quarta-feira, 17 mar 2010
I. INTRODUÇÃO
Podemos sintetizar o universo da
teoria econômica da Escola Austríaca na frase: "a economia é ação humana ao
longo do tempo, nos mercados, sob condições de incerteza genuína". Vamos
discutir essa afirmativa analisando cada um dos elementos que a formam e
mostrando, de um lado, a sua importância para explicar os fenômenos da chamada
"economia do mundo real" (economy) e, de outro, como a teoria econômica
convencional ou "não-austríaca" (economics) tem perdido oportunidades de
prover melhores explicações para os mesmos fenômenos, exatamente por não
incorporar de maneira adequada aqueles elementos, a saber: o conceito seminal
de ação humana, a limitação do conhecimento e o subjetivismo, a incerteza
decorrente da imperfeição e dispersão do conhecimento, e o conceito de tempo
real ou subjetivo ou dinâmico.
É conveniente analisarmos um a um
esses elementos, pois, assim procedendo, entenderemos no final, tal como ao
terminarmos de montar um quebra-cabeça, porque os mercados são processos que
tendem a convergir para estados de equilíbrio, sem, contudo, conseguir
atingi-los, porque as condições subjacentes alteram-se com a passagem do tempo
e uma situação que seria de "equilíbrio" hoje certamente não o será dentro de
algumas horas ou semanas. Vejamos separadamente cada um dos elementos que
compõem a teoria "austríaca" do processo de mercado.
II. OS ELEMENTOS DA TEORIA
1. Ação Humana
Dissemos que a economia é ação
humana ao longo do tempo, nos mercados, sob condições de incerteza. Tendo em
mente os conceitos de ação, limitação e dispersão do conhecimento,
subjetivismo, incerteza e tempo real, podemos passar ao exame do funcionamento
dos mercados no contexto social. Para isso, nosso primeiro passo deve ser o de
analisar, sob o ponto de vista da Escola Austríaca, a denominada Teoria do
Valor, e, daí, estudar o processo de mercado.
Mises denominou de praxeologia ao
estudo da ação humana, sob o ponto de vista de suas implicações formais. E,
como ação, no sentido que lhe dá a Escola Austríaca, significa qualquer ato
deliberado (que tanto pode ser fazer, como deixar de fazer alguma coisa), com o
intuito de se passar de um estado menos satisfatório para outro mais
satisfatório, segue-se que todos os atos econômicos, como por exemplo, os de
trocar, comprar, vender, produzir, poupar, investir, consumir, emprestar, tomar
emprestado, exportar, importar, etc., estão contidos no conceito seminal de
ação humana. Esta é a proposição básica, o primeiro axioma da praxeologia: o
incentivo para qualquer ação é a insatisfação, uma vez que ninguém age, no
sentido misesiano, a não ser que, estando insatisfeito, o faça pensando em melhorar
de estado, ou seja, em aumentar seu conforto ou satisfação, diminuindo, portanto,
seu desconforto ou insatisfação.
Notemos que este axioma é universal:
onde quer que existam seres humanos, haverá ação humana, o que faz com que a
ciência econômica construída com base na praxeologia também seja universal. Não
há, portanto, uma teoria econômica específica para cada país ou região; o que
existe é uma teoria econômica epistemologicamente correta, que é a que se
constrói a partir do estudo da ação humana. Por exemplo, as conhecidas leis da
demanda e da oferta são universais, uma vez que todos os homens - sejam índios,
economistas, banqueiros, aposentados, universitários, analfabetos, etc. -
gostam de "comprar barato" e "vender caro", já que isso
aumenta, logicamente, sua satisfação.
Ao agir, portanto, o homem busca
satisfazer a algum desejo e, para isso, deve recorrer aos meios de que dispõe.
O fato a ser ressaltado é que a própria ação implica que esses meios são
escassos, isto é, são sempre insuficientes para que todas as necessidades
humanas, que são ilimitadas, sejam atendidas. De fato, se os meios não fossem
escassos, todas as necessidades seriam atendidas, os homens estariam sempre
inteiramente satisfeitos e, portanto, não haveria incentivos à sua ação. Toda
ação humana busca sempre, então, aumentar a utilidade ou satisfação: quem compra
ações, por exemplo, objetiva ganhar dinheiro e, assim, aumentar sua utilidade,
assim como quem, por caridade, doa sua fortuna aos pobres, tem em vista
aumentar o bem-estar (utilidade) do próximo, pois isso, em sua avaliação, também
aumentará sua própria satisfação.
Denominamos de benefício ou ganho à
diferença, em termos de maior utilidade, obtida através de uma ação
bem-sucedida e de custo inferior ao valor atribuído à situação que se abandonou
quando se decidiu por sua escolha. Para clarear essa definição, tomemos o
exemplo do poupador que decide aplicar sua poupança comprando um automóvel, ao
invés de, por exemplo, gastá-la em uma viagem de férias. Ao fazer isso, ele
escolheu entre a situação que lhe proporciona maior satisfação (possuir um
automóvel) e a que o satisfaria menos (viajar) e poderá dizer, acertadamente:
"este carro me custou uma viagem à Calábria". Benefício,
portanto, é a diferença positiva entre a situação escolhida e a que se abandonou.
Caso a referida diferença seja negativa, isto é, caso a satisfação seja menor
depois da ação do que antes, diz-se que houve uma perda.
Trata-se, então, de, mediante a
ação, perseguir objetivos específicos, utilizando-se de meios escassos. Para
que uma determinada ação proporcione o máximo, em termos de aumento de
utilidade, o homem procura sempre escolher, dentre os meios escassos, aqueles
que lhe permitam chegar aos objetivos com os menores custos possíveis. Ao agir
assim, ele está "economizando" recursos. Isto significa que toda ação
é uma escolha: o sujeito da ação deve escolher, de um lado, o objetivo a que
deseja chegar e, de outro, os meios específicos. A este ato de eleição,
denominamos de valoração; valorar, portanto, significa escolher entre duas ou
mais alternativas. Por outro lado, definimos bens como aqueles meios que são
usados para satisfazer as nossas necessidades e produto como o fruto da ação, isto
é, a nova situação gerada.
