Estou em Buenos Aires a convite do Centro de Difusión de la Economia
Libre. Que vem a ser economia livre? Que significa esse sistema de
liberdade econômica? A resposta é simples: é a economia de mercado, é o sistema
em que a cooperação dos indivíduos na divisão social do trabalho se realiza
pelo mercado. E esse mercado não é um lugar: é um processo, é a
forma pela qual, ao vender e comprar, ao produzir e consumir, as pessoas estão
contribuindo para o funcionamento global da sociedade.
Quando falamos desse sistema de organização econômica - a economia de
mercado - empregamos a expressão "liberdade econômica". Frequentemente
as pessoas se equivocam quanto ao seu significado, supondo que liberdade
econômica seja algo inteiramente dissociado de outras liberdades, e que estas
outras liberdades - que reputam mais importantes - possam ser preservadas mesmo
na ausência de liberdade econômica. Mas liberdade econômica significa, na
verdade, que é dado às pessoas que a possuem o poder de escolher o próprio
modo de se integrar ao conjunto da sociedade. A pessoa tem o direito de
escolher sua carreira, tem liberdade para fazer o que quer.
É óbvio que não compreendemos liberdade no sentido que hoje tantos atribuem
à palavra. O que queremos dizer é antes que, através da liberdade
econômica, o homem é libertado das condições naturais. Nada há nada, na
natureza, que possa ser chamado de liberdade; há apenas a regularidade das leis
naturais, a que o homem é obrigado a obedecer para alcançar qualquer
coisa. Quando se trata de seres humanos, atribuímos à palavra liberdade o
significado exclusivo de liberdade na sociedade. Não obstante,
muitos consideram que as liberdades sociais são independentes umas das
outras. Os que hoje se intitulam "liberais" têm reivindicado
programas que são exatamente o oposto das políticas que os liberais do século
XIX defendiam em seus programas liberais. Os pretensos liberais de nossos
dias sustentam a ideia muito difundida de que as liberdades de expressão, de
pensamento, de imprensa, de culto, de encarceramento sem julgamento podem,
todas elas, ser preservadas mesmo na ausência do que se conhece como liberdade
econômica. Não se dão conta de que, num sistema desprovido de mercado, em
que o governo determina tudo, todas essas outras liberdades são ilusórias,
ainda que postas em forma de lei e inscritas na constituição.
Tomemos como exemplo a liberdade de imprensa. Se for dono de todas as
máquinas impressoras, o governo determinará o que deve e o que não deve ser
impresso. Nesse caso, a possibilidade de se publicar qualquer tipo de
crítica às ideias oficiais torna-se praticamente nula. A liberdade de imprensa
desaparece. E o mesmo se aplica a todas as demais liberdades.
Quando há economia de mercado, o indivíduo tem a liberdade de escolher
qualquer carreira que deseje seguir, de escolher seu próprio modo de inserção
na sociedade. Num sistema socialista é diferente: as carreiras são
decididas por decreto do governo. Este pode ordenar às pessoas que não
lhe sejam gratas, àquelas cuja presença não lhe pareça conveniente em
determinadas regiões, que se mudem para outras regiões e outros lugares.
E sempre há como justificar e explicar semelhante procedimento: declara-se que
o plano governamental exige a presença desse eminente cidadão a cinco mil
milhas de distância do local onde ele estava sendo ou poderia ser incômodo aos
detentores do poder.
É verdade que a liberdade possível numa economia de mercado não é uma
liberdade perfeita no sentido metafísico. Mas a liberdade perfeita não
existe. É só no âmbito da sociedade que a liberdade tem algum
significado. Os pensadores que desenvolveram, no século XVIII, a ideia da
"lei natural" - sobretudo Jean-Jacques Rousseau - acreditavam que um
dia, num passado remoto, os homens haviam desfrutado de algo chamado liberdade
"natural". Mas nesses tempos remotos os homens não eram livres
- estavam à mercê de todos os que fossem mais fortes que eles mesmos. As
famosas palavras de Rousseau: "O homem nasceu livre e se encontra
acorrentado em toda parte", talvez soem bem, mas na verdade o homem não
nasceu livre. Nasceu como uma frágil criança de peito. Sem a
proteção dos pais, sem a proteção proporcionada a esses pais pela sociedade,
não teria podido sobreviver.
Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto dos demais
como estes dependem dele. A sociedade, quando regida pela economia de
mercado, pelas condições da economia livre, apresenta uma situação em
que todos prestam serviços aos seus concidadãos e são, em contrapartida, por
eles servidos. Acredita-se, que existem na economia de mercado chefões
que não dependem da boa vontade e do apoio dos demais cidadãos. Os
capitães de indústria, os homens de negócios, os empresários seriam os
verdadeiros chefões do sistema econômico. Mas isso é uma ilusão.
Quem manda no sistema econômico são os consumidores. Se estes deixam de
prestigiar um ramo de atividades, os empresários deste ramo são compelidos ou a
abandonar sua eminente posição no sistema econômico, ou a ajustar suas ações
aos desejos e às ordens dos consumidores.
Uma das mais notórias divulgadoras do comunismo foi Beatrice Potter, nome de
solteira de Lady Passfield (também muito conhecida por conta de seu marido
Sidney Webb). Essa senhora, filha de um rico empresário, trabalhou quando
jovem como secretária do pai. Em suas memórias, ela escreve: "Nos
negócios de meu pai, todos tinham de obedecer às ordens dadas por ele, o
chefe. Só a ele competia dar ordens, e a ele ninguém dava ordem
alguma." Esta é uma visão muito acanhada. Seu pai recebia ordens:
dos consumidores, dos compradores. Lamentavelmente, ela não foi capaz de
perceber essas ordens; não foi capaz de perceber o que ocorre numa economia de
mercado, exclusivamente voltada que estava para as ordens expedidas dentro dos
escritórios ou da fábrica do pai.
Diante de todos os problemas econômicos, devemos ter em mente as palavras
que o grande economista francês Frédéric Bastiat usou como título de um de seus
brilhantes ensaios: "Ce qu'on voit et ce qu'on ne voit pas" ("O
que se vê e o que não se vê"). Para compreender como funciona um
sistema econômico, temos de levar em conta não só o que pode ser visto, mas
também o que não pode ser diretamente percebido. Por exemplo, uma ordem
dada por um chefe a um contínuo pode ser ouvida por aqueles que estejam na
mesma sala. O que não se pode ouvir são as ordens dadas ao chefe por seus
clientes.
O fato é que, no sistema capitalista, os chefes, em última instância, são os
consumidores. Não é o estado, é o povo que é soberano. Prova disto
é o fato de que lhe assiste o direito de ser tolo. Este é o
privilégio do soberano. Assiste-lhe o direito de cometer erros: ninguém o
pode impedir de cometê-los, embora, obviamente, deva pagar por eles.
Quando afirmamos que o consumidor é supremo ou soberano, não estamos afirmando
que está livre de erros, que sempre sabe o que melhor lhe conviria.
Muitas vezes os consumidores compram ou consomem artigos que não deviam comprar
ou consumir. Mas a ideia de que uma forma capitalista de governo pode
impedir, através de um controle sobre o que as pessoas consomem, que elas se
prejudiquem, é falsa. A visão do governo como uma autoridade paternal, um
guardião de todos, é própria dos adeptos do socialismo.
Nos Estados Unidos, o governo empreendeu certa feita, há alguns anos, uma
experiência que foi qualificada de "nobre". Essa "nobre
experiência" consistiu numa lei que declarava ilegal o consumo de bebidas
tóxicas. Não há dúvida de que muita gente se prejudica ao beber conhaque
e uísque em excesso. Algumas autoridades nos Estados Unidos são
contrárias até mesmo ao fumo. Certamente há muitas pessoas que fumam
demais, não obstante o fato de que não fumar seria melhor para elas. Isso
suscita um problema que transcende em muito a discussão econômica: põe a nu o
verdadeiro significado da liberdade. Se admitirmos que é bom impedir que
as pessoas se prejudiquem bebendo ou fumando em excesso, haverá quem pergunte:
"Será que o corpo é tudo? Não seria a mente do homem muito mais
importante? Não seria a mente do homem o verdadeiro dom, o verdadeiro predicado
humano?" Se dermos ao governo o direito de determinar o que o corpo humano
deve consumir, de determinar se alguém deve ou não fumar, deve ou não beber,
nada poderemos replicar a quem afirme: "Mais importante ainda que o corpo
é a mente, é a alma, e o homem se prejudica muito mais ao ler maus livros,
ouvir música ruim e assistir a maus filmes. É, pois, dever do governo
impedir que se cometam esses erros." E, como todos sabem, por centenas de
anos os governos e as autoridades acreditaram que esse era de fato o seu
dever. Nem isso aconteceu apenas em épocas remotas. Não faz muito
tempo, houve na Alemanha um governo que considerava seu dever discriminar as
boas e as más pinturas - boas e más, é claro, do ponto de vista de um homem
que, na juventude, fora reprovado no exame de admissão à Academia de Arte, em
Viena: era o bom e o mau segundo a ótica de um pintor de cartão-postal. E
tornou-se ilegal expressar concepções sobre arte e pintura que divergissem
daquelas do Führer supremo.
