quinta-feira, 21 set 2017
Como um
radicalismo revolucionário se transforma em um esclerosado e estagnado sistema
baseado no poder, no privilégio e no esbulho, gerenciado por burocratas
socialistas dotados de interesse próprio?
O grande
sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) apresentou uma compreensão da evolução
dos regimes socialistas no século XX. Em seu monumental tratado, publicado
postumamente, intitulado Economia e Sociedade (1925), ele define um líder carismático como sendo aquele
que se destaca em meio à massa comum por causa de um elemento específico de sua
personalidade: ele possui uma rara qualidade intelectual que lhe permite ver
aquilo que outros homens comuns não enxergam e entender aquilo que seus
semelhantes não conseguiram.
Este
indivíduo, em suma, é visto como alguém dotado de poderes e qualidades
excepcionais.
Porém,
sua autoridade, explica Weber, não advém do fato de terceiros reconhecerem seus
poderes intrínsecos. Seu senso de autoridade e objetivo vem de dentro: ele sabe ser o detentor de uma verdade, a
qual ele tem a missão de revelar a todos, pois ele sabe que a revelação desta
verdade irá libertar seus conterrâneos. E quando a massa percebe toda a
certeza, sabedoria e segurança deste homem, torna-se óbvio e inevitável que ela
deve seguir sua liderança.
Vladimir
Lenin (1870-1924) certamente se encaixava nesta descrição. Embora muitos que o
conheceram ressaltaram sua indefinível e até mesmo nada atraente aparência
física, a maioria fez questão de enfatizar sua determinação e sua crença
inflexível de estar em uma "missão", em relação à qual ele tinha a mais
absoluta confiança e inabalável determinação. Devido a essa sua postura
decidida e nunca vacilante, todos os outros se sentiam magnetizados por ele e
prontamente aceitavam sua liderança e autoridade.
Em torno
de Lenin, o carismático, havia todo um séquito de discípulos e camaradas que
igualmente se consideravam adeptos de um chamamento. Eram os 'escolhidos'. E se
viam como servindo à mesma missão: a promoção da revolução socialista. Como
disse Weber:
O grupo que se sujeita à autoridade do
carismático se baseia em uma forma emocional de relação comunal. [...] O grupo
é escolhido em termos das qualidades carismáticas de seus membros. O profeta
tem seus discípulos. [...] Há um "chamado" feito pelo líder, o qual se baseia
nas qualificações carismáticas daqueles que ele convoca.
O grupo
"escolhido" renuncia (ao menos em princípio) às tentações materiais das
circunstâncias mundanas, pois o objetivo de sua "missão" é exatamente derrubar
e destruir essas tentações materiais. Com efeito, isso também marcava o estilo
de vida conspirador, secreto e algumas vezes espartano dos revolucionários
marxistas. Max Weber explicou:
No início da revolução, não há coisas como
salários e benefícios. Os discípulos e seguidores tendem a viver basicamente em
uma relação comunista com seu líder. [...] Puro carisma. […] O grupo desdenha e
repudia a exploração econômica da renda assalariada, embora tal postura seja
muito mais um ideal do que um fato. [...] Por outro lado, a 'pilhagem', seja ela
obtida pela violência ou por outros meios coercitivos, é a outra forma típica
de como o grupo se financia.
Porém,
tão logo o carismático e seus seguidores chegam ao poder, ocorre uma
transformação em seu comportamento e em seu relacionamento com o resto da
sociedade. Agora, passa a ser impossível para esse grupo se manter isolado das
questões mundanas da vida diária. Com efeito, se eles não lidarem com estas
questões, seu poder sobre a sociedade estará ameaçado de desintegração. Assim,
lentamente, aquele fervor que caracterizava a missão ideológica e a camaradagem
revolucionária começa a morrer. Disse Max Weber:
Somente os membros de um pequeno grupo de
fervorosos e entusiasmados discípulos e seguidores estarão preparados para
dedicar suas vidas à sua vocação ideológica da maneira mais pura e idealizada.
Já a grande maioria dos discípulos e seguidores irá, no longo prazo, voltar a
'ganhar a vida' de uma maneira mais material. Consequentemente, eles irão se
preocupar apenas em se apropriar totalmente do poder e dos controles e
vantagens econômicas que ele oferece. E a entrada de novos seguidores no grupo
passará a ser estritamente regulada. Assim, forma-se uma casta privilegiada.