Talvez o leitor ainda não tenha
percebido que, apenas partindo da definição de ação humana, deduzimos diversos
conceitos econômicos: escassez, "economização", benefício, perdas,
valoração, custo, bem e produto. Além desses, a praxeologia permite definir os
demais conceitos utilizados em economia, como, por exemplo, juros, capital,
moeda, utilidade marginal, período de produção, preferência temporal,
produtividade, etc. Praxeologia e economia, no entanto, são ciências
diferentes: enquanto a praxeologia centra sua análise na ação humana, a economia
política focaliza sua atenção nos processos de utilização de recursos nos mercados
(que os austríacos chamam de cataláctica), para o que ela deve fazer uso
dos conceitos elaborados pela análise praxeológica. Mises integra a economia dentro
de sua teoria geral da ação humana - a praxeologia - da qual a economia é apenas
uma das partes (ou categorias praxeológicas), por sinal, a que melhor se desenvolveu
até o presente.
As "Construções Imaginárias"
Uma das características da análise
praxeológica é elaborar estudos sobre situações que são simples construções
mentais. Esses paradigmas - chamados de construções imaginárias - servem como
ponto de partida para o exame das situações do mundo real; embora não existindo
concretamente, são bastante úteis para proporcionar-nos uma idéia bem
fundamentada a respeito dos processos econômicos, além, evidentemente, de
servirem como excelentes veículos para a clareza expositiva. Os economistas da
Escola Austríaca costumam utilizar três construções imaginárias: o "estado
natural de repouso", a "economia uniformemente circular" e a
"economia autística".
O estado natural de repouso,
bastante útil para o entendimento correto das forças que impulsionam os
processos de mercado, descreve um estado que, embora jamais seja alcançado pela
ação humana no mundo real - pois uma das características desse mundo é a
escassez de recursos -, é permanentemente perseguido: a satisfação total e a
consequente inação. Esta construção nos permite, por exemplo, entender como os
preços de mercado, flutuando entre a oferta e a demanda como decorrência da
ação humana, tendem para um preço final que, no entanto, nunca é alcançado,
pela simples razão de que o homem, estando permanentemente insatisfeito,
continua a agir (para aumentar sua utilidade), o que faz com que a oferta e a
demanda estejam permanentemente sofrendo alterações. Há, contudo, uma corrente
de economistas austríacos, liderada por Lachmann, que nega essa tendência para
um preço final, conforme veremos algumas linhas adiante.
A economia uniformemente circular ("evenly
rotating economy") é uma construção, imaginada por Mises, que procura
fotografar um estado de coisas em que não ocorrem quaisquer mudanças nos dados
externos (preferências, tecnologia e recursos) em um sentido objetivo, tudo se
passando como se o tempo parasse. O argumento em favor do uso desse artifício
metodológico é que, se desejamos analisar os fenômenos desencadeados pela ação
humana em toda a sua complexidade, devemos iniciar nossas investigações
admitindo ausência de mudanças e, em seguida, devemos ir aos poucos
introduzindo cada fator capaz de provocar impactos específicos. Como o leitor
conhecedor dos rudimentos da teoria econômica tradicional já deve ter
percebido, esta construção austríaca equivale à conhecida cláusula "coeteris
paribus", introduzida por Alfred Marshall na análise econômica em 1891
e largamente utilizada até hoje. A diferença é que os austríacos realizam suas
análises levando sempre em conta que seu método de construções imaginárias,
mesmo sendo o único método possível de investigação praxeológica e econômica, é
de difícil manejo, porque pode facilmente resultar em falácias. Conforme Mises
observou, "... é como caminhar numa crista estreita: de ambos os lados
abrem-se os abismos do absurdo e do inconsciente. Somente uma impiedosa autocrítica
pode impedir alguém de cair nessas profundezas abissais"
A economia autística é uma
construção que procura estudar os problemas com que se defrontaria um indivíduo
isolado dos demais, como Robinson Crusoé em uma ilha deserta. Este conceito é
de grande importância, porque permite desenvolver, a partir de sua
característica de ausência de trocas interpessoais, as situações do mundo real
que são caracterizadas pela existência de trocas entre os agentes econômicos,
derivando-se diversos conceitos importantes, como os de moeda, capital, juros,
investimento, poupança, produtividade, etc. Mises imaginou duas variantes de uma
economia autística: a economia de um indivíduo isolado e a de uma sociedade
socialista. Segundo ele, tanto "Robinson Crusoe (como) o dirigente supremo
de uma comunidade socialista perfeitamente isolada - que nunca existiu - não
poderiam planejar e agir como o fazem as pessoas que podem recorrer ao cálculo
econômico".
A Teoria Austríaca do Valor
A noção de que o valor dos bens
depende diretamente da utilidade que eles proporcionam é antiga. Na realidade,
ela remonta aos autores escolásticos: ainda no século XV, São Bernardino de
Sena (1380-1444), em sua análise sobre a influência da escassez sobre os
preços, solucionava o problema que, cerca de quatrocentos anos depois, viria a
ser conhecido como o "paradoxo do valor": "...Comumente, a água
é abundante, mas pode suceder que em alguma montanha ou em outro lugar, ela
seja escassa e não abunde, e por isso será mais estimada (valorizada) do que o
ouro; e é por esta abundância da água que os homens estimam (valorizam) mais o
ouro do que a água" (parêntesis nossos). São Bernardino sustentava em sua
teoria que os bens têm dois valores: um, objetivo, baseado na natureza, e outro
baseado no uso, sendo influenciado essencialmente por sua utilidade subjetiva.
De acordo com aquele autor que, juntamente com Santo Antonino de Florença
(1389-1459), influenciou o pensamento da chamada "escolástica
tardia", como Francisco de Vitória (1495-1560, fundador da famosa Escola
de Salamanca), os preços dos bens eram determinados por seu valor subjetivo,
considerado sob três perspectivas: "virtuositas" (valor de
uso), "raritas" (escassez) e "complacibilitas"
(desejabilidade).
Conforme diversos trabalhos recentes
têm mostrado, os filósofos católicos escolásticos, em especial os espanhóis e
italianos dos séculos XVI e XVII, foram notáveis economistas, que chegaram a
desenvolver, como observam, por exemplo, Rothbard e Río, uma abordagem para a
teoria subjetiva do valor bastante semelhante à da Escola Austríaca, o que já
havia sido percebido, ainda que de modo incompleto, por Joseph Schumpeter. A
rigor, o único ingrediente da moderna teoria austríaca do valor que não fora
considerado pelos filósofos católicos foi o conceito marginalista. Por isso, a
opinião, exposta principalmente por Max Weber e tão facilmente assimilada, de
que a ética do capitalismo é de natureza protestante, não corresponde à verdade
que os estudos mais recentes nos têm revelado: a economia de mercado e,
portanto, o liberalismo, tem raízes cristãs (São Tomás de Aquino, no século
XIII) que antecedem as reformas efetuadas no século XVI por Lutero e Calvino.