A partir do momento em que começamos a admitir que é dever do governo
controlar o consumo de álcool do cidadão, que podemos responder a quem afirme
ser o controle dos livros e das ideias muito mais importante? Liberdade
significa realmente liberdade para errar. Isso precisa ser bem
compreendido. Podemos ser extremamente críticos com relação ao modo como
nossos concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos
considerar o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa sociedade
livre, todos têm, no entanto, as mais diversas maneiras de manifestar suas
opiniões sobre como seus concidadãos deveriam mudar seu modo de vida: eles
podem escrever livros; escrever artigos; fazer conferências. Podem até
fazer pregações nas esquinas, se quiserem - e faz-se isso, em muitos
países. Mas ninguém deve tentar policiar os outros no intuito de
impedi-los de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer que as
pessoas tenham a liberdade de fazê-las.
É essa a diferença entre escravidão e liberdade. O escravo é obrigado
a fazer o que seu superior lhe ordena que faça, enquanto o cidadão livre - e é
isso que significa liberdade - tem a possibilidade de escolher seu próprio modo
de vida. Sem dúvida esse sistema capitalista pode ser - e é de fato - mal
usado por alguns. É certamente possível fazer coisas que não deveriam ser
feitas. Mas se tais coisas contam com a aprovação da maioria do povo, uma
voz discordante terá sempre algum meio de tentar mudar as ideias de seus
concidadãos. Pode tentar persuadi-los, convencê-los, mas não pode tentar
constrangê-los pela força, pela força policial do governo.
Na economia de mercado, todos prestam serviços aos seus concidadãos ao
prestarem serviços a si mesmos. Era isso o que tinham em mente os
pensadores liberais do século XVIII, quando falavam da harmonia dos interesses
- corretamente compreendidos - de todos os grupos e indivíduos que constituem a
população. E foi a essa doutrina da harmonia de interesses que os
socialistas se opuseram. Falaram de um "conflito inconciliável de
interesses" entre vários grupos.
Que significa isso? Quando Karl Marx - no primeiro capitulo do Manifesto
Comunista, esse pequeno panfleto que inaugurou seu movimento socialista -
sustentou a existência de um conflito inconciliável entre as classes, só pôde
evocar, como ilustração à sua tese, exemplos tomados das condições da sociedade
pré-capitalista. Nos estágios pré-capitalistas, a sociedade se dividia em
grupos hereditários de status, na Índia denominados "castas".
Numa sociedade de status, um homem não nascia, por exemplo, cidadão
francês; nascia na condição de membro da aristocracia francesa, ou da burguesia
francesa, ou do campesinato francês. Durante a maior parte da Idade
Média, era simplesmente um servo. E a servidão, na França, ainda não
havia sido inteiramente extinta mesmo depois da Revolução Americana. Em
outras regiões da Europa, a sua extinção ocorreu ainda mais tarde. Mas a
pior forma de servidão - forma que continuou existindo mesmo depois da abolição
da escravatura - era a que tinha lugar nas colônias inglesas. O indivíduo
herdava seu status dos país e o conservava por toda a vida.
Transferia-o aos filhos. Cada grupo tinha privilégios e
desvantagens. Os de status mais elevado tinham apenas privilégios,
os de status inferior, só desvantagens. E não restava ao homem
nenhum outro meio de escapar às desvantagens legais impostas por seu status senão
a luta política contra as outras classes. Nessas condições, pode-se dizer
que havia "um conflito inconciliável de interesses entre senhores de
escravos e escravos", porque o interesse dos escravos era livrar-se da
escravidão, da qualidade de escravos. E sua liberdade significava, para
os seus proprietários, uma perda. Assim sendo, não há dúvida de que tinha
de existir forçosamente um conflito inconciliável de interesses entre os
membros das várias classes.
