Quem ganha com
a democracia? A se acreditar na resposta
padrão, são as massas — os demos --
que se beneficiam com um governo da maioria.
Essa noção, entretanto, já está desacreditada.
Étienne de La Boétie, em seu poderoso livro The
Politics of Obedience: The Discourse of Voluntary Servitude,
explica que um tirano domina em decorrência do consentimento do povo, já que
não existe qualquer outro meio de um homem controlar o destino de milhões.
Como o poder é sempre e em todo lugar algo inebriante
e corruptor, estaria o problema na ordem de governo? Embora seja verdade que, à medida que o poder
aumenta e se torna mais centralizado, a violência e o assassinato se tornam os
meios mais prováveis de se efetuar a transição entre regimes opressores, será
que podemos daí concluir que a democracia seria o melhor arranjo?
A democracia de fato permite transições pacíficas
entre duas elites governantes (ou, para sermos mais realistas, entre diferentes
facções da mesma elite). Provavelmente
ela seja o arranjo mais adequado para se transferir o poder sem derramamento de
sangue. Mas qual o benefício da
democracia para nós, as pessoas comuns?
Deveria você, por exemplo, celebrar aquelas raras ocasiões em que a
maioria, por meio do voto, chancela uma visão de mundo igual à sua? Afinal, mesmo um tirano irá, uma vez ou
outra, governar a seu favor.
Não, a democracia não é benéfica para aqueles que são
emancipados e cultuam a liberdade. Um
homem pode venerar a democracia durante o período em que ele está na maioria e
até mesmo apreciá-la quando suas visões não mais estão no poder. Mas seria isso uma forma de liberdade? Seria a liberdade nada mais do que aceitar as
decisões da maioria a todo o tempo e sob quaisquer custos?
A liberdade requer que cada indivíduo tenha o poder de
utilizar seu corpo e sua propriedade da maneira que mais lhe aprouver, desde
que tais ações não colidam com a liberdade de outrem. E quando as colisões ocorrerem, um juiz ou
arbitrador decide cada caso baseando-se nos direitos de propriedade — e nos
direitos de propriedade apenas.
Em uma democracia, a liberdade é simplesmente o
direito de votar a favor ou contra uma proposta ou um candidato, e então
aceitar a decisão da maioria. Caso não
aceite, você será submetido ao aparato da coerção e compulsão do estado. É assim que, essencialmente, a sorte política
de cada um é lançada, com o voto singular não tendo absolutamente qualquer
efeito. O eleitor deve obedecer
regiamente o resultado final, mesmo que discorde inteiramente dele — caso não o
faça, provavelmente irá perder sua propriedade e seus direitos de propriedade
no final. Esse arranjo em nada difere de
um arranjo em que, sob uma ditadura, o eleitor faz um voto simbólico e esse voto
não é contabilizado, uma vez que o resultado já está determinado pelos
caprichos do tirano.
Em ambas as situações o eleitor tem de aceitar a
vontade de outros. O direito ao voto — e
o direito de ter seu voto contabilizado — não muda nada.
A democracia favorece apenas aqueles que estão no poder, bem como todo o seu grupo de apoio. Ao
contrário dos regimes absolutistas do passado, a democracia é a única forma de
governo que fornece os meios mais consistentes para aqueles que estiveram no
poder poderem dormir e morrer em
paz. O mesmo se aplica para toda a nomenklatura e
seus apparatchiks e
cortesãos. Esses bajuladores, após a
invenção da democracia, não mais precisam temer traições, assassinatos e o
subsequente coroamento de um novo rei. A
elite e sua burocracia podem se aposentar tranquilamente em suas fazendas e
gozar o resto de suas vidas sem qualquer receio — suas riquezas e descendentes
estarão seguros, pagos regiamente pelo contribuinte "livre".
O grande ideal dos
pensadores liberais dos séculos XVIII e XIX, ao defenderem uma reforma política
que aboliria a monarquia e a autocracia, era libertar o indivíduo da tirania de
um homem só ou da tirania de alguns poucos sobre todo o resto. Mas eles também alertaram para um outro
perigo igual ou até mesmo maior: a tirania da maioria sobre a minoria, mesmo
que a minoria fosse composta de apenas um indivíduo. O ideal deles não era uma democracia
irrestrita, mas, sim, a liberdade individual assegurada por uma ordem
constitucional que limitasse os poderes do governo.
