Vejamos agora duas notícias que exemplificam perfeitamente o tal do "estado democrático e de direito" em ação.
A primeira
notícia já é velha de quase uma semana, mas vale a pena revisitá-la utilizando
alguns trechos desta coluna de
José Pastore:
Os parlamentares do Quênia, numa tacada só,
igualaram seus salários aos dos congressistas dos EUA: US$ 14.500 por mês. Um
escândalo.
Em oito minutos os parlamentares do Brasil
passaram seus salários para R$ 26.700 mensais. Levando em conta que eles
recebem 15 salários por ano, são R$ 33.375 por mês, ou seja, cerca de US$
19.600. Foram além dos seus colegas do Quênia e dos EUA!
Não tenho dados do mundo inteiro. Mesmo assim,
dá para ver que os brasileiros são ousados. No Japão, os parlamentares recebem
o equivalente a US$ 15.200 por mês; no Canadá, US$ 12.177; na Alemanha, US$
10.137; na Inglaterra, US$ 8.858; na Itália, US$ 7.235; em Cingapura, US$
4.170; na US$ Espanha, 4.121; na Índia, US$ 1.107.
Com raras
exceções os parlamentares celebraram o aumento, dizendo não temerem um desgaste
eleitoral porque, na antevéspera do Natal, um assunto como esse sai de pauta em
poucos dias. Além do mais, eles estão a quatro anos do próximo pleito. Como no
passado, escândalos maiores farão os eleitores esquecerem o atual.
Tudo isso acontece no momento em que os próprios
congressistas são convocados pelo governo para ajudar a cortar despesas de
custeio que cheguem a 3,1% do PIB de 2011 — uma meta bastante difícil.
O Congresso da República Checa aprovou um corte
de 5% nos salários dos parlamentares, do presidente do país, do
primeiro-ministro, dos magistrados e dos promotores para ajudar a reduzir o
déficit público. Os congressistas dos EUA congelaram seus salários por dois
anos e há propostas de corte de 5% a 10% para 2012. Os deputados da Califórnia
e de Michigan cortaram seus salários em 30%, reduzidos para cerca de US$ 6.600
por mês. Entre nós, o aumento foi de
62%, chegando a US$ 19.600 por mês em um país onde o salário médio equivale a
US$ 880 e o salário mínimo, a US$ 300.
Essa análise exclui os benefícios não salariais
dos deputados e senadores. A comparação é de salário contra salário. Os
disparates são gritantes e de graves consequências. Como os salários dos
deputados estaduais e vereadores estão atrelados aos dos parlamentares
federais, a cascata irá longe. Para 2011, estima-se um gasto adicional de R$ 2
bilhões em todo o País, e isso vai continuar nos anos seguintes com chance de
subir mais. Os impactos se propagarão também para os magistrados, procuradores
e outros profissionais da esfera pública.
Sairia
muito mais barato para o país caso os nobres parlamentares se dessem um aumento
de 100% (ao invés dos módicos 62%) com a promessa de que eles passariam todo o
seu mandato viajando pelas Bahamas ou pelo Taiti, sem nunca mais pisar no
Congresso um dia sequer.
Acha que
estou sendo irônico e chistoso? Pois
veja agora essa segunda
notícia:
Lei
anti-videogames avança no Senado
Quando não estão ocupados demais aprovando
aumentos incríveis nos próprios salários, vários deputados estão criando e "apreciando"
leis absurdas. Uma, em especial, que avançou mais um pouquinho no Senado ontem,
pode criminalizar uma enorme parte dos jogos de videogame.
Já havíamos falado do infame Projeto de Lei do
Senado n° 170/06 por aqui. O texto, de autoria do senador Valdir Raupp
(PMDB-RO), diz que serão proibidos, com penas duríssimas, qualquer jogo que
incite a violência ou discriminação contra culturas, costumes, religião,
procedência nacional, etc. Forçando a barra dá para criminalizar basicamente
qualquer jogo que envolva matar alguém não-alien.
Eu costumo ignorar projetos de leis absurdos. Há
vários. Mas fiquei surpreso quando um leitor nos avisou que a matéria foi
ressuscitada e ganhou parecer favorável na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania do Senado, ontem. A senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) gostou da
ideia da lei, mas sugeriu uma alteração importante: a substituição da palavra
videogame ("origem inglesa") para "jogo eletrônico". Quem quiser ficar
mau-humorado hoje pode ler o parecer da senadora, que diz, por exemplo:
Em cumprimento a essa determinação judicial, o
Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, órgão ligado ao Ministério da
Justiça, pediu que os Procons estaduais e municipais fiscalizassem a venda e
distribuição dos referidos jogos Counter Strike e EverQuest. Diante disso,
proibiram a distribuição e a comercialização de livros, encartes, revistas,
CD-ROM, fitas de videogame ou computador desses referidos jogos.
Portanto, as autoridades brasileiras têm
entendido que esses jogos trazem a tônica da violência que seriam capazes de
formar indivíduos agressivos, influindo sobre o psiquismo e reforçando atitudes
agressivas em certos indivíduos e grupos sociais.
Os mais
otimistas dizem que leis absurdas e desvairadas como essa nunca são aprovadas,
e que, portanto, podemos ficar despreocupados, pois nossas liberdades não
correm perigo.
Ok, vamos
partir desse princípio. Vamos supor que,
de fato, leis como essa nunca são aprovadas.
A pergunta que fica é: Isso é reconfortante?
Não para
você que acorda cedo e trabalha o dia todo.
Afinal, mesmo projetos de lei que nunca dão em nada têm custos para ser
elaborados e avaliados. Cada deputado e
senador possui uma vasta equipe de assessores, tanto em Brasília quanto nos
seus estados de origem. São esses
assessores que irão (ao menos em teoria) analisar cada linha de cada um dos
vários projetos de lei que tramitam todo ano no Congresso. Nenhum deputado ou senador lê sozinho essas
bobagens. E quanto mais projetos de lei
são criados, mais motivos os políticos têm para reivindicar mais verbas para
contratar mais assessores. No extremo,
chega-se a um ponto em que a simples ameaça de se criar um projeto de lei já é
suficiente para que políticos reivindiquem mais verbas para darem conta de seu
extenuante trabalho. Trata-se de um
moto-perpétuo. Quanto mais eles fingem
fazer algo, mais eles podem reivindicar aumentos de verbas.
E é você,
caro cidadão trabalhador, que sustenta essa farra. Cada projeto de lei, por mais absurdo que
pareça e por mais inócuo que seja, possui um alto custo embutido apenas em sua
elaboração. Cada deputado e senador leva
atrás de si um verdadeiro trem da alegria.
Todos regiamente pagos com o seu suor.
Pense nisso
quando seu despertador tocar logo de manhã e você tiver uma longa jornada de
trabalho pela frente. Pense nisso também
todas as vezes que você vir os impostos comendo seu contracheque. E principalmente: pense nisso toda as vezes em que você ouvir algum idiota útil reclamando que os nobres parlamentares trabalham pouco. Imagina se eles fizessem hora extra?
Essas duas notícias formam um exemplo completo das
maravilhas do "estado democrático e de direito". Você está satisfeito com ele?