[…]
Consequentemente, no corpo político já
concretizado, os membros, funcionários e detentores de benefícios passam a ser
diferenciados dos 'pagadores de impostos'. Os primeiros, em vez de serem
'seguidores' do líder, se tornam funcionários do estado e são nomeados membros
do partido. [...] Com o tempo, o grupo carismático tende a se metamorfosear em
uma forma típica de autoridade, mais especificamente, a autoridade burocrática.
Nesta
análise de Max Weber é possível ver o esboço daquele processo histórico por meio
do qual um bando de marxistas revolucionários, convencidos de que viram os
rumos da história de uma maneira que outros mortais não viram, passam se
enxergar a si próprios como os parteiros daquela história que só eles viram. E
o fazem por meio de uma violenta revolução.
Porém, à
medida que as brasas da vitória socialista vão arrefecendo — como na Rússia
após a Revolução de 1917 e a sangrenta guerra civil de três anos que se seguiu
—, os revolucionários têm de se voltar para as questões mundanas de como
"construir o socialismo". E construir o socialismo significa a transformação
total da sociedade. E a transformação da sociedade significa controlar,
supervisionar e ordenar absolutamente tudo.
O interesse próprio e a nova "sociedade de
classes" do socialismo
E foi
assim que nasceu, na nova União Soviética, aquilo que viria a ser chamado de Nomenklatura.
Começando
em 1919, o Partido Comunista implantou o procedimento de criar listas de cargos
e posições burocráticas a serem preenchidos por meio de nomeações oficiais, bem
como listas de pessoas que poderiam se qualificar para serem promovidas a estas
posições mais elevadas de autoridade.
Assim
surgiu a nova classe dominante sob o socialismo.
Ministérios
tinham de ser criados e ocupados. Cargos partidários tinham de ser preenchidos.
Indústrias estatizadas e fazendas coletivas precisavam de gerentes para
supervisionar a produção e garantir que as metas estabelecidas pelo
planejamento central seriam cumpridas. Redes de distribuição estatal tinham de
ser implantadas. Sindicatos precisavam ser controlados por membros fieis ao
Partido. E a mídia precisava de editores e repórteres que publicassem estórias
e propagandas sobre os grandes progressos e vitórias obtidos pelo socialismo nessa
nova e gloriosa sociedade coletivista, na qual o novo Homem Soviético estava
sendo criado.
Porém, contrariamente
às promessas de se criar um "novo homem" a partir dos escombros da velha ordem,
o exato oposto ocorreu. À medida que a economia socialista ia sendo construída,
toda a imutável natureza humana inevitavelmente passou a se manifestar: o
interesse próprio, a busca por oportunidades de ganhos, a procura por maneiras
de melhorar a própria vida e a de seus familiares e amigos. Tudo isso gerou
tentativas generalizadas de se conseguir o controle das mercadorias e recursos
escassos "socializados" com o intuito de obter ganhos pessoais dentro dos
labirintos e redes da burocracia soviética.
E dado
que o estado havia declarado ser o único proprietário de todos os meios de produção,
não foi nenhuma surpresa que, à medida que os anos e então as décadas iam se
passando, cada vez mais pessoas foram se tornando membros da Nomenklatura e também
de suas posições diretamente subordinadas: esse era o único caminho para uma
vida mais próspera e agradável. Ao final, o estado socialista não transformou a
natureza humana; a natureza humana encontrou maneiras de usar o estado
socialista para seus próprios fins.
O sistema
de privilégios e corrupção que o socialismo soviético criou foi claramente explicado
por Boris Yeltsin (1931-2007), o membro do Partido Comunista da Rússia que,
mais do que vários outros, ajudou no fim da União Soviética
e na criação de uma Rússia independente em 1991. Em seu livro Against
the Grain (1990), Yeltsin explicou:
A ração fornecida pelo Kremlim, uma distribuição
especial de produtos inalcançáveis para a população geral, é conseguida pelo
alto escalão pela metade do seu preço normal, e consiste de alimentos da mais
alta qualidade. Em Moscou, um total de 40.000 pessoas usufruem o privilégio
destas rações especiais, em várias categorias de quantidade e qualidade. Há seções
inteiras da GUM
— a enorme loja de departamentos localizada na Praça Vermelha de fronte ao
Kremlim — fechadas ao público e reservadas especialmente para o alto escalão da
elite. Já para os funcionários do segundo e do terceiro escalão, há outras
lojas exclusivas. Todas elas são rotuladas de "especiais": armazéns especiais, lavanderias
especiais, policlínicas especiais, hospitais especiais, casas especiais, e serviços
especiais. Que uso mais cínico da palavra!
