Nota do editor
O artigo abaixo é uma adaptação de um discurso
proferido no Fórum
da Liberdade ocorrido em Porto Alegre em abril de
2018. Daí seu tom mais coloquial.
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Acreditamos que a lei deve ser justa, deve fazer o
bem, e deve evitar e punir o mal.
Acreditamos que os problemas surgem quando a lei é
desrespeitada, corrompida, e não aplicada.
E, óbvio, o que todos nós queremos é estado de
direito (e não estado de exceção), segurança jurídica, império da lei, e
governo das leis (e não o governo dos homens).
Mas há um problema: a lei é feita por homens.
Consequentemente, essa mesma lei que queremos ver
sendo cumprida e aplicada pode também ser injusta, ineficiente e geradora de
corrupção. Mais ainda: pode se tornar ferramenta de poder, de pilhagem e de
controle social.
Eis alguns exemplos.
1) Acreditamos que deveríamos ser todos
iguais perante a lei. Este é o princípio da isonomia e da igualdade formal e
jurídica.
Mas é a própria lei que, às vezes, cria diferenças.
É a lei que cria diferenças entre quem tem foro
privilegiado e quem tem a justiça comum.
Entre terra privada e terra estatal — na terra
privada, alguém pode exigir o usucapião; na terra estatal, nunca.
Entre trabalhadores privados que pagam impostos e
burocratas estatais que recebem impostos e salários acima do de mercado.
É a lei que cria diferenças entre quem pode e quem
não pode. Entre quem pode tudo e quem nada pode.
2) Acreditamos que o estado deveria
aplicar a lei.
Mas são os entes do estado os primeiros a não
respeitarem a lei.
Quando, por exemplo, fazem o impeachment de um(a)
presidente, mas não retiram seus direitos políticos.
Quando confiscam depósitos judiciais de terceiros
para pagar os rombos nas contas estatais, que eles próprios fizeram.
São eles que não respeitam as leis, com encontros
fora da agenda e com salários acima do teto.
3) Acreditamos que a lei deveria limitar
o poder.
Mas é a própria lei que dá poder, ao ponto de muitos
quererem virar juristas e advogados exatamente para ter poder, favores,
privilégios e dar "carteiradas".
É a lei que concede privilégios como carros oficiais
com motoristas, auxílio-moradia, auxílio-transporte, auxílio-creche,
auxílio-educação, auxílio-funeral, auxílio plano de saúde, reembolso por
despesas médicas e odontológicas não cobertas pelo plano de saúde, além de
cafezinho, vale-terno e sofá no gabinete.
Todas essas leis estão na Constituição — a qual,
não por acaso, é a terceira
mais longa do planeta—, e são elas que dão poder ao estado e oneram o STF.
A vagueza da lei sempre deixa alguma margem de
interpretação e muita margem de poder.
Como já dizia a máxima, "aos amigos, os
favores; aos inimigos, a lei".
4) Acreditamos que a lei deve ser moral.
E até acreditamos que ela é moral.
Mas esquecemos que a escravidão foi legal, que os
campos de concentração foram legais, que o apartheid foi
legal, que o fundo eleitoral é legal, que as desapropriações nas favelas e nas
periferias são legais, que ambulantes e mendigos são legalmente retirados todos
os dias das calçadas "com a força de lei".
Esquecemos de que o BNDES, legalmente, retira 9% do
PIB e redistribui
dos pobres para as grandes empresas.
A verdade é que a lei acaba com a
moralidade.
Quando, por exemplo, o estado finge que está
redistribuindo recursos para os pobres, isso gera uma consequência nefasta:
as pessoas deixam
de ajudar os desvalidos, pois pensam: "Eu já fiz a minha parte; já
paguei impostos."
Ou quando o estado institui, por exemplo,
prioridades nos caixas e nos ônibus. A consequência natural é que, quando chega
uma gestante ou um idoso a um caixa normal ou a um assento normal, as pessoas
não os deixam passar, pois pensam que, afinal, há o caixa e o assento
específicos para eles.
Confundimos lei com moralidade e, consequentemente,
acabamos nos tornando meros robôs obedientes e amorais.
5) Acreditamos que a lei deve promover
um ambiente econômico eficiente.
Mas é a própria lei que gera ineficiências, quando
torra, por exemplo, bilhões de dinheiro de impostos com Copa do Mundo, Olimpíadas e
estádios (elefantes brancos) em Manaus e Brasília.