Não devemos esquecer que nesses períodos - em que as sociedades de status
predominaram na Europa, bem como nas colônias que os europeus fundaram
posteriormente na América - as pessoas não se consideravam ligadas de nenhuma
forma especial às demais classes de sua própria nação; sentiam-se muito mais
solidárias com os membros de suas classes nos outros países. Um
aristocrata francês não tinha os franceses das classes inferiores na conta de
seus concidadãos: a seus olhos, eles não eram mais que a ralé, que não lhes
agradava. Seus iguais eram os aristocratas dos demais países - os
da Itália, Inglaterra e Alemanha, por exemplo.
O efeito mais visível desse estado de coisas era o fato de os aristocratas
de toda a Europa falarem a mesma língua, o francês, idioma não compreendido, fora
da França, pelos demais grupos da população. As classes médias - a
burguesia - tinham sua própria língua, enquanto as classes baixas - o
campesinato - usavam dialetos locais, muitas vezes não compreendidos por outros
grupos da população. O mesmo se passava com relação aos trajes.
Quem viajasse de um país para outro em 1750 constataria que as classes mais
elevadas, os aristocratas, se vestiam em geral de maneira idêntica em toda a
Europa; e que as classes baixas usavam roupas diferentes. Vendo alguém na
rua, era possível perceber de imediato - pelo modo como se vestia - a sua
classe, o seu status.
É difícil avaliar o quanto essa situação era diversa da atual. Se
venho dos Estados Unidos para a Argentina e vejo um homem na rua, não posso
dizer qual é seu status. Concluo apenas que é um cidadão
argentino, não pertencente a nenhum grupo sujeito a restrições legais.
Isto é algo que o capitalismo nos trouxe. Sem dúvida há também diferenças
entre as pessoas no capitalismo. Há diferenças em relação à riqueza;
diferenças estas que os marxistas, equivocadamente, consideram equivalentes
àquelas antigas que separavam os homens na sociedade de status.
Numa sociedade capitalista, as diferenças entre os cidadãos não são como as
que se verificam numa sociedade de status. Na Idade Média - e
mesmo bem depois, em muitos países - uma família podia ser aristocrata e
possuidora de grande fortuna, podia ser uma família de duques, ao longo de
séculos e séculos, fossem quais fossem suas qualidades, talentos, caráter ou moralidade.
Já nas modernas condições capitalistas, verifica-se o que foi tecnicamente
denominado pelos sociólogos de "mobilidade social". O princípio
segundo o qual a mobilidade social opera, nas palavras do sociólogo e
economista italiano Vilfredo Pareto, é o da "circulation des
élites" ("circulação das elites"). Isso significa que
haverá sempre no topo da escada social pessoas ricas, politicamente
importantes, mas essas pessoas - essas elites - estão em contínua mudança.
Isto se aplica perfeitamente a uma sociedade capitalista. Não
se aplicaria a uma sociedade pré-capitalista de status. As
famílias consideradas as grandes famílias aristocráticas da Europa permanecem
as mesmas até hoje, ou melhor, são formadas hoje pelos descendentes de famílias
que constituíam a nata na Europa, há oito, dez ou mais séculos. Os
Capetos de Bourbon - que por um longo período dominaram a Argentina - já eram
uma casa real desde o século X. Reinavam sobre o território hoje chamado Ile-de-France,
ampliando seu reino a cada geração. Mas numa sociedade capitalista há uma
contínua mobilidade - pobres que enriquecem e descendentes de gente rica que
perdem a fortuna e se tornam pobres.
Vi hoje, numa livraria de uma rua do centro de Buenos Aires, a biografia de
um homem que viveu na Europa do século XIX, e que foi tão eminente, tão importante,
tão representativo dos altos negócios europeus naquela época, que até hoje,
aqui neste país tão distante da Europa, encontram-se à venda exemplares da
história de sua vida. Tive a oportunidade de conhecer o neto desse
homem. Tem o mesmo nome do avô e conserva o direito de usar o título
nobiliário que este - que começou a vida como ferreiro - recebeu oitenta anos
atrás. Hoje esse seu neto é um fotógrafo pobre na cidade de Nova
York. Outras pessoas, pobres à época em que o avô desse fotógrafo se
tornou um dos maiores industriais da Europa, são hoje capitães de
indústria. Todos são livres para mudar seu status, é isso
que distingue o sistema de status do sistema capitalista de liberdade
econômica, em que as pessoas só podem culpar a si mesmas se não chegam a
alcançar a posição que almejam.