O procedimento geralmente adotado
nos livros-texto de economia, nos capítulos sobre as teorias de valor e
formação de preços, é o de tratar a demanda e a oferta separadamente. E, embora
as teorias de demanda mais recentes tenham avançado ao incorporar elementos
subjetivistas em suas estruturas, o mesmo não ocorreu com as teorias de oferta,
que continuam tratando os custos de produção de maneira exclusivamente
objetiva. O ponto de vista dos economistas da Escola Austríaca, que
procuraremos expor em seguida, é o de que existe um fator comum que liga o lado
da demanda e o lado da oferta: ambas são inteiramente determinadas pela ação
humana subjetiva, que caracteriza os processos de valoração e formação de
preços.
As primeiras respostas ao problema
do valor partiam da premissa de que o que se devia identificar era o
"valor objetivo" de cada bem. Uma das primeiras tentativas nesse
sentido, realizada por Adam Smith, foi sugerir que as coisas valem pelo
conteúdo de trabalho embutido nelas. Essa teoria, no entanto, não se adapta à realidade,
porque não consegue explicar, por exemplo, o alto valor de um diamante encontrado
no leito de um rio por alguém, que teve apenas o trabalho de molhar os pés,
agachar-se e pegá-lo.
Uma segunda resposta ao mesmo
problema, também falsa, mas na qual, ainda hoje, muitos insistem, consiste em
supor que as coisas valem pelos custos em que os produtores incorrem para
produzi-las. Isto também não se adapta à realidade, por deixar de considerar
que, em uma economia de mercado, podem haver lucros ou prejuízos. Os preços não
dependem dos custos; na realidade, os preços, respondendo à ação humana de
ofertantes e demandantes, podem situar-se acima ou abaixo dos custos,
determinando assim lucros ou prejuízos para os empresários. Evidentemente, isso
não sucederia se, como sugere a teoria do valor-custo, os preços dependessem
dos custos, pois, nesse caso, não haveria jamais prejuízos. O que a teoria do
valor-custo e suas vertentes modernas (que conduzem à defesa, por exemplo, dos
controles de preços) parecem desconhecer é que os preços não medem os valores,
eles apenas expressam o valor dos bens no mercado. Posso, por exemplo, gastar
uma fortuna para fazer uma escultura, cujo valor de mercado seria, certamente,
próximo de zero...
O passo seguinte na direção correta
foi o de atribuir o valor à escassez e à utilidade, mas ainda de maneira
objetiva, o que levou ao "paradoxo do valor", a que já nos referimos
anteriormente, sem que o problema fosse solucionado. Garrafas de vinho
quebradas nas calçadas são escassas nos bairros limpos, mas nem por isso valem
alguma coisa; poucos bens são tão úteis quanto o ar que, no entanto, não tem
valor no mercado. No entanto, se considerarmos a utilidade e a escassez de modo
subjetivo, estaremos caminhando na direção e no sentido corretos: poderemos
deduzir, a partir de conceitos praxeológicos, a teoria do valor que se adapta à
realidade, que é a lei da utilidade marginal.
Essa importante lei pode ser
explicada com base no fato de que o homem, ao agir, escolhe seus objetivos e os
ordena em uma escala valorativa própria, isto é, que não é intrínseca aos
objetivos. Ao mesmo tempo, para chegar a esses objetivos, ele usa uma série de
meios, que são formados por unidades capazes de proporcionar o mesmo serviço.
Este exemplo, elaborado pelo filósofo argentino Gabriel Zanotti, esclarece a
questão: "...imaginemos que disponho do meio "folha de papel", dividido em
5 unidades (5 folhas de papel), cada uma capaz de proporcionar o mesmo serviço.
Logo, ordeno meus fins (necessidades) em uma escala valorativa pessoal e
subjetiva. A primeira folha, emprego para resolver um exercício de lógica; a
segunda, para escrever um poema; a terceira, para praticar caligrafia; a
quarta, para testar minha lapiseira e a quinta para limpar o escritório.
Observamos que, à medida que aumenta o número de unidades do bem, o valor da
última (que se denomina valor marginal, assim como a última unidade é a unidade
marginal), vai caindo, pois essa unidade é utilizada para o grau mais baixo de
prioridades do sujeito; sucede o contrário quando cai o número de unidades:
aumenta o valor da unidade marginal, pois esta vai sendo empregada nas
prioridades mais altas do sujeito".
Observemos que, à medida que
reduzimos as quantidades do bem em uma unidade, perdemos a satisfação que
aquela unidade nos proporciona e que, à medida que aumentamos a quantidade do
bem em uma unidade, ganhamos a satisfação que, a nosso juízo, aquela unidade
nos propicia. Isto é, ao reduzirmos a quantidade do bem em unidades sucessivas,
o valor de cada unidade vai sucessivamente aumentando, o que explica o fato de
um cantil com água valer mais no deserto do que perto de uma fonte pura:
similarmente, ao aumentarmos sucessivamente as unidades do bem, o valor de cada
unidade vai progressivamente decrescendo.
Ao compreendermos a lei da utilidade
marginal, conseguimos resolver o "paradoxo do valor": o pão é mais
útil do que o perfume fino, mas, como o número de unidades de pão é maior do
que o de perfumes finos, o valor do pão, determinado por essa combinação de
utilidade e escassez subjetivas, é menor do que o do perfume. A comparação
relevante não é, portanto, entre a utilidade de todos os pães e de todos os
frascos de perfume, mas entre as utilidades de um pão e de um frasco.
Antes de estudarmos o processo de
mercado, é conveniente lembrarmos que, ao contrário do sugerido pelas
abordagens convencionais, no ponto de vista da Escola Austríaca a utilidade não
influencia apenas a demanda; ela afeta, igualmente, a oferta, uma vez que não
há possibilidades de medição objetiva dos custos de produção, pois as
alternativas relevantes (que seriam a medida objetiva dos custos de
oportunidade) não foram realizadas e, portanto, não podem ser avaliadas
monetariamente.
