Você certamente não achou que as elites
governamentais iriam perder as oportunidades geradas pela atual crise econômica
mundial e deixar de criar algum esquema absurdo e ilógico que lhes dará ainda
mais poder e controle. Bem, aqui está a
encrenca, nada mais que o ressurgimento de uma ideia velha mais de 60 anos:
um papel-moeda global, emitido por uma entidade supranacional, com a missão de
acabar com todas as nossas enfermidades.
O estudo do FMI que clama pela implementação desta
ideia foi feito por Reza Moghadam, do Departamento de Estratégia, Política e
Análises, "em colaboração com os Departamentos de Finanças, de Mercados de Capital
e Política Monetária, de Direito, e de Pesquisa e Estatística, e com consulta
ao Departamento de Áreas". Em outras
palavras, esse estudo não deve ser ignorado.
Trata-se de um plano de longo prazo, mas o plano
tem a inconfundível marca de Keynes. Logo
no início da página 27, o autor já deixa claro que a intenção é homenagear
Keynes. Ainda na mesma página, no item
35, lê-se: "Uma moeda global, o bancor, emitida por um banco central global,
seria concebida como uma estável reserva de valor que não estaria amarrada
exclusivamente às condições de uma economia em particular". Na página 28: "O banco central global poderia
servir de emprestador de última instância, fornecendo uma necessária liquidez
sistêmica no evento de choques adversos, e de modo mais automático do que no
presente."
O termo bancor vem diretamente de Keynes. Ele propôs essa ideia logo após o fim da
Segunda Guerra Mundial. Entretanto, tal
ideia foi rejeitada principalmente por razões nacionalistas. Ao invés disso, o mundo ganhou um sistema
monetário baseado no dólar, que por sua vez estava ligado ao ouro. Em outras palavras, o mundo ganhou um falso
padrão-ouro, o qual estava fadado ao colapso na medida em que os desequilíbrios
das reservas de ouro dos países se tornassem insustentáveis — como acabou
ocorrendo no final da década de 1960. O
que substituiu tal arranjo foi exatamente o nosso atual sistema monetário, em
que os papeis-moeda de todos os países flutuam entre si nos mercados de câmbio.
(Veja um relato cronológico desses eventos aqui.)
Mas as elites governamentais nunca desistem de
tentar obter mais poderes. A proposta de
uma moeda global emitida por um banco central global voltou a assombrar o
mundo. Qual problema está sendo
atacado? O que há de tão
desesperadoramente errado no mundo a ponto de o FMI estar testando a ideia de
uma moeda única mundial? Em uma só
palavra, o problema chama-se 'entesouramento'.
O FMI está realmente irritado com o fato de que, "em anos recentes, o
acúmulo de reservas internacionais acelerou rapidamente, atingindo 13% do PIB
global em 2009 — um aumento de três vezes ao longo de dez anos".
Ou seja, a política monetária não está funcionando
como eles gostariam. No mundo idealizado
por eles, o banco central imprime dinheiro e, com isso, aumenta as reservas dos
bancos. Essas reservas são então
emprestadas, o que leva a uma enorme expansão do consumo e do investimento,
gerando a felicidade global eterna (não interessa se a hiperinflação e a má alocação
— e consequente desperdício — dos bens de capital serão a inevitável
consequência). Porém, há um problema com
esse plano. O atual sistema monetário
funciona em termos nacionais, com cada país adotando sua própria política
monetária. Assim sendo, as condições
econômicas de um dado país acabam tendo influência sobre o seu mercado de
crédito. Se a economia está ruim, não há
emprestadores e nem pegadores de empréstimo.
O dinheiro fica parado no sistema.
Essa é a história resumida dos EUA dos últimos
dois anos, por exemplo. A esta altura,
se o Fed tivesse êxito em suas políticas, o país estaria inundado de
dinheiro. Porém, as reservas que ele
criou ainda estão presas no sistema bancário.
É como se toda a população americana repentinamente tivesse sucumbido ao
conselho moral: não serás mutuário nem mutuante.
E por quê?
Bem, há dois motivos. Os
tomadores de empréstimos simplesmente estão um pouco apreensivos quanto às
perspectivas de longo prazo. Eles agora
estão monitorando seus custos e suas contas diariamente, dominados por um
estranho senso de realidade que havia sido jogado pela janela durante o período
da expansão econômica artificial.