O mais famoso industrial do século XX continua sendo Henry Ford. Ele
começou com umas poucas centenas de dólares emprestados por amigos e, em muito
pouco tempo, implantou um dos mais importantes empreendimentos de grande vulto
do mundo. E podemos encontrar centenas de casos semelhantes todos os
dias. Diariamente o New York Times publica longas notas sobre
pessoas que faleceram. Lendo essas biografias, podemos deparar, por
exemplo, com o nome de um eminente empresário que tenha iniciado a vida como
vendedor de jornais nas esquinas de Nova York. Ou com outro que tenha
iniciado como contínuo e, por ocasião de sua morte, era o presidente da mesma
instituição bancária onde começara no mais baixo degrau da hierarquia.
Evidentemente, nem todos conseguem alcançar tais posições. Nem todos querem
alcançá-las. Há pessoas mais interessadas em outras coisas: para
elas, no entanto, há hoje certos caminhos que não estavam abertos nos tempos da
sociedade feudal, na época da sociedade de status.
O sistema socialista, contudo, proíbe essa liberdade fundamental que
é a escolha da própria carreira. Mas condições socialistas há uma única
autoridade econômica, e esta detém o poder de determinar todas as questões
atinentes à produção. Um dos traços característicos de nossos dias é o
uso de muitos nomes para designar uma mesma coisa. Um sinônimo de
socialismo e comunismo é "planejamento". Quando falam de
"planejamento", as pessoas se referem, evidentemente, a um
planejamento central, o que significa um plano único, feito pelo
governo - um plano que impede todo planejamento feito por outra pessoa.
Uma senhora inglesa - que é também membro da Câmara Alta - escreveu um livro
intitulado Plan or no Plan, obra muito bem recebida no mundo
inteiro. Que significa o título desse livro? Ao falar de
"plano" a autora se refere unicamente ao tipo de planejamento
concebido por Lenin, Stalin e seus sucessores, o tipo que determina todas as
atividades de todo o povo de uma nação. Por conseguinte, essa senhora só
leva em conta o planejamento central, que exclui todos os planos pessoais que
os indivíduos possam ter. Assim sendo, seu título, Plan or no Plan, revela-se
um logro, uma burla: a alternativa não está em plano central versus nenhum
plano. Na verdade, a escolha está entre o planejamento total feito
por uma autoridade governamental central e a liberdade de cada indivíduo
para traçar os próprios planos, fazer o próprio planejamento. O indivíduo
planeja sua vida todos os dias, alterando seus planos diários sempre que
queira.
O homem livre planeja diariamente, segundo suas necessidades. Dizia,
ontem, por exemplo: "Planejo trabalhar pelo resto dos meus dias em
Córdoba." Agora, informado de que as condições em Buenos Aires estão
melhores, muda seus planos e diz: "Em vez de trabalhar em Córdoba, quero
ir para Buenos Aires." É isso que significa liberdade. Pode ser que
ele esteja enganado, pode ser que essa ida para Buenos Aires se revele um
erro. Talvez as condições lhe tivessem sido mais propicias em Córdoba,
mas ele foi o autor dos próprios planos.
Submetido ao planejamento governamental, o homem é como um soldado num
exército. Não cabe a um soldado o direito de escolher sua guarnição, a
praça onde servirá. Cabe-lhe cumprir ordens. E o sistema socialista
- como o sabiam e admitiam Karl Marx, Lênin e todos os líderes socialistas -
consiste na transposição do regime militar a todo o sistema de produção.
Marx falou de "exércitos industriais" e Lênin impôs "a
organização de tudo - o correio, as manufaturas e os demais ramos industriais -
segundo o modelo do exército". Portanto, no sistema socialista, tudo
depende da sabedoria, dos talentos e dos dons daqueles que constituem a autoridade
suprema. O que o ditador supremo - ou seu comitê - não sabe, não é
levado em conta. Mas o conhecimento acumulado pela humanidade em sua
longa história não é algo que uma só pessoa possa deter. Acumulamos, ao
longo dos séculos, um volume tão incomensurável de conhecimentos científicos e
tecnológicos, que se torna humanamente impossível a um indivíduo o domínio de
todo esse cabedal, por extremamente bem-dotado que ele seja.
Acresce que os homens são diferentes, desiguais. E sempre o
serão. Alguns são mais dotados em determinado aspecto, menos em
outro. E há os que têm o dom de descobrir novos caminhos, de mudar os
rumos do conhecimento. Nas sociedades capitalistas, o progresso
tecnológico e econômico é promovido por esses homens. Quando alguém tem
uma ideia, procura encontrar algumas outras pessoas argutas o suficiente para
perceberem o valor de seu achado. Alguns capitalistas que ousam
perscrutar o futuro, que se dão conta das possíveis consequências dessa ideia,
começarão a pô-la em prática. Outros, a princípio, poderão dizer:
"são uns loucos", mas deixarão de dizê-lo quando constatarem que o
empreendimento que qualificavam de absurdo ou loucura está florescendo, e que
toda gente está feliz por comprar seus produtos.