Os governos seriam formados
por homens com a única e exclusiva função de garantir e proteger esses direitos
individuais. Qualquer conceito de
"direitos humanos" que quisesse ter algum significado teria necessariamente de
se referir aos direitos individuais de seres humanos distintos. Não deveria existir um homem "coletivo". Afinal, tudo o que há são indivíduos
segregados que pensam, agem, avaliam, sonham e têm objetivos e propósitos que
guiam suas vidas.
Os liberais do passado
também enfatizaram que a liberdade nunca estará garantida caso as pessoas não
tenham os meios para viver suas vidas independentemente da — e algumas vezes em
oposição à — autoridade política. Essa é
uma das razões por que eles consideravam o direito à propriedade privada algo
essencial e crucial. A propriedade privada
dá a um indivíduo a propriedade e o controle sobre uma fatia dos meios de
produção — e é por meio disso que ele poderá escolher como e com qual propósito
irá viver sua vida. A propriedade
privada dá a ele um "território" que está sob sua própria jurisdição; ele
governa a si próprio em sua casa ou em sua propriedade. Na sociedade livre, ele pode criar seu "país"
pessoal dentro de sua propriedade privada, de modo que esse "país" represente
seus valores, ideais e desejos.
É verdade que nenhum homem
é uma ilha. O homem é um animal social
que precisa da assistência e da companhia de seus semelhantes. Porém, na sociedade livre, a associação
humana é produzida e estimulada pelo mercado e seu sistema social de divisão do
trabalho. O mercado é uma arena de
trocas pacíficas e voluntárias. A
premissa moral do mercado é que os homens são proibidos de utilizar a força e a
fraude em suas transações. A liberdade
que cada homem tem de viver e fazer suas escolhas deve ser respeitada pelos
outros integrantes da sociedade, assim como ele também deve respeitar a
liberdade destes.
Dado que a coerção é
proibida no mercado, se um homem quiser o companheirismo ou a cooperação de
outras pessoas ele terá de aprender a praticar a cortesia, a polidez, a
honestidade, a lealdade e as boas maneiras em todas as suas transações com
terceiros. Caso contrário, elas irão se
afastar dele e irão se associar e fazer negócios com outros que sejam mais
respeitosos e sensitivos. Assim, o fato
de que, no mercado, todas as interações são voluntárias e baseadas no
consentimento mútuo, resulta em homens se tornando mais civilizados e refinados
em suas relações com seus semelhantes.
Ademais, o mercado é muito mais democrático que a
arena política. No livre mercado, cada
indivíduo toma a sua própria decisão relativa a uma ampla variedade de bens e
serviços comercializáveis. Dada suas
preferências, sua riqueza e sua renda, ele compra a combinação de bens e
serviços que a seu ver irá melhorar a qualidade, o desfrute e os propósitos de
sua vida. Mais ainda: no mercado livre e
privado, suas decisões e escolhas não restringem diretamente as decisões e
escolhas de terceiros. Que um indivíduo
goste de comprar presunto e ovos para seu café da manhã em nada impede que
outro indivíduo possa comprar cereais e suco, ou que, ainda, um terceiro
indivíduo possa optar por não comprar nada para comer no início do dia e, ao
invés disso, opte por gastar seu dinheiro de alguma outra forma.
Os empreendedores e comerciantes que estão no lado da
oferta do mercado respondem às nossas diferentes demandas concorrendo entre si
para comprar e contratar os recursos, os bens de capital e os serviços de
mão-de-obra que serão utilizados para produzir os bens que o público consumidor
está demandando. Empreendedores e comerciantes
não podem obrigar os consumidores a comprar os bens e serviços que colocam no
mercado. Eles precisam persuadir o
público a fazer isso, tendo como base a qualidade e o preço dos bens que estão
postos à venda. Tampouco podem eles
forçar o público a trabalhar para eles, seja como fornecedores de recursos,
seja como mão-de-obra. Cada empreendedor
e comerciante concorre contra seus rivais pela compra e/ou arrendamento desses
recursos, bem como pelos salários pagos à mão-de-obra. E nenhum desses empreendedores e comerciantes
tem a certeza de que irá ter algum lucro ou mesmo equilibrar receitas e
despesas — a menos que os consumidores escolham comprar aquilo que foi colocado
à venda.
