quinta-feira, 22 mar 2018
Este ano é o 30º aniversário do segundo debate sobre o problema do cálculo
econômico em uma economia socialista.
Este segundo debate começou com um artigo
publicado por Israel Kirzner em 1988 no periódico Review of Austrian
Economics, no qual ele analisava o debate original entre Mises, Hayek e os
"socialistas de mercado" (como Oskar Lange, que acreditavam que o socialismo
poderia funcionar caso os planejadores centrais "imitassem" o mercado em suas
planilhas), com o intuito de apresentar algumas lições para os austríacos
modernos. O artigo gerou várias respostas dos austríacos associados ao Mises
Institute.
Eis a questão:
a) Mises dizia que o problema do socialismo é que a
ausência de propriedade privada dos meios de produção impede o surgimento de preços de
mercado, o que por sua vez torna impossível fazer cálculos econômicos sobre
lucros e prejuízos, tornando toda a alocação de recursos escassos irracional e
ineficiente.
b) Já Hayek dizia que o grande problema do
socialismo é o fato de as informações estarem naturalmente
dispersas por toda a sociedade, sendo impossível a um grupo de planejadores
centrais apreender todas essas informações, utilizá-las corretamente e
convertê-las em produção racional. Consequentemente, é impossível esse comitê
central gerenciar a economia e fazê-la produzir de forma otimizada. Para Hayek,
portanto, o problema do socialismo está enraizado na ignorância ou falta de
conhecimento da autoridade central de planejamento.
Sendo assim, a pergunta é: seria útil distinguir a
posição de Mises da de Hayek, ou seria melhor se referir a elas como a posição
Mises-Hayek? A mim me parece claro — principalmente após minha última e
cuidadosa releitura de Ação Humana (para
escrever meu livro Escolha) —
que Mises e seu "problema do cálculo econômico sob o socialismo" é bem
diferente do "problema do conhecimento" hayekiano. Com efeito, a importância
colocada por Mises na questão do cálculo econômico é devastadora para o
argumento socialista.
Mises
não estipula que haja conhecimento disperso
Deixe-me enfatizar: os famosos artigos de Hayek
sobre "o problema do conhecimento" — principalmente o seu "O Uso do Conhecimento na
Sociedade" — são obras-primas de leitura obrigatória.
Ainda assim, todos os problemas enfatizados por
Hayek, como conhecimento disperso, conhecimento tácito e o fato de os preços
serem um mecanismo eficiente para a transmissão de informações — nada disso representa a falha fundamental
que Mises atribuiu ao socialismo.
Desde o início, quando Mises começou a destrinchar
os problemas do socialismo, ele partiu do princípio, para o bem do debate, que
o planejador central de um regime socialista era um ser não apenas totalmente
bem intencionado, como também já usufruía todos os conhecimentos técnicos
relevantes à sua disposição.
Apenas para deixar claro, no mundo real, esses
problemas enfatizados por Hayek de fato
existem e são incontornáveis: seria humanamente impossível que um ditador
socialista conseguisse apreender todos os "fatos existentes e dispersos ao
longo de toda a economia do país", e absorvê-los em sua mente de modo a tomar
decisões boas e racionais.
No entanto, mesmo levando em conta esta
impossibilidade prática, Mises, pelo bem do debate, pressupôs que o comitê
central socialista seria formado por homens iluminados, oniscientes e
perfeitamente capazes de apreender e reunir todo o conhecimento disperso na
sociedade. E, ainda assim, afirmou Mises, esses planejadores socialistas
estariam perdidos e tateando no escuro.
Mesmo sendo detentores de todo o conhecimento
existente na sociedade, os planejadores socialistas simplesmente não teriam
como avaliar se os recursos escassos — recursos naturais, bens de capital e
mão-de-obra — à sua disposição estariam sendo empregados da melhor maneira
possível. Os planejadores socialistas não teriam como mensurar a eficiência econômica de seu plano para
os recursos da sociedade.
Eis, resumidamente, o argumento de Mises:
1) Sob o socialismo, os meios de produção (fábricas,
máquinas, ferramentas e mão-de-obra) não possuem proprietários privados. Eles
pertencem ao estado.
2) Se os meios de produção pertencem exclusivamente
ao estado, não há um genuíno mercado entre eles.
3) Se não há um mercado entre eles, é impossível
haver a formação de preços legítimos para esses meios de produção (o que inclui
os salários da mão-de-obra).
4) Se não há preços, é impossível fazer qualquer
cálculo de custos. E sem cálculo de custos, é impossível haver qualquer
racionalidade econômica na alocação, o que significa que uma economia planejada
é, paradoxalmente, impossível de ser planejada.
