"É apenas um filme sobre um homem se afundando na
loucura", disse ele. "Só isso".
Assim me alertou o vendedor de ingressos na bilheteria
do cinema quando eu lhe disse qual filme queria ver: Coringa.
Muito estranho. Por que o bilheteiro foi instruído a
me alertar sobre o filme? Por que ele me apresentou esta análise prévia do
filme? Isso nunca aconteceu antes. A frase soou ostensivamente ensaiada, como uma
nota de advertência dada aos espectadores com o objetivo de prevenir algo que
vem preocupando as pessoas: a hipótese de que o caos fictício apresentado no
filme venha a inspirar
imitadores no mundo real.
Ainda assim, sua mini-análise de fato me trouxe alguma
tranquilidade. Eu me vi obrigado a ir assistir ao filme sobre o qual todos
estão falando. As cenas
prévias que vi já eram, por si sós, sinistras. A vida já é amarga o
bastante e não necessita de filmes nos introduzindo mais tristeza, e é
exatamente por isso que eu prefiro filmes mais edificantes. Mesmo assim, eu me
mobilizei para ir assistir a este filme.
O bilheteiro estava certo, mas apenas
superficialmente. É apenas um filme sobre um homem. Mesmo após sair do cinema,
eu ainda fiquei repetindo essa frase para mim mesmo. E, ainda assim, após o
término, vivenciei exatamente aquilo que muitas outras pessoas relataram. O
filme transmite uma aura da qual você não consegue se livrar. Você leva o filme
para casa. Você dorme com ele. Você acorda na manhã seguinte e vê aquele
maldito rosto novamente. Você
relembra, repassa e repensa várias cenas. E então você relembra
de mais coisas. E aí mais elementos passam a fazer sentido — não sentido
moral, mas sentido narrativo.
Assistir a este filme foi tremendamente
desagradável. Foram as duas horas cinematográficas mais difíceis das quais me
recordo. E foi assim porque cada quadro do filme é brilhante e emocionante. Você não consegue se desvencilhar. Não consegue se
desprender. A trilha sonora é perfeita. E o mais espantoso: a
atuação não parecia ser uma atuação.
Quanto à interpretação de que "é apenas um homem",
ela é difícil de ser sustentada. As cenas nas ruas. Os metrôs lotados de
pessoas usando máscaras de palhaço para ir às manifestações. O empresário rico
e estabelecido concorrendo a prefeito e os protestos que isso gera. A maneira
estranha como esta figura perturbadora e violenta se torna um herói popular nas
ruas. Certamente, há
algo muito mais amplo aqui.
Sim, eu já li boa parte das resenhas e,
principalmente, todo o cabo-de-guerra no Twitter sobre qual seria a verdadeira
ideologia do filme. Para alguns, ele é de extrema-esquerda e faz apologia da ideologia antifa.
Para outros, trata-se de um filme conservador que faz um alerta sobre as
consequências de políticas extremistas. Alguns gritam que o filme é uma calúnia
direitista contra a forte guinada à esquerda do Partido Democrata. Outros juram
que o filme é uma apologia esquerdista da revolta dos trabalhadores contra as
elites, na qual há a defesa explícita da máxima socialista de que ovos devem ser
quebrados para se fazer uma omelete. E, por fim, não faltaram conservadores
anti-establishment idolatrando o filme.
O problema é que nenhuma das narrativas explica as reviravoltas,
o desconforto e a ambiguidade que o filme cria dentro do espectador.
Eu demorei um dia inteiro para enxergar uma teoria
alternativa.
O
destrutivismo
A tese provavelmente diz respeito a todas as caracterizações
do Coringa tanto nos quadrinhos quanto no cinema, mas esta é particularmente
presciente porque se concentra exclusivamente na personalidade apresentada
neste filme, pois foi a primeira vez em que a história da vida desta personagem
é apresentada de maneira elaborada e detalhada.
Todo o problema começa com sucessivos fracassos na vida pessoal. Embora ele seja um homem
visivelmente perturbado, em alguns momentos você acredita que ele talvez não
tenha chegado ao ponto de se tornar um caso perdido. Ainda há cura. Ele pode voltar a funcionar bem. Ele
pode superar isso, assim como todas as outras pessoas aprendem a lidar com seus
próprios demônios. Joaquim Phoenix faz um excelente trabalho ao retratar a
personagem entrando e saindo da loucura, de maneira inconstante. Ele parece se
comportar bem ao lado da mãe e de sua breve namorada (aqui, não posso falar
mais do que isso para não gerar spoiler).
Ele possui interações que não são totalmente destruídas por sua excentricidade.
Entretanto, circunstâncias da vida continuamente o frustram
e lhe causam rancor, até que finalmente o empurram ao ponto em que ele perde
todo o amor pela vida que tem. E então ele renuncia a qualquer esperança e
passa a abraçar por completo a descrença e o niilismo como um meio de pensar e
de viver. Ele então passa a cometer atrocidades e descobre algo que lhe traz
poder e satisfação: sua consciência não lhe fornece um corretivo. Ao contrário:
as atrocidades que ele comete o fazem se sentir fortalecido, autoconfiante e
valorizado.
Revisando: sua vida não estava funcionando; ele
descobriu algo que finalmente passou a funcionar para ele; e então ele abraçou
essa descoberta.
E o que foi que ele descobriu e abraçou? Trata-se de
algo que possui um nome específico na história das idéias: Destrutivismo.