A essência da Teoria Austríaca do
Valor é sua subjetividade, que origina, a partir do axioma básico da
praxeologia, o da busca permanente por maior satisfação, a lei da utilidade
marginal, que se constitui em elemento indispensável para a compreensão correta
do processo de mercado.
2. Limitação do conhecimento e
subjetivismo
Uma das principais características
dos economistas "austríacos" é o subjetivismo da sua teoria, que se baseia na
pressuposição de que o conteúdo da mente humana - e, portanto, os processos de
tomada de decisão - não podem ser determinados rigidamente pelos eventos
externos. O subjetivismo assim entendido abre espaço para a criatividade e a
autonomia das escolhas individuais, estando dessa forma ligado ao
individualismo metodológico, ou seja, à visão de que os resultados do mercado
resultam de atos de escolha individuais. Em outras palavras, para os
economistas "austríacos" e para os subjetivistas em geral, a teoria econômica
deve lidar com fatores que determinam as escolhas e não com interações entre
magnitudes objetivas.
A teoria econômica subjetivista
procura analisar a ação humana no campo das atividades econômicas, levando em
conta que essa ação ocorre sempre sob condições de incerteza genuína, ou seja,
não probabilística, e que, além disso, ela necessariamente acontece ao longo do
tempo. Por isso, subjetivismo e ação humana dinâmica sob condições de incerteza
não bayesiana são idéias absolutamente inseparáveis sob a ótica da
Escola Austríaca de Economia.
Quando um agente econômico escolhe
um determinado curso de ação, as conseqüências de sua escolha irão depender,
pelo menos parcialmente, dos cursos de ação que outros indivíduos escolheram,
estão escolhendo ou ainda vão escolher. Se considerarmos um mundo em que impere
a autonomia das decisões individuais, isto significa que o futuro não apenas é
eventualmente desconhecido, o que permitiria que ele fosse aprendido de maneira
gradual, mas que ele simplesmente não pode ser conhecido e nem aprendido.
Com efeito, a concepção dinâmica do
tempo, juntamente com o reconhecimento do fato de que a imperfeição de nosso
conhecimento nos leva a agir na presença de incerteza, são dados que o Prof.
Mises denominava de irredutíveis - isto é, que não podem ser negados, dada a
sua natureza axiomática -, o que nos leva a enxergar o tempo como um fluxo
permanente de eventos, fluxo esse que contém implicitamente as idéias de
novidade, de aprendizado, de surpresa e de descoberta.
À medida que o tempo passa, o
estoque de experiências cresce e vai permanentemente se incorporando à memória,
o que faz com que as perspectivas individuais mudem. Presente e futuro são,
assim, permanentemente afetados pelos fluxos contínuos de eventos, o que faz
com que cada novo instante seja por si uma nova perspectiva individual. Tal
fato, aparentemente tão simples, torna a previsibilidade perfeita um evento
impossível.
Por outro lado, a ignorância,
entendida como imperfeição do conhecimento, não é um estado que possa ser
totalmente evitado ou simplesmente ignorado, ou assintoticamente eliminado por algum
processo. Por isso, os expedientes analíticos que costumam transformar a
ignorância em uma mera variante do conhecimento, por não refletirem a ação
humana no mundo real, devem ser afastados da teoria econômica.
Resumindo, podemos conceituar esse
desconhecimento do futuro de acordo com duas noções complementares: (a) a de
ignorância e seu corolário, o conceito de "incerteza genuína" (ou "incerteza
radical") e (b) a de tempo real (ou dinâmico subjetivo ou histórico).
3. Incerteza
O conceito de incerteza genuína
decorre naturalmente como corolário da aceitação das hipóteses de ignorância e
de tempo real. As implicações mais importantes da idéia de incerteza genuína
são: primeiro, a impossibilidade de listagem de todos os possíveis resultados
provocados por um determinado curso de ação e, segundo, a passagem da incerteza
- que na teoria econômica convencional costuma ser tratada como uma variável
exógena -, para a categoria de variável endógena.
Com efeito, o tratamento que a
teoria neoclássica costuma dispensar à variável incerteza é o de listar
arranjos ou ponderações das possibilidades conhecidas. Esse método, na verdade,
termina negando a autonomia das escolhas individuais, ao retratar o futuro como
uma distribuição de probabilidades definida para um determinado conjunto de
eventos, o que equivale a impor a condição de que o único problema em relação
ao futuro é que ele, apenas, é desconhecido no presente. Sendo assim, ele pode
vir a ser conhecido, porque, independentemente das escolhas individuais, um dia
ele vai chegar. Na verdade, esse tratamento que a teoria econômica neoclássica
dispensa ao futuro termina abolindo a própria autonomia da mente humana.
Alguns avanços recentes em direção a
teorias "subjetivistas" de probabilidades não têm deixado de se constituir em
um passo adiante em relação ao tratamento neoclássico mais tradicional, mas nem
por isso podem ser considerados satisfatórios, na medida em que deixam de lado
aquele que talvez seja o aspecto mais importante da ignorância, que é a
impossibilidade de listagem dos resultados possíveis. Na verdade, não se trata
apenas de um simples desconhecimento das probabilidades associadas aos diversos
eventos de um determinado conjunto, mas ao fato de que o próprio conjunto não é
determinado.
A teoria subjetivista de
probabilidades, portanto, reflete o subjetivismo naquilo que podemos denominar
de sua forma estática, mas passa ao largo do relevante, que é o subjetivismo
dinâmico, em que o tempo real e a incerteza genuína caminham lado a lado e são
indissociáveis.
O segundo aspecto importante da
incerteza genuína, que é a sua característica de endogeneidade, leva-nos a
visualizar os mercados como processos dinâmicos ininterruptos, processos por si
só geradores de mudanças às quais o sistema econômico deve adaptar-se. Isto
significa que um estado de completa adaptação, ou um estado de equilíbrio, é
algo incompatível com os conceitos de incerteza genuína e de tempo real. Como
observou Mises, uma ciência econômica que enfatize apenas os estados de
equilíbrio deixa de ser uma ciência da ação humana, para ser uma ciência da
inação, isto é, a própria negação da economia.
