
dois indivíduos irá afetar terceiros, positiva ou negativamente), e exigir
investimentos vultosos e de longo prazo de maturação, específicos para cada
atividade — o que significa que, em teoria, esses investimentos não são
"recuperáveis", pelo menos no curto prazo.
Assim, os principais monopólios naturais seriam aquelas
áreas rotuladas como "serviços de
utilidade pública": fornecimento de energia elétrica, de telefonia fixa
de curta distância, de gás encanado, de água tratada e saneamento básico
(esgoto), de metrô e algumas ferrovias.
Mesmo economistas do mainstream já não
mais abraçam mais essa tese do monopólio natural como antes, de modo que agora já
aceitam que empresas privadas administrem esses setores. Tanto que os mercados
tradicionalmente objeto desses monopólios foram sendo 'privatizados' no mundo
todo nas últimas décadas, inclusive no Brasil.
Infelizmente, porém, ainda predomina uma ideia de
que esses setores, para saírem do regime de monopólio e funcionarem em
regime concorrencial, precisam de regulação estatal, por mais paradoxal que
possa ser essa afirmação. Consequentemente, esses mercados sempre foram os mais
regulados pelo governo. Há uma agência reguladora (federal ou estadual) para
cada um deles.
O resultado, sabemos, é desastroso: a empresa
privada regulada entra em conluio com a agência reguladora (o que a literatura econômica
chama de 'captura regulatória') e ambas passam a operar visando apenas seus
interesses, e não o dos consumidores. Consequentemente, os preços aumentam e a
qualidade dos serviços nem sempre melhora.
E tal arranjo só é possível exatamente porque a
existência da regulação cria uma reserva de mercado para essa empresa, com barreiras
à entrada que eliminam a concorrência potencial. A empresa não precisa ser
eficiente, pois o estado já lhe garantiu um monopólio para aquela área. Isso é
o oposto de livre mercado.
Para piorar tudo, tal arranjo opera sob controle de
preços (os preços são estipulados pela agência reguladora, o que dificulta o
cálculo econômico racional) e sempre há pacotes de socorro quando a empresa
passa por dificuldades (que impedem o funcionamento do mecanismo de lucros e
prejuízos). O caso da
Oi é o mais recente.
E o que é ainda pior: a cultura do intervencionismo
faz com que, na ocorrência desses problemas, as pessoas peçam por mais
regulação, e não o contrário.
(Nota do
Editor: veja neste artigo a
maneira correta de se privatizar e desestatizar serviços de utilidade pública
considerados 'monopólios natrurais').
Qual a visão central de sua tese de
doutorado sobre a atuação do CADE e a legislação antitruste brasileira?
A tese apresenta alguns fundamentos contra a
legislação e as agências antitruste:
(i) a história que nos contam sobre o assunto é
mentirosa: leis e agências antitruste surgiram não para proteger os
consumidores e coibir abusos do 'poder econômico', mas sim para proteger setores
empresariais que estavam perdendo mercado diante da crescente competição,
mas que ainda eram fortes politicamente; e
(ii) a teoria econômica que fundamentou o
antitruste na sua origem é equivocada, partindo de conceitos errados de
monopólio e concorrência: usando modelos irreais, como o de 'concorrência perfeita',
essa teoria exacerba a preocupação com as supostas 'falhas de mercado' e
ignora o fato de que monopólios são criados e mantidos pelo
próprio estado (todos os cartéis, oligopólios e monopólios da atualidade se
dão em setores altamente regulados pelo governo: setor bancário, aéreo,
telefônico, elétrico, televisivo, TV a cabo, internet, postos de gasolina etc.).
Para agravar, a teoria desconsidera a inexorável
realidade de que a concorrência é um processo dinâmico e incerto
de rivalidade e descoberta constantes, que depende apenas da liberdade de
entrada — liberdade esta que quem mais solapa é o próprio estado por meio de
suas regulações que criam reserva de mercado.