Não se trata apenas de uma predileção, de um pendor.
Trata-se de uma ideologia; uma ideologia que se considera capaz de moldar a
história e o sentido da vida. Esta ideologia diz que o único propósito da vida
de uma pessoa deve ser o de destruir tudo o que outras pessoas criaram,
inclusive a própria vida delas.
Esta ideologia se torna uma necessidade quando um
indivíduo passa a acreditar que não tem mais capacidade para fazer o bem;
quando ele acredita que fazer o bem se tornou praticamente impossível. E ele
adota esta ideologia porque ainda quer fazer alguma diferença no mundo, porque
quer sentir que sua vida ainda possui algum propósito, e porque fazer o mal é
fácil.
A ideologia do destrutivismo permite a um indivíduo
racionalizar que o mal que ele está praticando ao menos está preparando o
terreno para uma sociedade melhor no futuro.
Qual seria essa "sociedade melhor"? Pode ser
qualquer coisa utópica que se encaixe em sua mente. Pode ser um mundo no qual
todo mundo possui tudo igualmente. Pode ser um mundo sem felicidade ou um mundo
de felicidade plena e universal. Pode ser um mundo sem fé. Pode ser um mundo em
que todos vivem em autarquia sem nenhum comércio internacional. Pode ser uma
ditadura (uma sociedade em que todos obedecem a esta pessoa). Pode ser um mundo
que aboliu o patriarcado. Pode ser um mundo sem combustíveis fosseis. Pode ser
um mundo sem propriedade privada e tecnologia. Pode ser um mundo que aboliu a
divisão do trabalho. Pode ser um mundo de moralidade perfeita. Pode ser um
mundo de uma só religião.
Qualquer que seja o arranjo sonhado, ele é anti-liberal
e, consequentemente, é impraticável e inalcançável. Consequentemente, por ser
inexequível, seu proponente irá encontrar consolo e alívio não na criação de
algo, mas sim na destruição da ordem vigente.
A primeira vez que li sobre este conceito foi no
livro Socialismo,
escrito por Ludwig von Mises em 1922. Mises apresenta este conceito já ao final
da obra, após ter provado
que o socialismo é, em si mesmo, uma impossibilidade
prática. Se não há nada de positivo a ser feito, nenhum plano real para se
alcançar um arranjo tido como "socialmente benéfico" — porque toda a idéia é
completamente insana —, então você deve ou abandonar a teoria ou encontrar
satisfação na demolição da sociedade vigente. Os socialistas optam pela
segunda. Mises diz que tal atitude é muito óbvia no comunismo. No entanto, diz
ele, tal atitude também é presente nas versões mais leves do socialismo, como a
social-democracia, pois o objetivo de se atingir
o ideal utópico por meio de etapas é igualmente inalcançável na prática.
O destrutivismo, portanto, é uma psicologia de
escombros gerada por uma ideologia inexequível na teoria e na prática. O Coringa fracassou na vida.
Consequentemente, ele passa a ter como objetivo destruir a vida dos outros.
O mesmo comportamento têm aquelas pessoas que são
consumidas por uma visão ideológica a qual o mundo teimosamente se recusa a
adotar.
É por isso que qualquer interpretação sobre o filme
ser de direita ou de esquerda é excessivamente limitada. Em nossa atual era,
estamos empanturrados de personalidades midiáticas e políticas com visões
insanas sobre como a sociedade deveria funcionar. Não deveríamos nos
surpreender quando esses visionários recorrem à raiva, e então à desumanização
dos oponentes, e finalmente à criação de planos voltados abertamente a destruir
tudo o que já existe, apenas pelo prazer da destruição. Esse "tudo que já
existe" pode ser qualquer coisa: bilionários, consumo de energia, exploração de
florestas, comércio internacional, consumo de carne, diversidade, escolhas
humanas, pessoas degeneradas, pessoas tradicionalistas, ou mesmo a simples frustração
de um indivíduo ao constatar sua ausência de poder total e efetivo.
O destrutivismo é a segunda etapa de qualquer visão inalcançável
e impraticável sobre como a sociedade deveria ser em contraposição a uma
realidade que se recusa a se conformar à sua utopia.
Por fim, vale ressaltar que o destrutivismo também é
estranhamente cativante para movimentos políticos de esquerda e de direita ansiosos
em exteriorizar seus inimigos e em destruir toda e qualquer força que esteja no
caminho impedindo sua retomada de poder. Com o tempo, tais movimentos sempre acabam
encontrando satisfação na destruição — como um fim em si mesmo —, pois é isso
que os faz se sentir vivos e que fornece algum sentido à vida.
Conclusão
O Coringa, portanto, não é apenas um homem, não é
apenas um indivíduo maluco, mas sim a incorporação dos perigos insanos e
mórbidos associados a contínuos fracassos pessoais, os quais são reforçados por
uma convicção de que, quando há um conflito fundamental entre uma ideologia utópica
e a realidade, este conflito só pode ser resolvido pela criação de caos e sofrimento.
Por mais desagradável que seja, Coringa é o filme que temos de ver para entendermos — e,
consequentemente, nos prepararmos para — os horrores que esta mentalidade descontrolada
(utópica e, por isso mesmo, vitimista e derrotista) pode desencadear no mundo.
Em outras palavras, o Coringa já inspirou imitadores,
e vem fazendo isso há séculos. No caso, é o filme quem está imitando a
realidade.