A tão prometida
"sociedade sem classes", em que haveria igualdade material e social, foi, com
efeito, o mais granulado sistema de poder e privilégio hierárquicos já criado. Suborno,
corrupção, conexões e favorecimentos permeavam todo o tecido da sociedade
socialista soviética. Dado que o estado detinha, produzia e distribuía absolutamente
tudo, as pessoas tinham de ter "amigos", ou amigos que conheciam as pessoas
certas, ou que sabiam a pessoa certa a quem você deveria se apresentar e mostrar
o quão agradecido ficaria em troca de um suborno ou de favores recíprocos. Tudo
isso era necessário para obter acesso a algo que era impossível de ser obtido
por meio dos canais normais da rede de distribuição centralmente planejada para
"as massas".
E por
cima de todo este sistema socialista de poder, privilégio e esbulho liderado
pelo Partido Comunista estava a polícia secreta soviética, o famoso o KGB (Komitet
gosudarstvennoy bezopasnosti, ou Comitê de Segurança do Estado), espionando,
vigiando, ameaçando e denunciando toda e qualquer pessoa que ameaçasse ou
questionasse a propagando ou o funcionamento do "paraíso dos trabalhadores".
Contradições e o fim do socialismo soviético
Não é
nenhum exagero dizer que tudo aquilo que os marxistas diziam ser a natureza do
sistema capitalista — a exploração de muitos pelos poucos privilegiados; uma
brutal desigualdade de riqueza e de oportunidade devido simplesmente a um
arranjo artificial de controle dos meios de produção; a manipulação da realidade para fazer com que a escravidão parecesse liberdade — era, na verdade,
a natureza e a essência do socialismo soviético. Que maneira mais deturpada e
pervertida de deformar a realidade através de uma lente ideologicamente
distorcida.
Tudo isso finalmente acabou em 1991, quando os privilégios,
as pilhagens e a brutal pobreza do "socialismo verdadeiro" tornaram o sistema soviético
insustentável. Com efeito, à época, já era praticamente impossível encontrar alguém
em qualquer canto da sociedade soviética que ainda acreditasse na "falsa consciência"
da propaganda socialista. A União Soviética havia chegado ao beco sem saída da falência
ideológica e da ilegitimidade social. A "super-estrutura" do poder soviética havia
colapsado. (Veja meu artigo "Há exatos 25 anos
presenciei o fim do regime soviético").
Em 1899, o psicólogo social francês Gustave Le Bom
(1841-1931) analisou o então crescente movimento socialista do final do século XIX
e escreveu o seguinte lamento em seu livro A
Psicologia do Socialismo:
Ao menos uma
nação terá de sofrer para servir de instrução ao mundo. Será uma daquelas lições
práticas que, sozinhas, poderão iluminar as outras nações que alegremente
acreditam nos sonhos de felicidade prometidos pelos sacerdotes da nova fé [socialista].
Não somente a Rússia,
mas também vários outros países no Leste Europeu, na Ásia, na África e, até
hoje, na América Latina foram e estão sendo obrigados a fornecer ao mundo esta "lição
prática" de tirania política e de desastre econômico que só uma sociedade
socialista, especialmente em sua versão marxista, pode criar.
Atualmente, a Venezuela fornece este
exemplo diariamente, em tempo real. E, contrariamente ao sistema soviético, que pôde durar muito tempo
porque tinha vários países-satélites cujos recursos podiam ser explorados,
o socialismo venezuelano não tem essa "facilidade", de modo que o sofrimento e
empobrecimento de seus cidadãos é muito mais rápido e bem mais intenso.
Conclusão
O socialismo serve como
uma apavorante demonstração prática das desastrosas consequências que surgem
quando uma sociedade abandona completamente a filosofia política do liberalismo
clássico, o sistema econômico de livre mercado, e um arranjo institucional em
que a natureza humana (inatamente egoísta) atua dentro de um arcabouço social
baseado em associações voluntárias e transações comerciais pacíficas.
Neste centésimo
aniversário da Revolução Russa, que a esperança seja a de que a humanidade já tenha
aprendido com este erro trágico, e perceba e aceite que somente as liberdades
individual e econômica podem criar a justa, boa e próspera sociedade que a
humanidade pode e deve ter.
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Leia também:
O socialismo
inevitavelmente requer uma ditadura
O socialismo
necessariamente requer métodos brutais para ser implantado
A defesa do socialismo é,
inescapavelmente, uma apologia da violência
Se o socialismo é
economicamente inviável, por que ele dura tanto tempo?