Isto ocorre porque, à medida que o
tempo (real) passa, o estoque de conhecimentos necessariamente cresce e,
portanto, também aumenta a "produção" endógena de mudanças. Uma importante
implicação disso é que essas mudanças não se processam aos preços de equilíbrio
e que, portanto, ao invés de focalizar apenas as trocas realizadas sob
condições de equilíbrio ou os processos de ajustamento em direção ao equilíbrio,
a teoria econômica deve essencialmente preocupar-se com a trajetória das trocas
efetuadas sob condições de desequilíbrio, isto é, com os comportamentos
descoordenadores. Um exemplo desse tipo de preocupação que a teoria econômica
deveria sempre ter presente é a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos, que
explica a inflação e o desemprego como resultado de trocas realizadas de
maneira descoordenada, sob condições de desequilíbrio.
4. Tempo
A teoria econômica convencional, ao
enfatizar os estudos de equilíbrio, emaranha-se em um cipoal de paradoxos e
inconsistências, no que se refere ao tratamento dispensado ao fator tempo. De
fato, poucos se dão conta de que nos mercados em equilíbrio a formação dos
preços, ao invés de resultar - como ocorre no mundo real - do processo de
trocas voluntárias, precede o referido processo. Nos modelos de equilíbrio
geral, as decisões sobre preços e as decisões sobre trocas são simultâneas.
Assim, causas e efeitos, presente e futuro são como que fotografados
instantaneamente.
Até mesmo os modelos de equilíbrio
intertemporal - em geral, matematicamente sofisticados - que pretendem levar em
conta o fator tempo, ao adotarem a hipótese da existência simultânea de todos
os mercados intertemporais e contingenciais, literalmente, acabam anulando o
tempo, por trazerem os estados futuros para o presente. O modelo de
Arrow-Debreu, uma elegante elucubração teórica construída com vistas a ampliar
e refinar o modelo de equilíbrio geral de Walras e Pareto, é um desses
exemplos. A analogia utilizada por O'Driscoll e Rizzo descreve bem a
inutilidade do esforço desses modelos : "todas as decisões são feitas em
um único instante essencial: o futuro nada mais é do que o desenrolar de uma
tapeçaria que existe agora."
Há dois conceitos de tempo: o
newtoniano e o real. A teoria econômica convencional adota a primeira
concepção, enquanto os economistas "austríacos" preferem a segunda.
Examinemos rapidamente as características desses dois conceitos.
Tempo Newtoniano
A concepção newtoniana de tempo estabelece
uma analogia entre tempo e espaço, à medida que simboliza a passagem do tempo
por meio de movimentos ao longo de uma linha, em que os diferentes períodos de
tempo são representados por uma sucessão de segmentos de reta (no caso de
variáveis discretas), ou são retratados como uma sucessão de pontos (no caso de
continuidade). O tempo newtoniano apresenta três características importantes
A primeira é a homogeneidade.
Cada ponto é exatamente igual a todos os demais, a não ser por sua posição
espacial que, aliás, é seu fator determinante, assim como o tempo espacializado
nada mais é do que um conjunto de posições temporais. Isto faz com que cada
ponto ou segmento representativo do tempo seja vazio por construção, o que
torna o tempo independente de seu conteúdo. Em outras palavras, a homogeneidade
temporal faz com que o tempo decorra sem que nada aconteça, ao transformá-lo em
uma categoria estática. No modelo de Arrow-Debreu, por exemplo, em que todas as
decisões são tomadas em uma data inicial, o tempo passa sem que os agentes
econômicos aprendam, o que, evidentemente, é incompatível com a visão do
mercado como um processo.
A segunda característica é a continuidade
matemática, não no sentido de interrelações entre instantes sucessivos de
tempo, mas no de divisibilidade contínua. Assim como um segmento de reta pode
ser dividido e subdividido em partes infinitesimalmente tão pequenas quanto o
desejarmos, os intervalos do tempo newtoniano também podem ser estabelecidos
arbitrariamente pequenos e sempre haverá um espaço entre eles. E, uma vez que
os pontos ao longo de uma linha jamais podem se tocar, cada instante de tempo é
isolado, ou independente dos demais. Se a continuidade matemática
caracterizasse o mundo real, então os ajustamentos que determinam o processo de
mercado deveriam ocorrer a velocidades infinitas e a mobilidade de recursos
também deveria ser infinitamente grande, para que todo o processo ocorresse em
um único instante. Aí reside o chamado "paradoxo newtoniano": se o
ajustamento fosse instantâneo, por que seriam necessárias as mudanças e
variações? A consequência disso é que a teoria econômica tradicional é forçada
a adotar o expediente de considerar cada mudança como sendo proveniente de fora
do sistema, isto é, como sendo exógena. Outra vez, uma parábola de O'Drioscoll
e Rizzo: "um sistema newtoniano é meramente como dedilhar ao mesmo tempo
diversos estados estáticos e não pode gerar mudanças endogenamente".
A terceira característica é a inércia
causal, em que o estado inicial do sistema deve conter tudo o que for
necessário para produzir as mudanças e, portanto, em que o tempo não
acrescenta, literalmente, nada. Esta característica é evidente no tratamento
que os modelos econômicos convencionais dispensam ao aprendizado, isto é, à
incorporação de novos conhecimentos. O determinismo implicado pela inércia
causal virtualmente nega os problemas que o economista tem que resolver. De
fato, se todas as causas das mudanças estão presentes no instante seminal to,
para que esperarmos pelos resultados até t1, t2 ,t3, t4..., etc.? Na teoria
tradicional, há diversos exemplos dessa eliminação do tempo e do conseqüente
enfraquecimento da compreensão do mundo real que tal procedimento provoca. A
teoria do capital, os modelos de equilíbrio geral intertemporal e o equilíbrio
"ad hoc" que caracteriza, por exemplo, as abordagens de alguns
economistas da respeitável Escola de Chicago (nas quais, na ausência de
evidência em contrário, os preços e quantidades observados podem ser tratados
como boas aproximações para seus valores de equilíbrio competitivo de longo
prazo) são três desses exemplos.
Tempo Real ou Subjetivo
Nesta concepção, denominada, em
1910, de "la durée", pelo filósofo Henri Bergson, o tempo deixa de
ser um conceito meramente estático e passa a ser considerado como um fluxo
dinâmico e contínuo de novas experiências. Tal fluxo não está no tempo, como na
conceituação newtoniana; muito mais do que isso, ele é, ele se constitui, ele
caracteriza o tempo, na medida em que sempre alguma coisa nova deve acontecer,
ou o tempo não será real.
O tempo real ou subjetivo apresenta,
também , três características básicas: a continuidade dinâmica (ao invés da
continuidade matemática), a heterogeneidade (em contraposição à homogeneidade)
e a eficácia causal (em antítese à inércia causal).