No sistema marxista, por outro lado, o corpo governamental supremo deve
primeiro ser convencido do valor de uma ideia antes que ela possa ser levada
adiante. Isso pode ser algo muito difícil, uma vez que o grupo detentor
do comando - ou o ditador supremo em pessoa - tem o poder de decidir. E
se essas pessoas - por razões de indolência, senilidade, falta de inteligência
ou de instrução - forem incapazes de compreender o significado da nova ideia, o
novo projeto não será executado. Podemos evocar exemplos da história militar.
Napoleão era indubitavelmente um gênio em questões militares; não obstante,
viu-se certa feita diante de um grave problema. Sua incapacidade para
resolvê-lo culminou na sua derrota e no subsequente exílio na solidão de Santa
Helena. O problema de Napoleão podia-se resumir a uma pergunta:
"Como conquistar a Inglaterra?". Para fazê-lo, precisava de uma
esquadra capaz de cruzar o canal da Mancha. Houve, então, pessoas que lhe
garantiram conhecer um meio seguro de levar a cabo aquela travessia; estas
pessoas, numa época de embarcações a vela, traziam a nova ideia de barcos
movidos a vapor. Mas Napoleão não compreendeu sua proposta.
Depois, houve o famoso Generalstab da Alemanha. Antes da
Primeira Guerra Mundial, o estado-maior alemão era universalmente considerado
insuperável em ciência militar. Reputação análoga tinha o estado-maior do
general Foch, na França. Mas nem os alemães nem os franceses - que, sob o
comando do general Foch, derrotaram posteriormente os alemães - perceberam a
importância da aviação para fins militares. O estado-maior alemão
declarava: "A aviação é um mero divertimento; voar é bom para os
desocupados. Do ponto de vista militar, só zepelins têm
importância". E os franceses eram da mesma opinião.
Mais tarde, no intervalo entre as duas Guerras Mundiais, nos Estados Unidos,
um general se convenceu de que a aviação seria de extrema importância na guerra
que se aproximava. Mas todos os peritos do país pensavam o
contrário. Ele não conseguiu convencê-los. Sempre que tentamos
convencer um grupo de pessoas que não depende diretamente da solução de um
problema, o fracasso é certo. Isso se aplica também aos problemas não
econômicos.
Muitos pintores, poetas, escritores e compositores já se queixaram de que o
público não reconhecia sua obra, o que os obrigava a permanecerem na
pobreza. Não há dúvida de que o público pode ter julgado mal; mas, quando
promulgam que "o governo deve subsidiar os grandes artistas, pintores e
escritores", esses artistas estão completamente errados. A quem
deveria o governo confiar a tarefa de decidir se determinado estreante é ou
não, de fato, um grande pintor? Teria de se valer da apreciação dos críticos e
dos professores de história da arte, que, sempre voltados para o passado, até
hoje deram raras mostras de talento no que tange à descoberta de novos
gênios. Essa é a grande diferença entre um sistema de
"planejamento" e um sistema em que é dado a cada um planejar e agir
por conta própria.
É verdade, obviamente, que grandes pintores e grandes escritores suportaram,
muitas vezes, situações de extrema penúria. Podem ter tido êxito em sua
arte, mas nem sempre em ganhar dinheiro. Van Gogh foi por certo um grande
pintor. Teve de sofrer agruras insuportáveis e acabou por se suicidar,
aos 37 anos de idade. Em toda a sua existência, vendeu apenas uma
tela, comprada por um primo. Afora essa única venda, viveu do
dinheiro do irmão, que, apesar de não ser artista nem pintor, compreendia as
necessidades de um pintor. Hoje, não se compra um Van Gogh por menos de
cem ou duzentos mil dólares.
No sistema socialista, o destino de Van Gogh poderia ter sido diverso.
