quinta-feira, 26 set 2019
Nota do Editor: uma versão mais sucinta deste artigo foi inicialmente publicada no jornal Folha de S. Paulo
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Na semana passada, um inesperado aperto
de crédito atingiu os bancos americanos.
A taxa de juros das operações compromissadas, o repo rate, do nada e inesperadamente,
saltou de 2% para 10%, muito acima do teto determinado
pelo banco central americano (o Fed) para o juro de curto prazo, que
estava em 2,25% ao ano.
Todo o sistema financeiro tremeu.
Ato contínuo, o Fed teve de fazer seguidas
injeções de liquidez neste mercado. Quando foi a última vez que isso
ocorreu? Imediatamente antes da crise financeira de 2008.
O que tudo isso significa?
Vamos por partes.
O
que é
Operações compromissadas significam "operações com
compromisso de recompra". Em inglês, repurchase
agreements. Daí a abreviação mais popular para repo.
De maneira extremamente sucinta, trata-se de um
mercado ao qual bancos, fundos de investimento (hedge funds), corretoras, operadores de mercado etc. recorrem para obter
financiamento (e fazer empréstimos) de curtíssimo prazo.
Se um banco ou um fundo de investimento necessita de
fundos para cumprir uma obrigação de curto prazo, e outro banco ou outro fundo
de investimento está com fundos sobrando, o segundo empresta para o primeiro.
Especificamente, o emprestador repassa dinheiro para
o tomador, e o tomador entrega, como garantia, algum ativo para o emprestador,
normalmente um título público.
Passado o prazo do empréstimo, que normalmente é de
uma noite (overnight), o tomador do empréstimo
recompra o ativo que repassou ao emprestador. Daí, repurchase
agreement, acordo de recompra.
É exatamente neste mercado, que é regulado pelo
Federal Reserve (o Banco Central americano), que montanhas de dinheiro e
montanhas de títulos se encontram. Por meio do repo, grandes investidores — como fundos de investimento — ganham
dinheiro ao emprestarem, por um curto período de tempo, dinheiro que
normalmente ficaria parado. Estes empréstimos permitem que bancos e corretoras
obtenham financiamento de curto prazo. Em troca, como dito, repassam ao
emprestador títulos que possuem. Essa é a garantia do empréstimo. Findado o período
do empréstimo, esse titulo dado como garantia será recomprado.
É um mercado repo
saudável o que permite que todas as demais transações financeiras da economia
ocorram suavemente. É neste mercado que US$ 16 trilhões de títulos da dívida
pública americana são transacionados.
O
que houve
Desde a semana passada, começaram a haver "vazamentos".
O dinheiro, repentinamente, ficou escasso. Os títulos públicos continuavam a
ser ofertados em troca de financiamento de curto prazo, mas não mais havia
dinheiro a ser emprestado. O dinheiro sumiu do encanamento.
Consequentemente, a taxa de juros do mercado saltou
de 2% para 10%.

Desde então, o Fed passou a injetar liquidez
diariamente neste mercado. E a demanda
por esta liquidez não está cedendo.
Como
interpretar
Esse abalo surpreendente me remeteu ao passado.
Há 12 anos, no dia 9 de agosto de 2007, abri a planilha
com meu painel de controle repleto de indicadores financeiros e empalideci. O
principal indicador de risco que eu acompanhava havia saltado de 50 pontos
no dia anterior para mais de 100 pontos!
Ato contínuo, o Banco Central Europeu injetou
US$ 130 bilhões no setor bancário. O mercado não deu importância. No dia
seguinte, a história não estampou a capa dos jornais financeiros.
Foi útil: não se ganha dinheiro com notícias de capa
de jornal, mas com notícias da página 15 em vias de migrar para a capa.
Naquela quinta-feira iniciou-se o desenrolar, em
câmara lenta, da maior crise internacional desde a Grande Depressão da
década de 30: a "crise
de 2008".
Entre mais de 20 indicadores, eu monitorava com lupa
o risco do setor bancário via o outrora obscuro Ted Spread, que é calculado pegando a diferença entre a taxa de
juros do título público americano de 3 meses e a taxa Libor. Esse indicador é
utilizado pelos diminutos e pouco charmosos departamentos de "money market" dos
bancos de Wall Street e da City de Londres.
Esse spread — diferença entre a taxa que bancos
emprestavam entre si (Libor) e a taxa livre de risco (titulo de 3 meses do
Tesouro americano) —, indicava em tempo real o risco de crédito dos maiores
bancos internacionais bem como a disponibilidade de caixa no mercado
interbancário.
O interbancário é o mercado de empréstimos de
curtíssimo prazo no qual bancos negociam entre si sobras e furos de caixa em
bases diárias. Aqui no Brasil é o mercado que forma a taxa Selic (de
empréstimos com garantia de títulos) e a do CDI (sem garantia).
Por se basear naqueles empréstimos sem garantia, o
Ted Spread mede em particular o risco que os bancos emprestadores enxergam nos
demais bancos tomadores. Quanto mais alto, maior o risco. Em julho de
2007, esse indicador estava em 0,54. Ao final de agosto, estava em 2,42. Já em
outubro de 2008, chegou a 4,48. Confira aqui.
O mercado interbancário é como o encanamento da
economia. Se a água, a liquidez, deixar de fluir livremente nesse imenso
condomínio integrado e mutuamente dependente que utiliza dólares, a economia
sofrerá um baque tempo depois.
No sentido inverso, se houver um excesso de
impurezas da economia sendo introduzido nos canos (um alto estoque de dívidas
podres, por exemplo), o fluxo de liquidez tende a se interromper, o custo do
serviço dos encanadores momentaneamente dispara (a taxa de juros sobe), e a
economia mundial sofre um infarto. É o que prevê a TACE, teoria austríaca dos
ciclos econômicos.
A questão é identificar se a anomalia da semana
passada pode ser resolvida com um mero desentupidor ou se revela problemas
estruturais graves, como vazamentos em massa.
Minha suspeita é que há complicações estruturais. A
colossal liquidez acumulada desde 2009 nas caixas d'água de bancos, companhias
americanas, fundos soberanos e bancos centrais, algo como US$ 10 trilhões
adicionais criados a partir das políticas de afrouxamento monetário (QE), não
foi capaz de impedir a interrupção abrupta do fluxo de liquidez. Não faz
sentido.
É bem verdade que o Fed vinha enxugando parte
do que injetou anteriormente, reduzindo o caixa dos bancos em US$ 1,5
trilhão. Mas ainda há enorme liquidez ao redor do mundo.
O
que esperar
Por enquanto, o Fed tem enfrentado o distúrbio com
um desentupidor gigante, um afrouxamento de liquidez light. Ele anunciou que pretende
injetar US$ 75 bilhões neste mercado até o fim de outubro.
Suspeito que em breve voltará ao afrouxamento quantitativo
(QE) maciço para inundar os canos, que, entretanto, seguem vazando. Após a "anomalia" de agosto de
2007, levou-se um ano para estourar a crise.
Quanto tempo levará agora? Por enquanto, tudo é
palpite. Não importa quão sólida seja a fundação: quando o encanamento entope,
é bom ficar alerta.