A continuidade dinâmica pode
ser compreendida a partir de uma analogia com a experiência musical. Ao
ouvirmos os primeiros compassos de uma nova melodia, não somos capazes de
captar os compassos seguintes, porque nossa percepção envolve, primeiro, a
memória das frases ou compassos recém-ouvidos e, segundo, a antecipação das
frases ou compassos seguintes e que ainda não ouvimos. Assim, a estrutura
dinâmica do tempo real ou subjetivo constitui-se de dois elementos: memória e
expectativa, em que o presente é ligado a outros períodos através das
percepções individuais. A memória e a expectativa são oselementos estruturais
do tempo real, que vão originando, a cada novo instante, a continuidade
dinâmica e, embora possamos subdividir continuamente o tempo matemático de uma
dada experiência em quantos pontos ou fragmentos desejarmos, cada um desses
instantes, sob o ponto de vista subjetivista, não é independente nem pode ser
isolado dos demais. Por isso, o tempo subjetivo implica um verdadeiro elo, do
qual o tempo newtoniano se abstrai. O futuro é visto de modos diferentes,
dependendo de onde, ou de qual instante ele é visto; em outras palavras, a
experiência de uma primeira situação passa a ser utilizada como um novo
parâmetro na segunda situação; ambas passam a ser parâmetros para uma terceira
situação e assim sucessivamente. A esta altura, o leitor deve ter percebido que
continuidade dinâmica e processo de mercado são fenômenos inseparáveis. São os
elementos de uma partitura que começa no momento de nossa concepção e que se estende
à eternidade.
A característica da heterogeneidade
ressalta da observação de que, além de ser a memória o componente de nossa
experiência que liga o passado ao presente, ela também é o elemento responsável
pela diferenciação contínua entre cada momento sucessivo. Quando o tempo passa,
a memória de cada indivíduo vai se enriquecendo continuamente e portanto, os
pontos de vista individuais e subjetivos, as visões de mundo pessoais, vão-se
transformando continuamente. Por isso, cada ponto do tempo real é novo
exatamente porque, por intermédio da memória, está ligado a pontos anteriores.
Continuidade dinâmica e heterogeneidade não são características isoladas do
tempo real, elas são dois aspectos de um mesmo fenômeno. A heterogeneidade do
tempo é particularmente importante quando consideramos as possibilidades de
precisão dos agentes econômicos. Mesmo quando um fenômeno ocorre
"exatamente" como foi previsto por um indivíduo, ele não será
experimentado ou vivido exatamente como foi previsto, uma vez que, ao ser feita
a previsão, o ponto de vista era diferente do relevante ao ocorrer o fenômeno,
porque a memória, ao incorporar a previsão, mudou sua perspectiva.
Por fim, a característica da eficácia
causal decorre imediatamente da heterogeneidade. O simples decorrer do
tempo é uma fonte permanente de novidades, já que a memória altera a
perspectiva sob a qual cada um de nós vê o mundo. Logo, o tempo é, sob o ponto
de vista da causalidade, potente e criativo. Isto significa que todos os
processos econômicos devem necessariamente envolver a transmissão e o
crescimento do conhecimento. Sob esta perspectiva, a competição deixa de ser
apenas o nome dado a um determinado estado de equilíbrio, para ser um processo
caracterizado pela descoberta. Na verdade, conforme a Escola Austríaca sempre
sustentou, o crescimento do conhecimento, que se processa mediante as
descobertas, é a força endógena que propulsa ininterruptamente todo o sistema.
Há duas conseqüências da rejeição do
tempo newtoniano e da adoção da concepção subjetiva do tempo. A primeira é que
o tempo subjetivo ou real é irreversível. Assim, os movimentos ao longo das
curvas de oferta e de demanda não espelham as mudanças temporais reais: ao nos
movermos de um ponto para outro em uma mesma curva, não há volta possível. A
segunda conseqüência é que a passagem do tempo envolve uma "evolução
criativa", ou seja, os processos geram mudanças imprevistas. Um processo
não pode ser um simples rearranjo de fatores dados, como freqüentemente se considera
em alguns modelos. Se as mudanças são reais, elas não podem ser
determinísticas; sempre deve haver lugar para surpresas. O conceito de tempo
real é fundamental para compreendermos a ação humana: ao agir, os indivíduos
adquirem novas experiências, o que dá origem - necessária mas não
deterministicamente a novos conhecimentos. Com base nesses novos conhecimentos,
os indivíduos alteram seus planos e ações. Portanto, o sistema econômico é
impulsionado por forças inteiramente endógenas. O estado natural da economia no
tempo é movimento e não repouso, porque, como o tempo passa inexoravelmente, o
conhecimento se altera e, com isso, a própria economia.
Podemos encerrar estes comentários a
respeito do tempo subjetivo com o "enigma do tempo", formulado por um
campeão do subjetivismo, G.L.S. Shackle: "time is experienced, time is
imagined: the one is formed by the other, the other is formed by the one".
III. MERCADO, PREÇOS DE MERCADO E
PROCESSO DE MERCADO
Todos os economistas da Escola
Austríaca concordam com a proposição firmada pela tradição neoclássica, de Adam
Smith a Milton Friedman, segundo a qual a liberdade econômica - caracterizada
pela economia de mercado - é um importante componente da liberdade individual.
Entretanto, os austríacos adotam um ponto de vista diferente a respeito de
quais são as características essenciais dos mercados, que a análise econômica
convencional (neoclássicos e keynesianos, de um lado, e marxistas, de outro)
tem sistematicamente desprezado. São duas essas características, que funcionam
de maneira interligada: (a) a importância do grau de conhecimento dos diversos
participantes do mercado e (b) a importância maior do processo que conduz os
mercados ao equilíbrio (enfatizado pela teoria convencional). O conhecimento,
imperfeito e disperso, dos participantes dos mercados, como vimos, possui
características que tornam a incerteza genuína uma presença permanente, embora
indesejável.
Com o objetivo de entendermos melhor
o processo de mercado, repassaremos cronologicamente as principais idéias dos
economistas da Escola Austríaca, começando com Menger, prosseguindo com Mises e
Hayek e desembocando na controvérsia mais recente entre Kirzner, que sustenta a
tese de que os mercados convergem permanentemente para o equilíbrio, sem, no
entanto, alcançá-lo e Lachmann, que descarta a existência de uma tendência ao
equilíbrio endógena aos mercados.