5) Sem preços, não há cálculo de lucros e prejuízos,
e consequentemente não há como direcionar o uso de meios de produção para
atender às mais urgentes demandas dos consumidores da maneira menos dispendiosa
possível.
Dado que a própria essência do socialismo é a
propriedade coletiva dos meios de produção, e dado que tal arranjo não permite
o surgimento de preços de mercado, e dado que sem preços não há o mecanismo de
lucros e prejuízos, que é o que traz racionalidade para qualquer processo
produtivo, o comitê de planejamento central não seria capaz nem de planejar nem
de tomar qualquer tipo de decisão econômica racional.
Suas decisões necessariamente teriam de ser
completamente arbitrárias e caóticas.
Consequentemente, a existência de uma economia socialista planejada é
literalmente "impossível".
Assim, parece óbvio que aquilo que Mises rotulou de
"o problema do cálculo" não era, e nem poderia ser, "o problema do
conhecimento" associado a Hayek. Apontar isso não significa, de modo algum,
desmerecer a importância do problema do conhecimento; é simplesmente observar
que ambos representam falhas distintas do socialismo.
A
resposta inicial de Hayek para os "socialistas de mercado"
É possível obter outras evidências de que Mises e
Hayek não estavam dizendo coisas idênticas quando nos lembramos da famosa
reação de Hayek à "solução matemática" que alguns economistas propuseram em
resposta a Mises.
Especificamente, H.D. Dickinson, em 1933, argumentou
que Mises havia exagerado quando afirmou (originalmente em um artigo de 1920, em
alemão) que seria impossível para os planejadores socialistas arranjarem
racionalmente as questões econômicas. Treinado na tradição walrasiana do
equilíbrio geral, Dickinson alegou que um planejador socialista só precisaria
saber as relevantes funções matemáticas da produção, a oferta de recursos e as
preferências dos consumidores para poder determinar um plano eficiente. Afinal,
os economistas matemáticos já faziam isso: munidos apenas destas poucas
informações, eles eram capazes de gerar um modelo matemático de "equilíbrio
competitivo". Sendo assim, por que um planejador socialista não poderia, pelo
menos em princípio, fazer a mesma coisa para o mundo real?
Em resposta, Hayek, em 1935, argumentou que tal
solução matemática "não é uma impossibilidade no sentido de ser logicamente
contraditória". Mas rejeitou essa tese como sendo uma resposta séria ao desafio
de Mises porque
o
que é relevante na prática, neste quesito, não é a estrutura formal do sistema,
mas sim a natureza e a quantidade de informações concretas necessárias caso o
objetivo seja obter uma solução numérica. E a magnitude da tarefa necessária
para se obter esta solução numérica é humanamente impossível.
Creio que todos podemos concordar com Hayek quando
ele diz que os socialistas que defendiam um sistema walrasiano de equações com
o objetivo de "resolver" o problema econômico do socialismo estavam totalmente
iludidos caso honestamente acreditassem que isso iria funcionar. Ainda assim, a
reação de Hayek aboliu uma das condições
que Mises havia estipulado.
Em seu ataque original, Mises não argumentou que os
planejadores socialistas não seriam capazes de processar, em tempo real,
informações dispersas. Não, Mises enfatizou repetidamente que haveria uma ausência categórica de apenas de um tipo
especial de informação (se quisermos utilizar essa palavra), a qual só poderia ser produzida em meio a
instituições de mercado.
Não é algo meramente pedante alguns austríacos
atuais dizerem que Hayek suavizou a crítica que Mises havia feito. Em um famoso
(e presunçoso) artigo de 1936, Oskar Lange primeiro faz uma homenagem em tom de
zombaria a Mises — dizendo que os futuros planejadores socialistas deveriam
erigir uma estátua a ele —, e então argumentou que Hayek havia diluído as
afirmações arrojadas de Mises:
Assim,
o professor Hayek e o professor Robbins [em sua ênfase na descomunal quantidade
de equações que seriam necessárias para implantar uma solução matemática para a
economia socialista] abandonaram o ponto essencial feito pelo professor Mises,
e recuaram para uma linha de defesa secundária. Em princípio — admitem eles
—, o problema é solucionável, e não se pode duvidar que um economia socialista
pode resolvê-lo por meio de um simples método de tentativa e erro, assim como é
feito em uma economia capitalista.