Foi por lei que se instituiu e que se administra o
BNDES, o maior banco de desenvolvimento do mundo (maior que o Banco Mundial), o
qual não gera
desenvolvimento nenhum. Deveria se chamar BNSUB: Banco Nacional do
Subdesenvolvimento.
É por lei que se faz protecionismo, o qual prejudica o pobre e premia
o rico bem conectado ao governo. Foi assim que o Brasil virou uma das
economias mais
fechadas do planeta.
É por lei que se exigem autorizações, concessões,
alvarás, cartórios, filas, licenças e variados carimbos, ao ponto de o Brasil
estar nos últimos lugares nos rankings de liberdade econômica do planeta (posição 153 em 180, um pouco
antes de Cuba, Venezuela e Coreia do Norte).
Este não é um estado que redistribui dos ricos para
os pobres; é um estado
que impede os pobres de ficarem ricos.
6)
É por lei que, diariamente, hiper-regulamentam
a nossa vida.
Eis alguns casos mais recentes: rádio obrigatório
nos celulares, regulação do esporte eletrônico, proibição de descontos para
mulheres em bares e boates, segunda-feira sem carne, revisão obrigatória do ar
condicionado, kit anti-incêndio nos carros, proibição do sal na mesa, proibição
de cobrança para orçamentos (não existe orçamento grátis!), proibição de cobrar
para se sentar na mesa do bar.
Já houve até uma lei para decidir se a
espuma do chope podia ser considerada parte do chope (!).
Recentemente, foi instituído o "Dia
nacional do desafio" — em todas as últimas quartas-feiras de maio,
todas as empresas devem fazer 15 minutos de ginástica. (Como o sábado fascista
de Mussolini, quando as pessoas eram obrigadas a fazer ginástica em Praça
pública)
Desde 1988, foram aprovados 5,4
milhões de dispositivos legislativos (769 por dia). Só em nível
federal foram 15,96 por dia. Considerando os três entes federativos, tem-se uma
média de 217 mil leis em cima de cada um de nós.
7)
E, ainda assim, muitos repetem que "o Brasil tem boas leis; o problema é
que não são aplicadas".
Errado. O Brasil tem leis demais. Se todas fossem
aplicadas perfeitamente, o país simplesmente pararia — exatamente como já
ocorre com o mercado de trabalho, estagnado pelas leis trabalhistas.
É esta visão fantástica das leis que faz com que, em
todas as universidades do país, seja ensinada a visão do "direito como ferramenta de
mudança social" — isto é, a ideia de utilizar o direito para plasmar
e moldar a sociedade segundo os próprios caprichos. E geralmente com idéias
socialistas mascaradas.
Trata-se de pura engenharia social, puro coletivismo,
puro totalitarismo jurídico.
Ao passo que, no resto do mundo, o direito é um
simples "método de resolução de conflitos", aqui no Brasil a regra é
criar mais conflitos por meio da "judicialização das relações
sociais", algo que muitos até celebram. E os advogados agradecem —
afinal, a indústria do dano moral gera milhões de causas lucrativas.
É esta visão da lei que cria o fenômeno do fiscal
"que se acha importante e 'empoderado'", com um crachá a marcar seu
status. Segundo ele, "o Brasil não dá certo porque a lei não é aplicada;
se fosse, seríamos uma Suíça!".
E, finalmente, é ainda por causa desta visão que as
pessoas chegam até a delatar o próprio vizinho porque ousou cortar uma arvore
na própria propriedade ou porque deu um tapa no filho. Delatar o próximo ao
Príncipe é uma mentalidade típica da SS nazista. Mas, para o estado, é
perfeito, pois isso, além de representar uma terceirização da fiscalização,
joga as pessoas umas contra as outras, consolidando ainda mais seu poder.
8)
E, com tudo isso, as pessoas ainda repetem que "falta fiscalização!"
Mas o que acontece de fato é o seguinte: a grande
empresa corrompe diretamente o legislador para fazer uma regulação que irá encarecer os processos de
produção de todo o setor em que atua.
Por que ela faz isso? Porque, ao encarecer artificialmente o empreendimento
neste setor, está criando dificuldades para os concorrentes menores, bem como
impedindo a entrada de novos concorrentes. A grande empresa, rica, consegue
bancar tranquilamente esse aumento artificial dos custos. A pequena, não.