A vertente austríaca tradicional,
composta por Menger, Mises, Hayek e Kirzner, pode ser considerada, no que se
refere a seu entendimento do fenômeno do mercado, como uma tentativa de
reformulação e reconstrução das ideias neoclássicas fundamentais. Com efeito,
enquanto os neoclássicos enfatizavam a chamada análise de equilíbrio geral e os
problemas implicados por essa análise, colocando em uma posição secundária o
estudo dos processos mediante os quais os mercados atingem o equilíbrio, a
vertente principal dos austríacos prioriza como objeto de estudo o processo de
mercado, relegando a análise das condições de equilíbrio a um plano não mais
que instrumental.
Para a Escola Austríaca, o mercado é
um processo de permanentes descobertas, de tentativas e erros, o qual, ao
amortecer as incertezas, tende sistematicamente a coordenar os planos
formulados pelos agentes econômicos. Como as diversas circunstâncias que cercam
a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado
de coordenação plena jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele.
Carl Menger tem, como quase todos os
fundadores, uma história complexa, na medida em que suas obras, como observou
Langlois, contêm elementos que foram retomados de formas diversas por seus
seguidores. Kirzner, por exemplo, sustenta que o fundador da Escola Austríaca
não poder ser enquadrado como um teórico do desequilíbrio, ao passo que Jaffé,
Alter e O'Driscoll sugerem que sua obra contém elementos que permitem
classificá-lo como um precursor da abordagem que vê os mercados como processos
de desequilíbrio. A leitura atenta dos trabalhos de Menger permite-nos
verificar sua crença de que a economia não está permanentemente em equilíbrio,
embora tenda sempre para o equilíbrio; contudo, não ficam claras suas posições
nem sobre o papel do empresário, nem sobre o dos preços de equilíbrio.
Mises, por sua vez, sustentava que a
principal característica da Escola Austríaca era sua teoria da ação e não uma
teoria de equilíbrio ou de inação. Assim, seu objetivo é explicar os preços que
são efetivamente praticados no mercado e não os preços que prevaleceriam sob
condições que jamais se verificam, como as que servem de apoio às teorias de
equilíbrio de mercado. Por isso, ressaltava que "devemos reconhecer que
sempre estudamos o movimento e nunca um estado de equilíbrio". De fato, o
uso de "construções imaginárias", como o conceito de "economia
uniformemente circular", que é uma das características da obra de Mises,
não revela qualquer pretensão de representar a realidade; pelo contrário, seu
objetivo é apresentar uma imagem tão essencialmente afastada da economia real
que, a partir do forte contraste produzido em relação à complexa realidade
econômica, seja possível compreendê-la tal como se apresenta.
A idéia hayekiana de coordenação
representa um avanço sobre a construção misesiana de "economia
uniformemente circular", uma vez que o conceito de Hayek envolve, sem
dúvida, uma aplicação mais consistente do subjetivismo, já que abandona o
requisito de que os dados externos (preferências, tecnologia e recursos) não se
alteram, requerendo, em troca, que esses dados não variem com respeito às
expectativas que guiam os planos dos agentes econômicos. A contribuição de
Hayek para a teoria do processo de mercado deriva, essencialmente, de sua visão
de que o conhecimento humano é imperfeito. Essa limitação do conhecimento, que
se traduz em informações incompletas e na possibilidade de ocorrência de
alterações nas preferências, na tecnologia e nos recursos, reflete-se também
nos planos de ação dos participantes do mercado. Assim, os agentes econômicos
não apenas são parcialmente ignorantes, mas as informações que possuem em cada
caso são diferentes e, não raro, contraditórias e, além disso, as expectativas
que formam a respeito do futuro são, em boa parte, divergentes. Este problema,
que Hayek denominou de "dispersão do conhecimento", é considerado por
ele como a questão central a ser resolvida pela economia.
A pergunta relevante, para Hayek,
deve ser: quanto conhecimento e que tipo de conhecimento por parte dos agentes
econômicos tornam-se necessários, para que possamos falar em coordenação
perfeita entre os planos de todos os agentes econômicos, isto é, em equilíbrio
de mercado? O papel do mercado, então, é o de servir como um processo, mediante
o qual, por tentativas e erros, tanto o conhecimento como as expectativas dos
diferentes membros da sociedade vão se tornando paulatinamente mais compatíveis
no decorrer do tempo. Surge, desta maneira, a importância fundamental,
primeiro, do sistema de preços, com o papel de emitir sinais para que os
diversos participantes do processo de mercado possam coordenar seus planos ao
longo do tempo e, segundo, da competição, como o único meio de descoberta das
informações que são realmente relevantes. Evidentemente, a ignorância gerada
pela escassez de conhecimento e que envolve o processo de trocas, fará com que
diversos planos fracassem e a tendência para um maior grau de coordenação
dependerá, de um lado, da capacidade de cada agente aprender com seus próprios
erros e, de outro, de sua capacidade de substituir por planos cada vez mais
corretos os que fracassaram anteriormente.
Se desejarmos condensar para o
leitor a posição de Hayek, podemos escrever que, em sua concepção, a
importância do processo de mercado é a de servir como um mecanismo transmissor
de informações, proporcionando economia de conhecimento. De fato, requer-se de
cada participante do mercado um grau baixo de conhecimento, para que possa agir
corretamente.
Dentre os "austríacos",
contudo, é Israel Kirzner, londrino que viveu e estudou em Cape Town e que
obteve seu PhD. na Universidade de Nova Iorque, onde atualmente é professor
aposentado, quem mais tem se dedicado (juntamente com o alemão Ludwig Lachmann,
que pertenceu à geração anterior) à análise do processo de mercado e das
características da atividade empresarial. Segundo ele, uma das causas da atual
crise da teoria econômica é a ênfase excessiva que ela tem dedicado ao estudo
dos casos de equilíbrio. Com efeito, embora não seja correto repelirmos de
antemão a idéia de mercados em equilíbrio, o bom senso e a simples observação
do mundo real, de um lado, e o espírito de seriedade acadêmica, de outro,
obrigam-nos a reconhecer as limitações explicativas e normativas da ênfase no
equilíbrio.