Não creio que Lange estivesse apenas fazendo um
ataque rasteiro neste ponto. Creio que ele está corretamente apontando que a
concessão feita por Hayek em relação à possibilidade lógica da "solução
matemática" é algo que o próprio Mises jamais teria escrito. Com efeito, em seu
livro de memórias Notes
and Recollections, Mises se refere a esses economistas que tentavam
criar soluções matemáticas para o socialismo. Diz ele: "Eles foram incapazes de
ver o principal desafio de todos: como pode a ação econômica, que consiste em
decisões de preferir e descartar — ou seja, de fazer valorações desiguais
sobre as coisas —, ser transformada em valorações iguais e em equações?"
Algo
completamente novo
Quando um economista acadêmico convencional —
treinado no uso das funções de produção Cobb-Douglas e nas funções de utilidade
Neumann-Morgenstern — se depara com esta frase de Mises, ele
compreensivelmente revira os olhos e critica este "antiquado" pensador
austríaco. "Ora, mas é claro que podemos usar equações para modelar a ação
humana na economia!", diz o economista moderno. "De que outra maneira as
pessoas em nossa economia moderna usam números? Se o consumidor médio é capaz
de fazer tais juízos de valor, então o que impede que professores treinados e
encastelados em suas Torres de Marfim ou mesmo planejadores centrais
oniscientes façam o mesmo?".
E, ainda assim, esse é apenas o outro lado da moeda.
Mises não apenas identificou a falha crucial do socialismo, como também
explicou como uma economia de mercado resolve
o problema.
Mais especificamente, a instituição da propriedade privada e o uso
de um meio comum de troca (dinheiro) permitem o surgimento de genuínos preços de mercado para todos os bens e
serviços disponíveis. Consequentemente, empreendedores tornam-se capazes de
fazer os cálculos monetários necessários
e, com isso, incorrer em projetos que acreditam ser lucrativos e evitar aqueles
em que acreditam que terão prejuízo.
É este processo de mercado que permite a um sistema
capitalista alocar recursos eficientemente, ao passo que um sistema socialista,
por não ter esse sistema de preços livremente formados (por causa da ausência
de propriedade privada dos meios de produção), não consegue o mesmo — nem
mesmo "em princípio".
Em minha opinião, foi Joe
Salerno quem apresentou a melhor e mais sucinta explicação, em um
artigo de 1994:
Vejo
o ato de se fazer avaliações e estimativas como algo que não é nem conhecimento
e nem aritmética, mas sim algo completamente novo, introduzido ao mundo somente
quando os pré-requisitos institucionais de uma economia de mercado estão
presentes.
Desta
forma, o processo social de avaliação e estimativa transcende as operações —
puramente individuais — de conhecimento e cálculo, ao mesmo tempo em que as
complementa ao criar as indispensáveis condições para as escolhas racionais
feitas por empreendedores e proprietários de recursos que operam dentro de um
sistema de divisão do trabalho. [Negrito meu]
Deixe-me tentar colocar dessa maneira: quando usamos
um termômetro para mensurar a temperatura dentro de um forno de uma padaria, o
aparelho nos transmite informação. Há um verdadeiro e objetivo "fato da
realidade", que é a energia cinética das moléculas de ar indo, voltando e
colidindo entre si dentro do forno, e o termômetro é uma maneira imperfeita de nos
transmitir esses dados de uma forma que nossa mente possa compreendê-los e
incorporá-los em nossas decisões.
Mas a questão é que não há nenhuma dúvida de que o interior
do forno realmente possui uma
temperatura, independentemente de nós a mensurarmos ou não com um termômetro.
Em contraste, se perguntarmos "Qual é o valor econômico do forno?", aí já
teremos uma pergunta fundamentalmente distinta. Este não é um fato objetivo incrustado e enraizado no arranjo das coisas.
A pergunta leva em contra todas as preferências subjetivas de todas as pessoas
do planeta, bem como suas expectativas quanto à possibilidade de transformar a matéria
em formas distintas.
Trata-se, com efeito, de uma pergunta estonteante e
desconcertante, a qual só pode ser respondida
se você estiver atuando dentro de uma economia de mercado e for capaz de fazer estimativas
sensatas e bem informadas sobre o quanto as pessoas estariam dispostas a pagar
pelo forno.
Conclusão
Mises e Hayek foram ambos economistas brilhantes que
fizeram numerosas e valiosas contribuições para a tradição austríaca. No entanto,
não é correto se referir à "posição Mises-Hayek" no famoso debate sobre o
cálculo econômico no socialismo, pois fazê-lo obscurece o entendimento
misesiano do cálculo, o qual é necessariamente um cálculo monetário e não um problema de conhecimento.
Embora intelectuais e acadêmicos devam sempre exercitar
a cortesia em suas avaliações, é necessário separar argumentos distintos que às
vezes são agrupados como se fossem iguais.