O que será produzido e a que preços esses bens serão
vendidos é algo que será determinado em última instância pelo público, que
"vota" com seu dinheiro naquilo que foi criado pelo mercado. Ao mesmo tempo, os resultados originados pelo
mercado são "pluralísticos". Isto é, o
mercado fornece uma forma de "representação proporcional". As minorias são ofertadas com bens e serviços
tanto quanto a maioria, dependendo apenas do quanto elas estão dispostas a
"votar" com seu dinheiro no mercado. De
fato, qualquer minoria de consumidores pode receber ao menos alguns dos bens e
serviços que desejam desde que estejam dispostas a — e sejam capazes de —
oferecer preços a esses bens e serviços; preços esses que sejam suficientes
para cobrir os custos nos quais o fornecedor irá incorrer para trazê-los ao
mercado.
Mas, sendo assim, não seria verdade que os
consumidores no mercado têm um número desigual de "votos" em termos da
quantidade de dinheiro que eles têm para demandar os vários bens e serviços que
desejam? Sim, isso é verdade. Mas em um mercado livre e competitivo, o que
determina o número de "votos" monetários que cada consumidor tem é reflexo da
renda que ele adquiriu como produtor, uma vez que ele também teve de ofertar
outros bens que os consumidores também desejaram comprar. Assim, a fatia de renda de cada indivíduo em
sociedade livre é reflexo do quanto os outros membros da sociedade pensam valer
seus serviços, do quanto eles valoram sua contribuição a um processo particular
de produção.
O pluralismo democrático da economia de livre mercado se
contrasta fortemente com o resultado oriundo do processo democrático
político. Os bens e serviços fornecidos
pelo governo não estão abertos às escolhas e tomada de decisões
individuais. Não podemos ser exigentes
na escolha dos bens e serviços governamentais em termos das quantidades relativas
que gostaríamos de ter. E certamente não
temos a opção de rejeitar completamente alguns desses bens e serviços — ou
mesmo não querer absolutamente nenhum deles.
Tampouco temos a opção de pagar por apenas aqueles bens e serviços
governamentais que queremos. O governo
adquire os meios financeiros para fornecer as coisas que fornece à sociedade
através da tributação — isto é, o roubo compulsório de parte da renda e riqueza
dos cidadãos sem o consentimento voluntário e individual destes.
Em uma ditadura, esse confisco é determinado pelos
desejos do soberano e daqueles próximos a ele, tendo por base as suas
necessidades pelos recursos da nação. Em
uma sociedade democrática, os limites da tributação teoricamente dependem do
grau com que aqueles que estão no poder são capazes de convencer a população de
que o confisco via tributação é um reflexo legítimo da própria vontade
"popular" que foi expressa no processo eleitoral. Porem, na prática, os limites da tributação
são influenciados pela formação de coalizões de grupos de interesse que
financiam e pressionam por vários programas governamentais que envolvem
redistribuição de renda e restrições ao mercado, seja através de
regulamentações, de barreiras comerciais ou de privilégios monopolísticos. Tudo isso, é claro, é defendido sob a
alegação de ser do "interesse nacional" ou em nome do "bem comum".
É por permitir e chancelar esse tipo de abuso, algo
inerente ao processo democrático, que tal sistema se tornou inimigo da
liberdade. Esses vários esquemas intervencionistas
e de redistribuição de renda são a fonte das acusações de corrupção e de
criação de discórdia nas sociedades democráticas. É isso que torna a democracia um sistema
divisivo. Ao estender a democracia
política às áreas que deveriam ser deixadas com a individualidade e a soberania
pessoal, bem como com o pluralismo voluntário e democrático do livre mercado, o
sistema se desvirtuou por completo.
Como está agora, a democracia não é vantajosa para os demos; ela é vantajosa apenas para a
elite do poder. Algo a se pensar.
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