Como consequência, quando o fiscal vai "fazer seu trabalho de
fiscalização" e flagra o pequeno comerciante em desacordo com esta lei
corrupta, ao comerciante não resta alternativa senão pagar a multa ou pagar o
fiscal.
Só que a lei é feita exatamente para gerar essa
situação.
9) Acreditamos que a lei deva evitar e
punir a corrupção. Afinal, a corrupção é exatamente desviar do fim oficial e
mais nobre da lei, e desviar recursos e
dinheiro.
Mas é a própria lei a gerar corrupção.
Empresas estatais e bancos estatais servem para ser (legalmente)
aparelhados e ter seus cargos loteados por políticos e seus apadrinhados. Servem
também para (legalmente) fazer licitações para obras
em que as empresas amigas serão as ganhadoras.
A hiper-burocracia reinante em nossos portos, os
mais lentos do mundo, serve exatamente para que, em um determinado momento,
um empregado do porto apareça e apresente uma "alternativa", um
"jeitinho" para despachar ou desembarcar a mercadoria mais
rapidamente
O superfaturamento das obras de infraestrutura não é
um "erro", não é uma "falta de planejamento". Ao contrário:
é um planejamento extremamente esperto. A obra para se construir uma ponte é
contratada exatamente para se desviar dinheiro: a empreiteira selecionada é
amiga do político responsável pela estatal ou pelo ministério, e irá cobrar um
preço superfaturado em troca da propina que pagou ao político para ser a escolhida.
O dinheiro da obra vem dos nossos impostos. E a construção efetiva da ponte
representa o custo legal para se fazer esse desvio.
Ou seja: há um custo para o dinheiro ser legalmente
desviado, e esse custo é a ponte.
Com a merenda escolar ocorre o mesmo. Gritar
"roubaram a merenda de meu filho" é algo que pode render notícias de
jornal, mas, assim como a construção da ponte, o objetivo claro do programa
sempre foi desviar dinheiro. E o custo de fazer esse desvio, para os
envolvidos, é ter de nos dar algumas merendas.
O que nós chamamos de corrupção é, na verdade, o
objetivo real dos políticos. É a função normal do estado.
Para concluir
Existe uma grande — e quase intransponível —
diferença entre lei e legislação.
Isso de que estamos falando e na qual geralmente
pensamos é a legislação (e não lei).
As leis são as leis da economia (como a lei da
demanda e da oferta) ou as leis naturais.
A lei é um fenômeno descritivo, espontâneo, de baixo
para cima, natural.
Já a legislação é um fenômeno prescritivo, de cima para baixo, impositivo, um
fenômeno político.
A legislação é a mera vontade do Leviatã.
Sim, temos de respeitar a lei e temos de tentar
melhorar a lei. E o que estes dois grandes juízes aqui fizeram [Sérgio Moro
e Antonio
di Pietro participam do painel] para domar a besta é
fundamental.
Mas não basta.
Temos de revirar o estado do avesso. Temos de
reverter a estrutura do estado. Temos de mudar sua função. Temos de limitar
o impacto de seus
incentivos perversos. Temos de fazer tudo isso para que a lei seja mais
poderosa que a legislação. Para que sejam eles — os membros do estado — a
obedecer a nós, e não o contrario.
Temos de diluir o poder político ao máximo possível,
descentralizar de Brasília para os estados, os municípios, os bairros, para que
assim nós possamos fiscalizar o Príncipe. E
também para que possamos ter diferentes sistemas jurídicos concorrendo entre
si. Só assim poderemos experimentar e testar os melhores, emular os casos de
sucesso e evitar os casos de fracasso. Métodos privados de resolução de conflitos,
como a arbitragem, têm de ser ampliados para mais esferas.
E, especialmente, temos de fazer uma divisão clara e
forte entre economia
e política, para minimizar o conluio, os lobbies, os poderes dos grupos de
interesse e, por consequência, a própria corrupção.
Temos, em suma, de tirar a política da nossa vida.
Recordo aqui um depoimento de uma senadora famosa ao
TRF-4 (de Curitiba), no qual ela estava sendo perguntada se sabia sobre
nomeações políticas nas empresas estatais. Ela respondeu: "Sim, claro, mas
esta é a lógica da política. Assim como judiciário tem sua lógica, a política
também. Vocês estão querendo criminalizar a lógica da política!"
Sim, caríssima senadora. Queremos criminalizar a
lógica política porque esta lógica da política é criminosa.
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Leia também:
Os vários mitos sobre a
corrupção