Algum funcionário do governo teria perguntado a alguns pintores famosos (a quem
Van Gogh seguramente nem sequer teria considerado artistas) se aquele jovem, um
tanto louco, ou completamente louco, era de fato um pintor que valesse a pena
subsidiar. E com toda certeza eles teriam respondido: "Não, não é um
pintor; não é um artista; não passa de uma criatura que desperdiça tinta",
e o teriam enviado a trabalhar numa indústria de laticínios, ou para um
hospício. Todo esse entusiasmo pelo socialismo manifestado pelas novas
gerações de pintores, poetas, músicos, jornalistas, atores, baseia-se,
portanto, numa ilusão.
Refiro-me a isso porque esses grupos estão entre os mais fanáticos
defensores da concepção socialista. Quando se trata de escolher entre o
socialismo e o capitalismo como sistema econômico, o problema é um tanto
diferente. Os teóricos do socialismo jamais suspeitaram que a indústria
moderna - juntamente com todos os processos do moderno mundo dos negócios - se
basearia no cálculo. Os engenheiros não são, de maneira alguma, os únicos
a planejarem com base em cálculos; também os empresários são obrigados a
fazê-lo. E os cálculos do homem de negócios se baseiam todos no fato de
que, na economia de mercado, os preços em dinheiro dos bens não só informam o
consumidor, como fornecem ao negociante informações de importância vital sobre
os fatores de produção, porquanto o mercado tem por função primordial
determinar não só o custo da última parte do processo de produção, mas
também o dos passos intermediários. O sistema de mercado é indissociável
do fato de que há uma divisão mentalmente calculada do trabalho entre os vários
empresários que disputam entre si os fatores de produção - as matérias-primas,
as máquinas, os instrumentos - e o fator humano de produção, ou seja, os
salários pagos à mão-de-obra. Esse tipo de cálculo que o empresário
realiza não pode ser feito se ele não tem os preços fornecidos pelo mercado.
No instante mesmo em que se abolir o mercado - e é o que os socialistas
gostariam de fazer - ficariam inutilizados todos os cômputos e cálculos feitos
pelos engenheiros e tecnólogos. Os tecnólogos podem continuar fornecendo
grande número de projetos que, do ponto de vista das ciências naturais, podem
ser todos igualmente exequíveis, mas são os cálculos baseados no mercado
- realizados pelo homem de negócios - que são indispensáveis para se
determinar qual desses projetos é o mais vantajoso do ponto de vista
econômico.
O problema de que estou tratando é a questão fundamental do cálculo
econômico capitalista em contraposição ao que se passa no socialismo. O
fato é que o cálculo econômico - e por conseguinte todo planejamento tecnológico
- só é possível quando existem preços em dinheiro, não só para bens de consumo,
como para os fatores de produção. Isso significa que é preciso haver um
mercado para todas as matérias-primas, todos os artigos semi-acabados, todos os
instrumentos e máquinas, e todos os tipos de trabalho e de serviço
humanos. Quando se descobriu esse fato, os socialistas não souberam
reagir adequadamente. Por 150 anos tinham afirmado: "Todos os males
do mundo advêm da existência de mercados e de preços de mercado. Queremos
abolir o mercado e, com ele, é claro, a economia de mercado, substituindo-a por
um sistema sem preços e sem mercados". Queriam abolir o que Marx chamou de
"caráter de mercadoria" das mercadorias e do trabalho.
Confrontados com esse novo problema, os teóricos do socialismo, sem
resposta, acabaram por concluir: "não aboliremos o mercado por completo;
faremos de conta que existe um mercado, como as crianças, quando brincam de
escolinha." A questão é que, todos sabem, as crianças quando brincam de
escolinha não aprendem coisa alguma. É só uma brincadeira, uma simulação,
e se pode "simular" muitas coisas. Este é um problema muito
difícil e complexo, e para analisá-lo em toda a sua amplitude seria necessário
um pouco mais de tempo do que o que tenho aqui. Explanei-o em detalhes em
meus escritos. Em seis palestras, não posso empreender uma análise de
todos os seus aspectos. Assim sendo, quero sugerir-lhes, caso estejam
interessados no problema básico de impossibilidade do cálculo e do planejamento
no socialismo, a leitura de meu livro Ação Humana, encontrável em
espanhol em excelente tradução.
Mas leiam também outros livros, como o do economista norueguês Trygue Hoff,
que escreveu sobre o cálculo econômico. E, se não quiserem ser
unilaterais, recomendo a leitura do livro socialista mais respeitado sobre o
assunto, da autoria do eminente economista polonês Oscar Lange, que foi por
algum tempo professor numa universidade americana, tornou-se depois embaixador
da Polônia, voltando, posteriormente, para o seu país. Provavelmente me
perguntarão: "E a Rússia? Como enfrentam os russos esse problema?"