Ao adotarmos essa postura,
deparamo-nos imediatamente com dois questionamentos aos modelos de equilíbrio
geral derivados de Walras: se os agentes econômicos são tomadores de preços,
como surgem, então, os preços? Além disso, como se coordenam as ações dos
diferentes indivíduos? A corrente principal da teoria neoclássica recorreu ao
conceito de "leiloeiro" walrasiano para dar resposta às questões,
isto é, os preços seriam gerados por um ente fictício, não participante do
mercado, cuja atuação também coordenaria a dos participantes. Kirzner, ao
contrário, prefere explicar a formação de preços como o resultado da interação
entre os agentes econômicos que atuam nos mercados. Emerge, assim, a importância
da função empresarial, cuja essência é um estado de permanente alerta, no
sentido de conseguir captar oportunidades de lucros não descobertos anteriormente.
Tais oportunidades, que se revelam nos mercados através de diferenciais entre
preços, são descobertas gradualmente pelos empresários que, ao explorá-las,
tendem a corrigir desequilíbrios anteriores e, com isso, a promover a maior
coordenação entre os planos individuais e, portanto, a gerar uma tendência de
equilíbrio nos preços. Isto decorre do axioma fundamental da praxeologia, de que
a ação humana, sendo motivada pela vontade de aumentar a utilidade, promove
revisões nos erros anteriores que devem conduzir a erros sucessivamente menores.
Na ausência de divergências de expectativas, o sistema tenderia automaticamente
a um estado de completa coordenação que, no entanto, não é alcançado, na medida
em que as divergências entre as expectativas que cada participante no mercado
formula subjetivamente tendem a gerar transformações permanentes.
A posição de Ludwig Lachmann difere
radicalmente das anteriores: sua visão do processo de mercado representa uma
forte crítica, tanto ao conceito neoclássico de equilíbrio, quanto à explicação
alternativa de Mises, Hayek e Kirzner. Como observa Sarjanovic, "Lachmann,
influenciado pelo pensamento ultra-subjetivista de G.L. Shackle, descarta tanto
o equilíbrio como a existência de uma tendência coordenadora no mercado".
Para ele, as forças desequilibradoras merecem o mesmo tratamento que aquele que
tem sido dispensado pelos economistas às forças equilibradoras, pelo motivo de
que os processos de mercado são formados por ambas, o que implica que, de
acordo com circunstâncias diferentes, umas prevaleçam sobre as outras, gerando,
assim, processos com características diferentes.
A idéia central de Lachmann é que o
conceito de mercado em equilíbrio deve ser inteiramente abandonado, uma vez que
pressupõe que as forças equilibradoras ou coordenadoras prevaleçam sempre sobre
as forças desequilibradoras ou descoordenadoras. Segundo sua visão, o mercado
deve ser, portanto, interpretado como "um processo econômico, isto é, um
processo em marcha, impulsionado pela diversidade de objetivos e recursos e
pela divergência das expectativas, variando em um mundo de mudanças
inesperadas". Ou, como escreveu em outra ocasião, o mercado deve ser
considerado como "um processo sem princípio nem fim".
Observemos que os agentes
econômicos, na concepção lachmaniana, agem em um mundo de características muito
diferentes das que são normalmente consideradas: o subjetivismo radical está em
um polo diametralmente oposto ao do equilíbrio geral, caracterizando-se por
considerar que as variáveis são extremamente voláteis e as mudanças contínuas e
incessantes. Shackle descreveu essa ordem econômica como um "processo
caleidoscópico", marcado por avalanches sucessivas de reajustes em busca
de novos, precários e efêmeros "pseudo-equilíbrios".
Temos assim, duas tendências na
Escola Austríaca, que refletem duas abordagens diferentes do mercado: a de
Lachmann e Shackle, que encara os mercados como processos simplesmente
ordenados e que não vê necessidade em se postular uma tendência ao equilíbrio
para que os processos de mercado sejam inteligíveis e a de Mises, Hayek e
Kirzner, que enxerga os mercados como processos de coordenação, que tendem ao
equilíbrio, embora não o alcancem, rechaçando tanto o extremo do equilíbrio
geral quanto o do subjetivismo extremado, com base no argumento - bastante
plausível - de que os indivíduos, ao atuarem nos mercados, defrontam-se com
circunstâncias que nem são fixas nem, tampouco, mudam incessantemente, o que
lhes permite descobrir gradualmente quais as alternativas que tendem a aumentar
sua utilidade, superando assim paulatinamente a limitação de seu conhecimento.
V. CONCLUSÕES
A economia convencional costuma
classificar os mercados de acordo com o seu número de participantes
(concorrência perfeita, oligopólios, competição monopolística e monopólios).
Além disso, estuda essencialmente as situações de equilíbrio em cada uma dessas
formas de mercado. Esse procedimento deixa a desejar, primeiro porque situações
de "equilíbrio" são bem pouco viáveis no mundo real; segundo, porque associa automaticamente
"eficiência" com um número maior de participantes, o que nem sempre é verdadeiro,
já que podemos ter, por exemplo, poucos participantes com razoável competição
entre eles e muitos participantes com baixa competição; e terceiro, porque costuma
causar uma terrível confusão entre "concorrência perfeita" (algo inexistente)
com competição, o que não é verdade. Este terceiro equívoco é bastante grave e
explica porque os críticos dos mercados livres associam sempre os que os
defendem com sonhadores a viver em um mundo fictício, em que impera a
concorrência perfeita. Nada mais falso.
Alternativamente, a Escola
Austríaca, em razão dos elementos descritos neste trabalho, considera que os
mercados são processos, ou seja, instituições essencialmente dinâmicas, que
costumam tender ao equilíbrio mediante um procedimento de permanentes descobertas,
tal como uma cadeia de tentativas e erros, um processo de aprendizado permanente.
Obviamente, qualquer interferência externa - entenda-se por isso as intervenções
do Estado - nesse processo, o comprometem irremediavelmente, por melhores que
possam ser suas intenções, porque afastam os mercados de seu processo natural
e, como o conhecimento dos agentes interventores não é melhor (na verdade,
costuma ser pior) do que o dos participantes diretos dos mercados, os
resultados acabam piorando o que se queria ingenuamente "consertar".
Interferências do Estado nos mercados, de um lado, impedem o processo de
descoberta que os caracteriza e, de outro, terminam afetando - mesmo que o
Estado não tenha tido essa intenção - dezenas ou centenas de outros mercados,
diretamente ou indiretamente relacionados com o mercado onde ocorre a intervenção
inicial.