O resultado, novamente, é conhecido: empoderamento
do aparato burocrático estatal e desvio de recursos e preocupações dos
empresários em atender a essa burocracia, e não aos desejos
dos consumidores, como ocorre em uma economia verdadeiramente livre.
Muitos libertários têm dificuldade em
relação a ideia de propriedade intelectual, pois temos autores a defendendo
(como Ayn Rand) e outros defendendo sua abolição (Stephan Kinsella). A ideia
de propriedade intelectual se justificaria moralmente? A PI é necessária para
possibilitar mais inovações em algum setor?
Inicialmente, é preciso fugir desse dualismo
libertários versus não-libertários em qualquer tema relacionado à liberdade,
até para evitar que nossos argumentos sejam rechaçados por vício de
origem, do tipo "ih, lá vem o anarcocapitalista radical com suas ideias
utópicas etc".
Ademais, hodiernamente, a crítica à 'propriedade
intelectual' está bem longe de ser algo restrito a um grupo político ou
ideológico.
Dito isso, há duas coisas que precisam ser
destacadas nesse debate.
Em primeiro lugar, não existe 'propriedade
intelectual', e sim monopólios intelectuais, e isso é algo praticamente
consensual hoje, inclusive entre os próprios defensores da PI. Ideias e
criações não são bens escassos, então essa tal PI nada mais é do que criação de
escassez artificial pelo uso da força estatal. Isso é uma medida contra
a propriedade real, e não em defesa da propriedade. Afinal, se você não
pode usar sua propriedade para simplesmente duplicar uma ideia minha, isso
significa que eu, o dono da propriedade intelectual, expropriei de você a sua "real" propriedade.
Em segundo lugar, esses monopólios
intelectuais, em vez de criarem incentivos à inovação, acabam desestimulando-a,
na medida em que restringem a concorrência: o monopolista fica acomodado com o
privilégio (muito longo, por sinal, como já comprovaram inúmeras pesquisas
empíricas), e os concorrentes ficam desencorajados a investir em áreas já
protegidas, com medo de represálias administrativas e judiciais.
Além disso, há uma série de consequências não-intencionais,
como a paralisação do brainstorming criativo e a distorção na
alocação dos gastos empresariais.
Enfim, argumentos contrários aos monopólios
intelectuais, especialmente nos dias atuais, quando vivemos a era da internet,
existem aos montes e são absolutamente irrefutáveis, tanto do ponto de
vista teórico quanto do ponto de vista empírico. Existem, por exemplo, estudos
de caso demonstrando que setores sem imposição de PI são muito mais inovadores e criativos (caso
do mercado da moda, como bem explicado por Johanna Blakley em
palestra disponível no TED) do que setores cuja execução do PI é enorme.
E repito: ser contra a PI não é apenas uma
excentricidade libertária, como muitos dizem apressadamente, fugindo da
discussão para esconder a incapacidade de repensar esse assunto. O melhor
trabalho que já li contra a PI, por exemplo, foi o livro 'Against
intellectual monopoly', dos economistas Boldrin e Levine, e até onde
sei, salvo engano, eles não são libertários.
Por fim, diante de tantos problemas no
ambiente jurídico brasileiro, o que você recomendaria para alguém que está
prestes a iniciar o curso de direito?
Se esse alguém é um liberal ou libertário que deseja
se contrapor a essa cultura do intervencionismo a que me refiro, recomendo que
siga sua vocação e conclua o curso numa boa instituição, já que, sem isso,
infelizmente, não poderá trabalhar na área (afinal, estamos falando da
profissão mais regulamentada que existe, havendo uma guilda corporativa
fortíssima, a OAB, para manter essa reserva de mercado a todo custo).
Em contrapartida, é fundamental que essa
pessoa procure se educar por conta própria, e a internet está aí para
isso. Há uma infinidade de material (artigos, livros, aulas, palestras,
podcasts etc.) disponível facilmente para um estudante autodidata, interessado
e disciplinado.
Se, porém, o aluno ficar restrito ao programa
oficial da faculdade, imposto e controlado pelo MEC, corre sério risco de
se tornar um intervencionista.
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