Enquanto isso, os bancos estão avessos ao risco, preferindo manter suas
reservas em seus cofres a jogá-las aos ventos do destino incerto e nada
auspicioso. Como os examinadores do
sistema bancário estão analisando tudo com uma lupa, e fazer empréstimos não
ajuda a melhorar a classificação de risco — não com as taxas de juros sendo
mantidas em quase zero pelo Fed —, os bancos mantêm-se cautelosos.
Sob essas condições, sim, entesourar parece uma
ótima ideia. Mais ainda: todos nós
deveríamos estar comemorando essa retração de postura. Afinal, ideia de mergulharmos em outra bolha não
é das mais inteligentes.
O FMI, entretanto, tem um problema com essa
prática, embora ele não se concentre nela.
O problema é que essa prática de manter um alto nível de reservas está
arrefecendo o consumo e o investimento, prolongando a recessão. A solução simplória sugerida pelos magnânimos
intelectuais do FMI é criar algum sistema, qualquer sistema, que retire o
dinheiro dos cofres dos bancos e o coloque nas mãos do público consumidor.
A justificativa para a moeda global e para o banco
central global é que, em um sistema globalizado, as reservas sempre
encontrariam um mercado.
Consequentemente, elas não mais ficariam presas às exigências de um
sistema monetário e bancário restrito, de âmbito apenas nacional.
Uma monografia acadêmica pode tergiversar
eloquentemente, por centenas de páginas, sobre as vantagens de um sistema
global, falando que tal arranjo criaria mais estabilidade e eficiência, e uma
menor politização do dinheiro e do crédito.
E, de fato, tal raciocínio faz um certo sentido: afinal, um padrão-ouro
real sempre tenderá a um sistema monetário global. Diferentes moedas nacionais são apenas
diferentes nomes para algo que realiza a mesma função: ser um meio de troca.
Porém, há uma diferença primordial. Sob um padrão-ouro, o metal físico é o limite
e o mercado é o supervisor. Sob um
sistema global de papel-moeda, o papel não fornece absolutamente nenhum limite
à criação de mais dinheiro, e os políticos é que são os supervisores. Assim sendo, não faz sentido algum falar
sobre as glórias da globalização no atual contexto. Uma moeda mundial de papel e um banco central
mundial iriam intensificar o risco moral e levar a um regime inflacionário
global até então nunca visto. Não
haveria maneira alguma de fugirmos dos inúmeros controles políticos que
inevitavelmente surgiriam sob esse arranjo.
Toda proposta de solução drástica como essa sempre
vem acompanhada de um alerta para alguma consequência igualmente drástica que
ocorrerá caso tal proposta não seja adotada.
No exemplo em questão, o FMI chega a levantar dúvidas sobre a capacidade
de sobrevivência do dólar. "Tem havido
um prolongado debate especulando sobre a possibilidade de colapso do dólar",
diz o estudo. A preocupação é que, se de
fato houver uma especulação contra o dólar, os bancos centrais poderiam
competir entre si para ver quem seria o primeiro a abandonar o dólar
permanentemente.
Porém, como o estudo aponta, muitas pessoas se
perguntam se "existem boas alternativas ao dólar". E, por essa razão, o FMI acha que talvez seja
uma boa ideia improvisar tal alternativa o mais rápido possível.
Provavelmente há mais verdade nessa afirmação do
que a maioria das pessoas quer admitir.
Mas a alternativa não está em mais um experimento global, dessa vez
ainda mais intenso, envolvendo inflação de papel-moeda. Que Deus não tal o permita. Se queremos uma alternativa ao dólar, há uma
que pode surgir perante nossos olhos — se ao menos deixássemos que isso
ocorresse. Corretores de moedas ao redor
de todo o mundo poderiam, por conta própria, fazer surgir uma nova moeda
lastreada em ouro e comercializada por meios digitais. Em várias ocasiões nos últimos 20 anos tal
sistema chegou perto de existir. Porém,
adivinhe só? O governo tomou
providências severas e interrompeu o processo.
As elites governamentais decidiram que só haverá reformas monetárias se
estas vierem dos palácios de mármore onde as elites monetárias estão
encasteladas.
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