Nesse caso, a questão muda de figura. Os russos gerem seu sistema
socialista no âmbito de um mundo em que existem preços para todos os fatores de
produção, para todas as matérias-primas, para tudo. Por conseguinte,
podem utilizar, em seu planejamento, os preços do mercado mundial. E,
visto que há certas diferenças entre as condições reinantes na Rússia e as
reinantes nos Estados Unidos, frequentemente o resultado é que, para os russos,
parece justificável e aconselhável - de seu ponto de vista econômico - algo
que, para os americanos, absolutamente não se justificaria economicamente.
A "experiência soviética" - ou "experimento", como
foi chamada - não prova coisa alguma. Nada revela sobre o problema
fundamental do socialismo, o problema do cálculo. Mas teríamos razões
para caracterizá-la como "experiência"? Não creio que, no campo da
ação humana e da economia, possamos ter algo que se assemelhe a um experimento
científico. Não se pode fazer experimentos de laboratório no campo da
ação humana, porque um experimento científico requer a réplica de um mesmo
procedimento sob diversas condições, ou a manutenção das mesmas condições
acompanhada da criação de talvez um único fator. Por exemplo, se
injetarmos num animal canceroso um medicamento experimental, o resultado pode
ser o desaparecimento do câncer. Poderemos testar isso com vários animais
da mesma raça, portadores da mesma doença. Se tratarmos parte deles com o
novo método e não tratarmos outros, poderemos comparar os resultados.
Ora, nada disso é viável no campo da ação humana. Não há experimentos de
laboratório nesse plano.
A chamada "experiência" soviética mostra tão somente que o padrão
de vida na Rússia Soviética é incomparavelmente inferior ao padrão alcançado
pelo país mundialmente reputado o paradigma do capitalismo: os Estados
Unidos.
Se dissermos isto a um socialista, ele certamente contestará: "As
coisas na Rússia estão correndo maravilhosamente bem." E nós
responderemos: "Podem estar maravilhosas, mas o padrão de vida é, em
média, muito baixo." Então ele retrucará: "Sim, mas lembre o quanto
os russos sofreram com os czares, e a terrível guerra que tivemos de
enfrentar."
Não quero discutir se esta é ou não uma explicação correta, mas quando se
nega que as condições tenham sido as mesmas, nega-se ao mesmo tempo que tenha
havido uma experiência. O que se deveria afirmar - e seria muito mais
correto - é: "O socialismo na Rússia não ocasionou, em média, uma melhoria
das condições do homem comparável à melhoria de condições verificada, no mesmo
período, nos Estados Unidos."
Nos Estados Unidos, quase toda semana tem-se notícia de um novo invento, de
um aperfeiçoamento. Muitos aperfeiçoamentos foram gerados no mundo
empresarial, porque milhares e milhares de industriais estão empenhados, noite
e dia, em descobrir algum novo produto que satisfaça o consumidor, ou seja de
produção menos dispendiosa, ou seja melhor e menos oneroso que os produtos já
existentes. Não é o altruísmo que os move; é seu desejo de ganhar
dinheiro. E o efeito foi que o padrão de vida se elevou, nos Estados
Unidos, a níveis quase miraculosos quando confrontados às condições reinantes
há cinquenta ou cem anos atrás. Mas na Rússia Soviética, onde esse
sistema não vigora, não se verifica um desenvolvimento comparável. Assim,
os que nos recomendam a adoção do sistema soviético estão inteiramente
equivocados.
Há mais uma coisa a ser mencionada. O consumidor americano, o
indivíduo, é tanto um comprador como um patrão. Ao sair de uma loja nos
Estados Unidos, é comum vermos um cartaz com os seguintes dizeres: "Gratos
pela preferência. Volte sempre". Mas ao entrarmos numa loja de um
país totalitário - seja a Rússia de hoje, seja a Alemanha de Hitler -, o
gerente nos dirá: "Agradeça ao grande líder, que lhe está proporcionando
isso." Nos países socialistas, ao invés de ser o vendedor, é o comprador
que deve ficar agradecido. Não é o cidadão quem manda; quem manda é o
Comitê Central, o Gabinete Central. Estes comitês, os líderes, os
ditadores, são supremos; ao povo cabe simplesmente obedecer-lhes.
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Esse texto é o segundo capítulo do livro As Seis Lições, e foi traduzido por Maria Luiza Borges.