A controvérsia parece nunca ter fim: afinal, qual
era a ideologia econômica dos
nazistas?
Recentemente, deparei-me com uma postagem no Twitter
até bem espirituosa. A pessoa, de esquerda, afirmou o seguinte, parafraseando: "Pessoas
que dizem 'Os nazistas eram socialistas; o próprio nome do partido assume isso!'
devem se sentir atordoadas ao lerem 'buffalo wings'[1]."
Hoje, parece ter virado senso comum dizer que os
nazistas eram capitalistas, e não socialistas, apesar do capcioso nome do seu
partido: Nationalsozialistische Deutsche Arbeiters Partei ou Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães. Traga o assunto à baila e a reação sempre será a mesma:
os intelectuais arregalarão os olhos e dirão que qualquer pessoa com formação
universitária tem a obrigação de saber que os nazistas eram capitalistas; se
não no nome, ao menos em princípio.
Obviamente, tal alegação não faz nenhum sentido,
pois não sobrevive ao mais básico teste de lógica, como será mostrado mais
abaixo. No entanto, o primeiro mistério a ser desvendado é: de onde surgiu este
mito de que os nazistas eram capitalistas?
Ludwig von Mises, com efeito, já havia respondido a
esta pergunta em 1951 em seu ensaio "Planned Chaos".
Durante o século XIX, quando o socialismo estava
começando a ficar em voga na Europa, não havia nenhuma distinção entre
"socialismo" e "comunismo". Sim, havia formas distintas de socialismo, mas
estas não eram diferenciadas pelos termos "socialismo" e "comunismo". Cada
intelectual possuía a sua preferência, mas os termos "socialismo" e "comunismo"
eram utilizados de maneira intercambiável.
Sobre isso, Mises escreveu: "Em 1875, em seu Crítica ao
Programa de Gotha, do Partido Social-Democrata Alemão, Marx fez uma
distinção entre a fase precoce e a fase posterior da sociedade comunista. Mas
ele não reservou o nome "comunismo" à fase posterior, e não rotulou de
"socialismo" a fase precoce, para diferenciá-la do comunismo".
Segundo Marx e sua teoria sobre a história, o
socialismo era inevitável. De acordo com sua análise determinista, todos os
países do mundo estavam destinados a seguir o mesmo caminho: do feudalismo para
o capitalismo, e do capitalismo para o socialismo, quando a história acabaria.
Para Marx, essa progressão era inevitável.
Na Alemanha, os primeiros propagadores do
"socialismo de estado" surgiram um pouco antes de Marx. Johann Karl Rodbertus,
assim como Marx, rejeitava várias das teorias socialistas então em voga,
dizendo que eram insustentáveis. Rodbertus foi o primeiro pensador socialista a
defender o controle tanto da produção quanto da distribuição. Segundo ele, para
alcançar isso, os socialistas teriam de usar o estado. Já o maior propagador
dessas idéias foi Ferdinand
Lassalle, cujo proselitismo levou a um rápido crescimento da popularidade
daquilo que Mises viria a rotular de "socialismo de padrão alemão".
O socialismo alemão, como Mises o definiu, diferia
do "socialismo de padrão russo". O socialismo de padrão alemão, disse Mises,
"mantinha, ao menos aparentemente, a propriedade privada dos meios de produção
e permitia, ao menos nominalmente, o empreendedorismo e as transações de
mercado".
No entanto, tal arranjo era apenas superficial. Por
meio de um abrangente e complexo sistema de regulações e intervenções
econômicas, a função empreendedorial dos proprietários dos meios de produção
era totalmente controlada pelo estado. Industriais e comerciantes, por exemplo,
não mais tinham a função empreendedorial de tentar antecipar quais seriam as
demandas futuras dos consumidores para então fazer as devidas alocações de
recursos visando à satisfação desta demanda e, consequentemente, ao lucro.
Assim como na União Soviética, essa função de especulação empreendedorial e
alocação de recursos era feita exclusivamente pelo estado.
Consequentemente, dado que era o estado quem estava
no controle efetivo da alocação de recursos, o cálculo econômico de preços e
custos se tornava
impossível.
"Na Alemanha nazista", disse Mises,
Os
proprietários dos meios de produção eram chamados de dirigentes comerciais, ou 'Betriebsführer'. O governo dizia a
estes supostos empreendedores o que produzir, como produzir, em quais
quantidades e a que preços. O governo também determinava de quem eles deveriam
comprar, a quais preços e a quem poderiam vender. O governo decretava os
salários que deveriam ser pagos para cada trabalhador. E determinava também
para quem e sob quais condições o capitalista deveria investir seus fundos.
As
transações de mercado não eram genuínas; eram apenas um fingimento, uma
simulação.
E,
dado que todos os preços, salários e taxas de juros eram estipulados pelas
autoridades, eram preços, salários e juros apenas na aparência. Com efeito, eram
termos meramente quantitativos em meio a um ordenamento autoritário que
determinava a renda, o consumo e o padrão de vida de cada indivíduo. Era a
autoridade, e não os consumidores, quem comandava a produção.
O
comitê central de gerenciamento da produção era supremo. Todos os cidadãos se
transformaram em meros funcionários públicos. Isso nada mais é do que um
arranjo socialista camuflado sob uma aparência externa de capitalismo. Alguns
termos que remetiam a uma economia capitalista foram mantidos, mas seu
significado era totalmente diferente daquele de uma genuína economia de
mercado.
Em suma: os nazistas praticaram controle de preços,
controle de salários e arregimentaram toda a produção. A propriedade dos meios
de produção continuou em mãos privadas, mas era o governo quem decidia o que
deveria ser produzido, em qual quantidade, por quais métodos, e a quem tais
produtos seriam distribuídos, bem como quais preços seriam cobrados, quais
salários seriam pagos, e quais dividendos ou outras rendas seria permitido ao
proprietário privado nominal receber.
Desnecessário ressaltar que determinar preços e
salários, e estipular o que deve ser produzido, como e para quem, representam
um claro ataque à propriedade privada, pois retiram dos produtores as opções que eles
teriam no livre mercado para aplicar seus recursos. Trata-se de uma intervenção
estatal que, na prática, proíbe os proprietários de investirem seus recursos
onde e como bem quiserem.
A
propaganda soviética
Mas os próprios soviéticos também tiveram um papel
crucial em criar o mito de que os nazistas eram capitalistas. Os nazistas nunca
tentaram esconder suas propensões socialistas (afinal, não obstante os
twitteiros sarcásticos, o socialismo estava no nome deles); eles simplesmente
estavam implantando o socialismo seguindo uma estratégia diferente daquela dos
socialistas marxistas.
Os soviéticos rotularam os nazistas de capitalistas
simplesmente porque eles já haviam começado a redefinir os termos "socialismo"
e "comunismo". Os membros de seu partido, os bolcheviques, agora eram
diferentes dos outros grupos socialistas rivais. Os termos "comunismo" e
"socialismo" ainda eram usados de maneira intercambiável, e a própria União
Soviética era apenas uma abreviação de "União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas". Só que, ao rotularem seu grupo de "Partido Comunista", o título
"Comunista" — que agora significava um membro do partido de Lênin — se tornou
uma maneira de dizer que aquilo era "o socialismo verdadeiro", por assim dizer.
"Foi somente em 1928", explicou Mises, "que o
programa da Internacional Comunista ... começou a diferenciar o comunismo do
socialismo (e não somente comunistas de socialistas)." Essa nova doutrina
afirmava que, no arcabouço marxista, havia outro estágio de desenvolvimento
entre capitalismo e comunismo. Esse estágio, obviamente, era o socialismo, e
era neste estágio que se encontrava a União Soviética.
Em sua teoria original, Marx fez uma distinção entre
o comunismo em sua fase inicial e o comunismo em sua fase final: a verdadeira
igualdade só seria alcançada no estágio final do comunismo, após o estado ter
sido bem-sucedido em seguir todas as políticas recomendadas por Marx e os seres
humanos já terem evoluído para alem de sua "consciência de classe". Na nova
doutrina, "socialismo" simplesmente se referia ao estágio inicial do comunismo
marxista, ao passo que o verdadeiro comunismo — a fase final do comunismo
marxista — só seria alcançada quando todo o mundo fosse comunista.
Assim, a União Soviética era meramente socialista,
mas os membros do partido eram comunistas, pois representavam os poucos
iluminados que já estavam trabalhando em prol do objetivo supremo do comunismo.
Por outro lado, os nazistas ainda alegavam ser
socialistas e, com efeito, agiam de maneira muito semelhante à teoria
socialista, com suas abrangentes e autoritárias intervenções econômicas. Só que,
como ainda havia desigualdade econômica entre os cidadãos da Alemanha nazista
(assim como havia na União Soviética, mas isso não interessava à narrativa), e
como os nazistas mantiveram alguns dos termos técnicos de uma sociedade
capitalista — especificamente, ainda havia a existência superficial de
propriedade privada, ainda que em termos meramente nominais —, isso já bastava
para serem vistos como o exato oposto de seus congêneres comunistas.
E então, quando os nazistas invadiram a União Soviética,
Josef Stálin e seus lacaios recorreram à nova narrativa comunista para redefinir
o socialismo nazista — o qual, embora não fosse marxista, se baseava nas
teorias dos socialistas alemães originais que influenciaram diretamente as idéias
de Marx — como "capitalista".
De acordo com essa nova narrativa, os nazistas
estavam na etapa suprema do capitalismo, a qual seria a pior de todas.
Em uma época em que vários membros da intelligentsia européia estavam
encantados com a União Soviética, essa narrativa de que os nazistas eram
capitalistas passou a ser uma falácia extremamente conveniente. Mas trata-se de
uma ideia sem o mais mínimo fundamento em princípios econômicos. É apenas uma deturpação
soviética com base no arcabouço marxista. Os nazistas, que apregoavam
orgulhosamente seu socialismo e que implantaram políticas socialistas com
grande consistência, passaram a ser chamados de capitalistas pelo simples
motivo de que eles não se encaixavam pristinamente na visão de mundo
soviético-marxista.
Esta narrativa segue viva até hoje.
[1] Buffalo
wings, ou asas de Búfalo, nada
mais são do que asas de frango apimentadas. O nome se deve ao fato de tal
prato ter sido inventado na cidade americana de Buffalo, Nova York.
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também:
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tão odiado quanto o nazismo, embora tenha matado muito mais?
Socialistas, comunistas e
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de Marx